segunda-feira, 27 de setembro de 2021

A origem dos Arcanjos Miguel e Gabriel. O livro "Na Hora de S. Miguel", por Gabriel Bosco. Resumo valorativo.

Gabriel Bosco escreveu a obra Na Hora de S. Miguel e publicou-a no Porto, nas edições Cavaleiro da Imaculada, em 1977. Num livrinho de 32 páginas (com apenas uma gralha, na pág. 13, onde está David deve-se ler Daniel), tem na capa a iconografia tradicional do Arcanjo, com um pé sobre a cabeça do Diabo, a mão esquerda segurando a balança e com a direita apontando a espada  ao Adversário e vencendo-o. E é apresentado assim no I capítulo: «Quem é como Deus? Eis o nome e o grito de guerra de S. Miguel. No seu nome está a sua bandeira e o seu programa de acção.»
A obra não tem grandes rasgos ou investigações e partilha  algumas citações de textos sem as localizar, tal como a de S. Boaventura ter escrito que  «é raro o profeta que não fala dos serafins e dos querubins», algo errado pois há pouquíssimas referências a eles em todo o Antigo Testamento.
Valoriza muito o profeta Daniel (significando "Deus é meu juiz", em hebreu), educado com mais três companheiros na corte real da Babilónia, "capaz de interpretar qualquer sonho e visão" e que o rei, consultando-os em questões de sabedoria e discernimento, considerava-os «dez vezes superiores a todos os magos e adivinhos do seu reino». Será Daniel que desvendará o misterioso sonho de uma estátua compósita de Nabucodonosor, pelo que o rei se prostrou aos seus pés e lhe disse: «Em verdade o vosso Deus é o Deus dos deuses e o senhor dos reis e o revelador dos mistérios, pois tu pudeste revelar este mistério»(II, 46,47). 
Estamos a ver a manipulação grande no relato do que quer que tenha podido acontecer, pois como seria possível o rei fazer e dizer tal, se logo em seguida Nabucodonosor eleva uma estátua de ouro a si mesmo e queria que todos a adorassem...
Este sonhos e visões imaginativas do religioso hebreu que no II séc. a. C escreveu o Livro de Daniel  foram um dos contributos de esperança ou miragem do messianismo judaico do V Reino, o messiânico que havia de vir, em Portugal tornado o V Império.
É em Daniel, VIII que  surge a primeira menção de um dos grandes arcanjos da história judaico-cristã, Gabriel, e podemos dizer que foi o anónimo escritor do Livro de Daniel quem de facto inventou nomes e entidades que se tornariam tão famosas e poderosas, tais como Mikael ou Miguel, e Gabriel, este que terá a fortuna tanto de ser o anunciador do nascimento de Jesus  a Maria como, uns séculos depois, quem, já com o nome árabe de Jibril, ditará ao profeta Maomé o livro sagrado do Islão, o Alcorão...
 
Primeiramente surge Gabriel a explicar uma visão de animais que simbolizaria o tempo do Fim, em VIII-17, e logo em seguida uma segunda vez.
Será só no cap. X, quando é relatada a aparição de «um homem vestido de linho, com os rins cingidos de ouro puro, seu corpo tinha a aparência de crisólito, e seu rosto o aspecto de fogo, seus braços e suas pernas como como o fulgor do bronze polido e o som das suas palavras como o clamor de uma multidão. Somente eu vi esta visão...»
O que diz esse homem resplandecente, mais tarde identificado a Jesus? 
Explica a Daniel o que se está a passar: "- O chefe do reino persa resistiu-me durante vinte e um dias; porém, Miguel, um dos principais chefes, veio em meu socorro. Permaneci assim ao lado dos reis da Pérsia.* 14. Aqui estou para fazer-te compreender o que deve acontecer ao teu povo nos últimos dias; pois essa visão diz respeito a tempos longínquos.»
Aqui é feita a menção pioneira a S. Miguel ("Quem é como Deus?"), a única que há em todo o Antigo Testamento. Mas como poderia ser Jesus, a lutar com o anjo ou arcanjo persa vinte e um dias e sendo  ajudado por um dos primeiros Príncipes, Miguel, e referindo a Daniel o teu povo, que não dele? 
Vemos assim a misturada grande que este livro é, intensificada depois pelo facto de se ter tentado ver Jesus o Cristo já a agir nos tempos do Antigo Testamento, o que é um erro completo. O mais interessante é porém a fortuna destes Arcanjos, que hoje, e com muita razão, já ninguém, dos crentes nos Anjos e Arcanjos, duvida da sua existência ou mesmo identidade e funções.
Seguem-se mais duas aparições de seres parecidos com homens, a última acabando por ser a inicial, pois diz a Daniel:
"Sabes bem” – prosseguiu ele – “por que vim a ti? Vou voltar agora para lutar contra o chefe da Pérsia, e no momento em que eu partir virá o chefe de Javã.* 21. Mas (antes), te farei conhecer o que está escrito no livro da verdade. 22. Contra esses adversários não há ninguém que me defenda a não ser Miguel, vosso chefe."
Vemos assim Miguel a tornar-se, de um dos principais chefes ou príncipes, "o vosso chefe". Que manipulações e interpolações o texto não terá sofrido, só um persverante estudioso deste livro o poderá adivinhar...
Segue-se uma longuíssima descrição de lutas entre povos da região no III e II século, e que trabalho para o pseudo Jesus ter de as estar a prever, e a descrevê-las a Daniel. Quando por fim se entra no cap. XII, reaparece Miguel: «Então se levantará o grande príncipe Miguel tomar a defesa dos filhos do teu povo». Ou noutra versão «que se conserva junto dos filhos do teu povo. Será um tempo de tal angústia qual jamais terá havido até aquele tempo, desde que as nações existem, mas nesse tempo o teu povo escapará, isto é, todos os que se encontrarem inscritos na vida. E muitos dos que dormem no solo poeirento acordarão, uns para a vida eterna, outros para o opróbio, para o horror eterno». Seguem-se depois as histórias de Susana e do dragão e como o Anjo de Senhor levou pela cabeleira o profeta Habacuc até à Babilónia para este dar a refeição que confecionava a Daniel, que estava na cova dos leões... I
maginações estrambólicas e que muita gente acreditou...

