quinta-feira, 30 de abril de 2020

A partida de Antero de Quental, descrita por Oliveira Martins a Eça de Queiroz, comentada.

                   
Quando vou deitar o corpo ao fim do dia, em geral bem activo mentalmente, ainda sinto um último assomo de vontdade de imersão e partilha do conhecimento e então escolho uma estante, percorro pelo olhar os livros dela e selecciono um ou dois que levo comigo, para folhear, sentir e decidir se vale a pena anotar ou mesmo gravar.
Quem tem problemas de sono, de adormecimento, poderia ter até uma estante com livros apropriados, não digo que funcionando como soporíferos pelo desinteresse que causam mas por serem calmantes, harmoniosos, belos, preparando-nos mesmo para sonhos bons.
Ora ontem de uma estante retirei dois, um sobre o escritor Afonso Gaio, da Lita Scarlatti, uma arguta pensadora que escreveu sobre alguns dos nossos temas históricos mais interessantes, tais como os Painéis de Nuno Gonçalves e o D. Pedro das 7 partidas, o outro foi a Correspondência de J. P. Oliveira Martins, que adquirira não há muito e que acabou por ser o que prevaleceu na "sua" vontade (do livro, do autor ou da minha interacção com ele?)  de o ler e até, ao vento de uma gravação ou escrito, semear...
 Ora entre as dezenas de cartas transcritas pelo seu filho, uma delas saltou-me ao de cima e imediatamente decidi lê-la e gravando tal primeira leitura, com os comentários que me brotassem. E disso resultou o vídeo que vai no fim, restando agora transcrever a valiosa carta e acrescentar um breve comentário:
«Meu caro José Maria 
Muito obrigado pela tua pergunta telegráfica. O nosso Antero cedeu por fim à tentação constitucional da sua vida. Morrer era-lhe uma obsessão. Matou-o principalmente o clima enervante de S. Miguel que estonteia os mais fleumáticos. No meio desta aflição consola-me sequer de que não morreu vítima de nenhuma dificuldade maior: nem dinheiro, nem doença, nem mulher. Nada. Matou-o a sua imaginação exacerbada pelo capacete do ozote  (ozono) de ilha. Era uma tentação antiga: duas vezes o desarmei, e uma no instante em que se ia matar. E então havia um motivo mulher. O nosso pobre Antero não tinha a filosofia bastante para perceber que da vida nem vale a pena nos desfazermos.
Era um alucinado da metafísica e provavelmente acabou julgando ir viver num mundo melhor. Acabou-se. Adeus.
Abraço-te meu José Maria, abraço-te n'elle.
Oliveira Martins.»
 
A morte era-lhe uma tentação ou atracção constitucional e obsessiva, diz então um dos seus maiores amigos, respaldado nos muitos momentos em que estiveram juntos e na sua obra poética onde tal palavra, tema e realidade tantas vezes está presente. Talvez possamos pensar que Antero de Quental tinha já um pressentimento ou intuição do seu destino e de como depois de a cortejar e poetizar tanto acabaria por se entregar a ela voluntariamente, em vida, e não num noivado de sepulcro depois de uma morte natural.
Era uma matriz que estava em si e que soubera desafiar enquanto líder estudantil, enquanto espadachim em duelo de desagravo literário no Porto com Ramalho Ortigão, enquanto revolucionário socialista desafiando o marasmo burguês com as Conferências do Casino ou nos encontros no meio do rio Tejo com os representantes da Internacional Socialista, enquanto embarcadiço  na viagem marítima tempestuosa aos Estados Unidos da América, que tanto o desiludiu, e, finalmente, nas relações amorosas nas quais o coração sensível e intenso como o dele pode ser ferido quase de morte, ou não fosse ele um cavaleiro de Mors-Amor, tal como Oliveira Martins relata embora exagerada ou dramaticamente (Antero a matar-se diante de outra pessoa?), em relação à sua última paixão, em 1878, com a Clotilde que ele conheceu nas termas francesas de Bellevue, quando andava na procura da cura psico-somática.
 Contudo Oliveira Martins sossega Eça de Queiroz, que escreveria pouco depois demoradamente o seu mítico texto para o In Memoriam de Antero, no qual Oliveira Martins também dá um contributo notável, até merecedor de ser equacionado com esta resposta mais telegráfica, mas que alongaria demasiado este texto.
Antero matara-se, segundo Oliveira Martins, pela sua imaginação excitada pelo capacete climatérico insular, exacerbada pelos problemas que o rodeavam, e que intensificaram a sua característica de "alucinado da metafísica". Dá contudo com esta expressão mais veracidade à capacidade visionária de Antero, algo que já surpreendera a "luso-alemã" Carolina Michaelis, conforme a advertência que fez ao tradutor Wilhelm Storck  da qualidade e sinceridade dos sonetos de Antero, que seriam vivenciados por ele quase que vindos do inconsciente.
 Já ao contrário,  Oliveira Martins, mais pragmático ou utilitarista e pouco metafísico, considerando que a vida vale tão pouco  que não se justifica morrer-se desfazendo-se dela, ou suicidando-se, acha que Antero teria sido limitado na sua filosofia, pois matara-se pela vida. 
Ora é evidente  que, pela sua proverbial sinceridade e entrega plena à vida, Antero de Quental era um homem de causas, de missão, e sentindo-se já sem elas, ou mesmo desiludido delas, conforme se dera uns meses antes com o naufrágio da reacção da Liga Patriótica do Norte que ele liderara face ao Ultimatum do imperialismo inglês,  ultrapassada há muito a fase poética (desde 1884, antes mesmo da publicação dos Sonetos em 1886), transmitido o seu pensamento filosófico, ainda que abreviadamente, com a publicação das Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, em 1891, e tendo de separar-se das suas duas pupilas agora mais crescidas, sentiu que chegara a grande hora de tomar a sua cicuta, como Sócrates, a quem aliás se comparara no sentido de que, mais do que escrever, gostaria de exercer o dialogo maiêutico e ter um discípulo como Platão. E assim partiu voluntariamente e ousada e arriscadamente através do abraço ou da mão da Morte, que tanto amara, para o mundo espiritual, num banco do jardim sossegado, ou talvez espantado, na noite imensa, na pequena ilha no meio do Oceano.
Diz ainda com alguma perspicácia, ironia e descrença Oliveira Martins, que Antero  "provavelmente acabou julgando ir viver num mundo melhor. Acabou-se".
Para que níveis do mundo subtil e espiritual Antero foi não sabemos, nem vamos agora especular, Não "acabou" pois, e talvez a bela e sentida frase de camaradagem inter pares ou comuns amigos que ele lança em seguida para Eça seja até um prova disso: "abraço-te nele". Ou seja, abraço-te ao modo dele, abraço-te como se Antero estivesse também a abraçar-nos, no seu corpo espiritual, constitucional e imortal, ou abraço-te na comunhão do seu espírito e alma.
Possamos nós aprofundar a nossa identidade espiritual, purificar e concentrar a nossa visão interior, na comunhão com o corpo místico e o Graal da Tradição cultural e espiritual Portuguesa, e com os mestres, santos e santas e os anjos, na adoração divina.
                  

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Mumtaz Mahal. No dia de aniversário, um tributo ao Amor que a uniu imortalmente a Shah Jahan

A jovem persa Arjumand Banu Began nasceu do prudente conselheiro Asaf Khan e de Plomdregi Began em 27 de Abril de 1593, em Agra, na Índia sob o domínio da dinastia mogol, e veio a ficar noiva em 1607 do então príncipe Khurram, filho do 5º Imperador mogol Jahangir e da princesa indiana Rajput Jagat Gosain, pois Khurram, o futuro 6º Imperador mogol sob o nome de Shah Jahan, o Shah ou Rei do Mundo, vendo-a e sentindo-a, fora ferido pelas setas íntimas e beatificantes do Amor. Vieram a unir-se após sete anos de espera luminosa em 1612, recebendo ela então o nome de Mumtaz Mahal, a Eleita ou a Mais Elevada do Palácio, e viveram uma unidade plena de dinamismo e amor, na invocação Divina.
                                      