Como sabemos, o género de visões apocalípticas são fruto de imaginações frondosas que, por vezes, quanto muito, captaram no mundo astral ou imaginal certas imagens e forças germinantes, e que, de acordo com a sua sensibilidade desejos e receios, criam histórias, que podem mesmo ver, quais sonhos e filmes, e neste caso temos um escritor (aliás mais do que um, pois distinguem-se várias histórias  adicionadas) a relatar os feitos e visões de um profeta Daniel, muito provavelmente uma figura ficcional que serviu para fortificar os judeus face a outras religiões e povos, descrevendo mistérios da história, do porvir e do Divino que nem Jesus se atreveu mais tarde a dizer, reservando unicamente ao Pai, seja quem ele for, tal conhecimento.

Defende o autor do livrinho, Na Hora de S. Miguel, Gabriel Bosco ainda que já antes de David se aponta a intervenção de S. Miguel «ocultando aos judeus o corpo de Moisés, para que aquele povo, propenso como era à idolatria, não caísse nesse erro, tributando ao corpo do seu libertador honras só devidas a Deus». É claro utra mistificação, pois Moisés morreu e foi enterrado, e não veio um Arcanjo esconder o corpo ou levá-lo num lençol para o céu. Também seria Miguel o anjo que teria aparecido a Josué depois da passagem do rio Jordão, pois apresentou-se: «Eu sou o príncipe dos Exércitos do Senhor.» Era o tempo de Jehova, o deus das batalhas e dos extremismos, um deus muito cioso das suas ordens e culto, uma concepção primitiva e nacionalista de Deus, que Jesus repudiou, apresentando antes uma concepção de Deus bem mais harmoniosa...
A fortuna do pseudo-profeta Daniel, um dos primeiros visionários apocalípticos, logo a seguir a Ezequiel, e o criador de Arcanjos tão importantes no futuro, foi grande e chegou até à Europa cristã, em especial à Inglaterra dos puritanos e da V Monarquia e ao Portugal das fantasias do V Império, de ambas estando bem conhecedor Fernando Pessoa, como já antes o P. António Vieira. É de Daniel também, por exemplo, que vem a ideia e a expressão «Será salvo todo aquele que estiver inscrito no Livro da Vida», bem como a maluquice da ressurreição da carne e dos corpos físicos, que a tantas religiões e seitas se estendeu, pois não teve mão restrita nas suas visões e profecias. A  obra é  muito violenta,  por exemplo, pondo os anjos a rachar a cabeça ao meio de dois anciões que tentaram possuir a casta Susana. É com Daniel que termina o profetismo do Antigo Testamento, talvez porque foi tão extraordinária e pesada a avalanche de visões que ele criou que mais ninguém se atreveu a levantar a voz como profeta visionário em nome de Deus. Teremos de aguardar algum tempo, para já no seio do Cristianismo, o mesmo veio hebraico apocalíptico se manifestar, fazendo-o em nome do apóstolo querido de Jesus, João, sabendo nós que é uma obra de um judeu cristão, um zelota ou extremista, por volta de 80 d.C.
O autor do Apocalipse (e certamente não foi o apóstolo João, tal como Erasmo já no começo do séc. XVI provara e a crítica textual actual confirma) não conheceu Jesus, mas sim e muito bem as visões e profecias de Isaías, Ezequiel e Daniel, utilizando-as frequente mas discretamente na feitura da sua obra imaginativa, provavelmente escrita para afastar os cristãos de estabelecerem acordos ou acomodações com outras comunidades religiosas e para dar continuidade de valor aos profetas do Antigo Testamento, em riscos de serem destronados, caso o Cristianismo nascente conseguisse ter cortado com o Antigo Testamento, o que desgraçadamente sabemos que não aconteceu, enredando em pessoas em muita história e concepção errada e violenta...
                                 