                                      
           Duas faces de Mumtaz, uma antiga e uma actual, pela artista Daniela Pace Devisate.
As celebrações da núpcias foram magnificentes e a jovem tornou-se verdadeiramente a sua mulher amada (já que ele teve mais duas, como era usual no Islão), companheira e conselheira nas constantes expedições e viagens, dando-lhe quatorze filhos, no parto deste último desprendendo-se da terra, em Burhanpur, no Decão indiano, onde estava como expedicionário ao lado do amado, apenas com 38 anos, certamente algo exangue de tanta dádiva das suas entranhas. Shah Jahan sofreu muito, os cabelos esbranquiçaram, celebrou com profundidade e poesia a partida dela, mas logo começou a congeminar e a construir (de 1631 a 1653) um túmulo digno dela e do amor infinito que os avassalara e unira, contendo em si ínumeras orações e poemas a ela e ao Amor divino dedicados e nos mármores e pietra dura incrustados, e assim temos hoje o que é por muitos considerado o mais belo monumento do mundo, o Taj Mahal, verdadeiramente um fruto imortal dos dois e da civilização da época.

 Tal como o é terceiro filho deles, Dara Shikoh, o príncipe primogénito que seria morto por um irmão ambicioso e fanático, o execrável Aurangzeb, que findaria com os sonhos de uma unidade religiosa supra Islão e Hinduísmo, para o qual Akbar e o seu bisneto Dara Shikoh tanto tinham trabalho e desenvolvido, o 1º com a Religião Divina, Dīn-i Ilāhī, onde participaram missionários  de Goa, e o 2º com as suas traduções dos textos de Yoga (nomeadamente as Upanishads que chegarão assim ao Ocidente através da tradução de Anquetil-Duperront) e a sua comparação com os do sufismo islâmico. Realizei algumas traduções das suas obras, comentando-as, audíveis no Youtube, e fundei uma página dedicada a ele no Facebook...
 Celebrando-se hoje 27 de Abril o seu aniversário de nascimento resolvi, e porque peregrinei também duas vezes a Agra e ao Taj Mahal, oferecer a tradução realizada agora do relato do cronista Qazwini do casamento, tal como se encontra na obra Taj Mahal, The Illumined Tomb, an anthology..., por W. E. Begley e Z. A. Desai, impressa em 1989, sob os auspícios do Agha Khan Programe for Islamic Architecture, um excelente trabalho.
                                  
«Uma vez que a perfeita Sabedoria, que ornamenta a câmara do Sol e da Lua, nas nove varandas da esfera revestida a ouro, tinha pedido que, no firmamento da existência, quando as estrelas felizes se conjugam com os planetas auspiciosos, cada Júpiter feliz deve procurar união com uma face de Vénus, e cada Sol de honra deve seleccionar o amor de uma face da Lua para que a conjunção da sua união possa gerar frutos de honra e felicidade.
Consequentemente, quando tinham passado na idade de Sua Majestade o Rei de exaltada fortuna  21 anos lunares, onze meses e nove dias; e a nobre idade da Senhora Mumtaz al-Zamani atingira 19 anos, sete meses e dois dias, e um período de cinco anos, três meses e dois dias decorrera desde o pedido de casamento, o falecido Imperador Janmat Makani [Nuruddin Muhammad Jahangir], o brilho de cuja mente  era o sol do dia da fortuna e a lua da noite da felicidade, tomou sobre o seu augusto eu a tarefa de arranjar a festa-banquete do casamento desse valioso noivado da família da criação. Ele providenciou que os meios da festividade e os requisitos de alegria e prazer fossem de tal grau que condizessem com os dos imperadores de elevada grandeza. 
Na noite de Sexta feira, o 9 do mês de Rab'i, o ano 1021 Hijri (10 de Maio de 1612), correspondendo ao 22 do mês de Urdibihisht, do 7 ano da acessão do imperador Jahangir:" Na altura em que a estrela ascendente era favorável/ os olhos mereceram encontrar um com o outro (ou um ao outro)".
E nessa auspiciosa noite, da qual a Noite do Poder (Shab- i-Qadr)
e a noite da Partilha (Shab-i-Barat) poderiam derivar glória e honra
as luzes do festival das lâmpadas das estrelas e as iluminações das tochas e lanternas brilharam assim na terra como no céu.

"Uma noite mais brilhante que o dia da juventude/
Adicionando ao prazer a delícia e realização do desejo",

Assim essa cama de fortuna e esse leito de magnificência da Senhora Mumtaz al-Zamani teve a honra de chegar à casa do sol da esfera da soberania; e essa luz do céu e castidade tornou-se a associada da felicidade eterna pela conjunção com a auspiciosa estrela do firmamento do califado.  E quando as duas luminárias do zénite da glória e beleza tiveram a sua conjunção numa constelação, elas embelezaram a cama do quarto da fortuna e da auspiciosidade. Os pais celestiais (as Estrelas) derramaram sobre eles as pedras preciosas do cesto das Plêiades e pérolas das constelações vizinhas. E as mães terrestres (os quatro elementos) trouxeram os seus presentes para o desvendar nupcial (ru-numa) produtos caros de minas e pedreiras e a colheita mais escolhida do jardim do Éden. Os santos das esferas celestiais e os residentes na extensão da Terra soltaram a língua das congratulações e votos auspiciosos. O som do tambor da festividade e o clarim da alegria fizeram dançar as esferas que revolvem, enquanto que a senhora Vénus, tocando a a sua harpa (qanun) do interior da cortina (parda), fazia a performance das canções de alegria e prazer.
E  o dispensador da ampla mesa das recompensas espalhou variadas delicadezas das sete terra (i.. dos sete lugares entre o Irão e o Turan atravessado pelo Rustam) e do repositório de presentes- recompensas (khil'at-khana) vestes de honra de tecidos bordados a ouro e brocados foram entregues a grandes e pequenos, a jovens e idosos.
 Devida à atenção extrema e ao cuidado que Sua Majestade Jannat Makani (Jahangir) manifestou para assegurar a grandeza de tão ilustre e gloriosa ocasião, antes da realização da cerimónia de tão auspicioso e afortunado casamento, ele agraciou com a sua visita a casa de Yamin al-Daula Asaf Khan, que era então intitulada I'tiqad Khan, e durante uma noite e um dia iluminou a assembleia  dessa festa de alegria e prazer. E alguns dias depois, quando tal auspiciosa ocasião festiva e realização abençoada tinha concluído, ele de novo embelezou com a dignidade da sua chegada a residência parecida com o Paraíso onde Sua Majestade o Rei de exaltada fortuna, na companhia de todas as senhoras veladas por detrás das cortinas da castidade e as ocultadas da mansão da soberania, por causa da grande alegria e prazer que ele sentiu nesta conjunção de dois planetas auspiciosos.
E quando o falecido Imperador agraciara com a sua vinda a assembleia de alegria e de realização dos desejos, e iluminara esse encontro convivial (mahfil) de boa disposição e deleite nessa abóbada de recreação. sua Majestade o Rei de exaltada fortuna, executou a cerimónia de recepção pa-andaz peshkash (tributo-presente) e apresentou uma oferta de jóias de incalculável preço e têxteis e objectos preciosos que agradam ao coração ao seu pai (Akbar) agora tendo o empireu como o seu trono, e tudo era visto com a sua beneficente aprovação.
E depois das núpcias e casamento, de acordo com o costume e a prática dos regentes desta casa do Califado, os quais, quando querem distinguir com grande honra um daqueles que  agraciam o leito real da Fortuna, outorgam um título apropriado, 
Sua Majestade o Rei de exaltada fortuna, discernindo  que a incomparável Senhora, cujo nome auspicioso real era Arjumand Banu Began, ser de  dignidade pesadíssima na balança da capacidade e do mérito perfeito face à pedra de toque que é a experiência; e reconhecendo também, quanto à sua aparência de beleza, que ela era a chefe e a eleita (Mumtaz) entre as mulheres do seu tempo e as senhoras do universo, deu-lhe o título de Mumtaz Mahal Began, para que tal sirva por uma mão como indicação do orgulho e glória dessa seleccionada da época e, pela outra mão, que o verdadeiro nome ilustre dessa reputada neste mundo e no posterior, apropriadamente não possa ocorrer nas línguas do povo comum. E no livro dos conteúdos auspiciosos, ela será mencionada ou como Sua Majestade a Rainha (Mahd-'Ulya) ou como Mumtaz al-Zamani (A eleita do tempo)».
                                                                   

sábado, 25 de abril de 2020

O halo de tocante quixotismo de Antero de Quental, por Sant'Anna Dionísio. Texto e gravação.