Quanto à relação do Arcanjo de Portugal e o arcanjo Miguel, algo que vários têm procurado, com diversas motivações e esoterismos, refere Gabriel Bosco que embora no Congresso Internacional da Mensagem da Fátima, no Ano Santo [1951], o eng. Varela Cid pretendesse «provar ser S. Miguel o Anjo de Portugal», e que ele próprio também o desejasse, «não tem nenhuma revelação divina, autenticada pela Igreja, a confirmá-la». Menciona antes as três estátuas principais do Anjo Custódio de Portugal, em Évora, Bucelas e igreja da Encarnação em Lisboa, ainda hoje existentes. Não mencionou outras bem importantes, tais como as do convento de Tomar,  a da Sé de Braga, a da igreja de Santa Cruz em Coimbra, da autoria de Diogo Pires,  reproduzida em seguida.
No fim da obrinha deixa sete resoluções e propósitos, que vale a pena cogitarmos: 1ª « O temor e o respeito devido aos santos Anjos. Sabemos que o Anjo Exterminador matou os primogénitos do Egipto [talvez para dar o exemplo à legenda de Herodes ter mandado matar as crianças da idade de Jesus], e outro Anjo celeste exterminou numa noite 200.000 Assírios comandados por Senaquerib, por terem blasfemado o nome santíssimo de Deus (Isaías, XXXVII)».  O propósito é bom e devemos senti-lo mais no nosso coração espiritual, o local ou nível sem dúvida melhor para os invocarmos, enquanto sede da afectividade e da aspiração, mas são certamente duas mistificações completas, como se Deus mandasse matar por um anjo, tomando partido em guerras humanas e logo milhares de uma vez. 
Um mau precedente se abriu com esta intrujice, pois ao longo dos séculos vimos sacerdotes a abençoar os povos dantes de partirem para guerras, e até ofensivas, e para chegarmos aos nossos tempos e ouvirmos governantes irresponsáveis e vendidos, de certo modo criminosos de guerra, como George Bush, Tony Blair, Tatcher, Cameron, afirmarem que Deus os mandava entrar nas guerras e violência no Médio Oriente. 
O 2º propósito a termos em conta e adoptarmos é que pela nossa consagração ao Anjo da Guarda criamos intimidade com ele, podendo eles protegerem-nos. É certamente um dos mais acertados ditos e  conselhos do livro. O 3º propósito é lembrar-nos que nas missas  há união com eles, de facto uma afirmação verdadeira, uma realidade para quem consegue merecer tal visão. O 4º propósito é sermos submissos aos Anjos porque avisa S. Paulo: «Todos os Anjos bons são espíritos, ministros de Deus, enviados em socorro dos que se vão salvar», embora possa haver algum erro pois é como se houvesse um predestinação, só para uns tantos receberem os Anjos bons, e todos podemos e devemos tornar-nos bons e ligados ao Anjo. A 5ª tenção a desenvolvermos é a da vigilância e luta, porque como diz a Epist. de S. Pedro I, 5, 8, «o diabo vosso inimigo anda ao redor de vós como leão rugidor, buscando a quem devorar». Um dos que disse que o viu mais de uma vez foi Lutero e não sabemos se terá sido em algum nível devorado, mas pelo menos deixou de falar e cultuar a intermediarização dos Anjos  e ainda dos santos e mestres, ficando tudo dependente apenas da fé de cada um e da graça divina predestinada, algo que Erasmo criticou, explicando como o livre arbítrio, o studium, que significava esforço e estudo, e a docta pietas, uma piedade ou devoção sábia, activa e moderna, a devotio moderna, eram os meios principais do ser humano melhorar e se abrir ao espírito e à Divindade, tal como eu expliquei bem na introdução e biografia de Erasmo, no seu Modo de Orar a Deus, uma obra ainda bem anotada e valiosa.
O 6º propósito a assumir-se seria: «A invocação frequente e fervorosa do grande poder e socorro do Arcanjo S. Miguel, através do exorcismo do Papa Leão XIII», que mistura salmos do Antigo Testamento, citações do Novo Testamento e orações ao Arcanjo, e que se encontra hoje disponível online. 7º Reconhecer-se «que o demónio é a causa de todas as contestações, que afligem a Igreja, e de tantas perdas de fé e de paz social e das consciências», equacionando demónio e soberba, propondo a humildade, que será a 1ª, a 2ª e a 3ª condição de santidade, segundo S. Agostinho.
Que dizer,  desta obrinha piedosa e católica? Que as pessoas sintonizem e descubram mais o seu Anjo da Guarda ou mesmo o Arcanjo de Portugal ou, quem sabe, o espírito celestial denominado S. Miguel, nomeadamente em momentos de aspiração mais ardente e orante, seguidos de meditações profundas, porque então as crenças infundadas e até violentas, apocalípticas e nacionalistas dissipar-se-ão e, na luz e bênçãos recebidas poderão antes ter as suas compreensões e vivências interiores espirituais e transformadoras, e dos Anjos ou mesmo de espíritos celestiais superiores, mais próximos da Fonte Divina, para uma limpeza da negatividade imperialista e consumista poluidora e destruidora da Natureza, para uma melhoria da Humanidade e do Planeta...
                                           Lux - Amor - Pax

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