Sant'Anna Dionísio, a 11 de Novembro de 1933, na ilha da Madeira, onde foi professor liceal durante cinco anos, proferiu uma conferência intitulada Tentativa de definição e explicação do que talvez seja permitido chamar o fracasso de Antero, a qual veio a ser inserida num livro, Atlântidas, dado à luz na cidade invicta portuense, em 1940, a capa azul clara tendo um apontamento seu de uma visão crepuscular do Cabo Girão. E foi tal conferência (certamente proferida com a sua delicada e sibilina voz), lida e comentada em vídeo (que se encontra no fim) a 25 de Abril de 2020, em Lisboa, por Pedro Teixeira da Mota que, valorizando também Antero de Quental e tendo convivido bastante com Joaquim Augusto Sant'Anna Dionísio (1902-1991), resolveu homenageá-lo  e à sua dedicada e subtil amizade a ou com Antero de Quental (1846-1891).
 Transcrevamos o primeiro e um ou outro dos parágrafos para tornarmos o belo texto acessível pela web.
«A admiração não é idolatria nem pasmo: é a exprimível compreensão dum elevado valor. Se queremos pois, dar alguma prova de admiração por um homem tentemos explicar, em primeiro lugar, o merecimento da sua obra e, em seguida, o valor dos seus próprios merecimentos íntimos, virtuais. Porque, se é certo que em alguns casos as circunstância se concertaram com tal animosidade que a obra é apenas um sinal de que era possível. A explicação do valor de Antero de Quental implica, parece-nos, precisamente um desses problemas: para o exprimir não é bastante a invocação da sua obra; é necessário perscrutar os indícios das virtualidades espirituais que a custo e insuficientemente se traduziram. Doutro modo nem se atinge o significado do que mais vale na sua obra fragmentária nem a compreensão dum dos mais importantes elementos do seu drama»
Em seguida explica como no restante da sua obra a filosofia está presente, nomeadamente nos seus «dois ensaio filosóficos, realizados, um, para pôr em evidência as insuficiências das explicações naturalistas dominantes e, o outro, para apontar as tendências convergentes o pensamento europeu (...) Daí resulta que, embora a cada momento vejamos invocá-lo como poeta-filósofo, pouco são os possuidores da consciência de que Antero não deve ser designado como filósofo simplesmente por ter coroado a beleza das suas poesias de impressionantes sugestões metafísicas, mas por alguma coisa mais»...
Mostra-nos Sant'Anna Dionísio então como desde os 17 anos a palavra Filosofia começa a aparecer com frequência nos seus incipientes escritos, mostrando a sua vocação filosófica, embora Antero seja em geral visto apenas como poeta e como revolucionário e líder de movimentos, e como  ele próprio na  carta autobiográfica de 14-V-1887 a Wilhelm Storck desvalorizara tais dispersões: «Consumi muita actividade e algum talento, merecedor de melhor emprego, em artigos de jornais, em folhetos, em proclamações, em conferências revolucionárias».
 E continua assim Sant'Anna Dionísio (à esquerda na fotografia): «Por estas confidências se vê que Antero, no fim da sua vida, via ter sido um desvio do seu destino as sucessivas experiências e veleidades de acção imediata, muito ingénuas algumas, e todas fracassadas em que se envolvera.»
Aqui permito-me discordar de Sant'Anna, pois não as vejo como fracassadas e, seguindo dois valiosos preceitos orientais expressos na Bhagavad Gita, "yoga é habilidade na acção", Yogah karmasu kaushalam II.50, e "tens direito à acção mas não aos seus frutos", ou no original "tens o direito de realizares os teus deveres mas não a apropriares-te dos seus frutos", II,47, considero tais intervenções  valiosas seja para os participantes seja para a história da época. E mais que admitir que os frutos fossem insignificantes valorizo o estoicismo e o desprendimento de Antero de Quental, que foi na sua vida um claro exemplo vivo dessa qualidade yóguica denominada vairagya, que conheceria porventura até de textos budistas que lera ou das suas conversas com o seu grande amigo orientalista Guilherme de Vasconcelos Abreu. Antero foi, embora sem votos, um peregrino livre da Verdade ou, como se diz na Índia, um sannyasin...
 Todavia, Sant'Anna reconhece algo do valor da acção, embora desvalorizando a sua essencialidade em Antero, declarando logo a seguir: «Bem sabemos que são essas experiência sinceras e ingénuas (e sempre mal sucedidas), que dão à vida de Antero o halo de tocante quixotismo sem o qual não há significação e beleza transcendente na vida dos homens. No entanto, não acreditamos que essas experiências respondessem às suas mais íntimas solicitações, ao que podermos talvez chamar a intelectual essência da sua personalidade».
"A intelectual essência da sua personalidade", diz Sant'Anna, certo, há-a, mas é bem menos importante que a "plena manifestação da sua essência individual" (com o seu nível espiritual acima do intelectual), essa que surge por vezes em nós em "íntimas solicitações", ou voz da consciência, e que tinha de se exprimir tanto na acção como na reflexão, escrita, contemplação, adoração. 
Discordamos também da citação que faz em seguida de Oliveira Martins, também ela bastante conservadora, e no vídeo explico bem porquê, e como devemos ler com uns grãos de sal a antítese posta em destaque por Sant'Anna: «O gosto ascético da reflexão já em Coimbra nele se manifestara descontente e superior a essas fugas da sua personalidade para a acção», pois tal balancear é natural e necessário em todos os seres e em especial aqueles que para além da vida instintiva, gregária e profissional da acção sentem também tanto a necessidade de se recarregarem internamente, recolhidamente, como também de responderem ou sintonizarem o apelo perene do auto-conhecimento, da busca da verdade e da religação espiritual e Divina.
Cerca de 30 minutos de leitura, das páginas 67 a 71 das Atlântidas, com comentários. Pode ser que goste...
                          

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Para a História Psico-Espiritual dos Livros e do Amor a eles e seus Autores.

A arte de chegarmos à alma dos livros, de amarmos os livros com resultados valiosos, para além de lermos e gostarmos deles, requer uma aprendizagem amorosa persistente, sacrificial por vezes, e momentos de maior aproximação e investigação, unidade e desvendação.
                          

Conversando há tempos com o Nuno Franco e a Filipa sua mulher, na sua simpática mas pequena livraria (Alexandria) para a quantidade de livros que está constantemente a adquirir no caudaloso rio da circulação dos livros em segunda ou muitas mais mãos, a propósito de um artigo raro de Mário de Sá Carneiro publicado numa revista em 1912, disse-me ele que conhecia quem poderia estar interessado nele, e falámos um pouco da bibliofilia que animava esse amigo e outro, e das cosmovisões literário-bibliófilas que tinham, um deles lendo bem alemão e coleccionando as edições originais de Mishima.
Ora este amigo, o Jorge, entrevistado há tempos sobre o que era um verdadeiro coleccionador de livros, respondeu que era aquele capaz de ir até às últimas consequências, ou seja, tentar adquirir as obras nas suas edições originais e se possível assinadas pelos autores por neles estarem o máximo da energia dos escritores, pagando o que tivesse que ser.
Bem, disse eu, levar as suas últimas consequência, para mim, seria estar disposto a morrer pelo livro. Ou então amá-lo com a intensidade com que se ama um outro ser, ou uma mulher com quem nos fundimos.
Claro, penso agora, olhando para as centenas de livros que estão na minha grande estante, quantos é que eu poderei verdadeiramente amar com grande osmose qualitativa, de tal modo que eu pudesse dizer: - Amo mesmo este livro plenamente, por isto e aquilo? Poucos. E morrer por eles ? Nenhum...
Mas se o morrer não for pelo livro físico, mas pelas ideias e ideais que representa?
Bem, neste caso certamente que alguns de nós conseguirão não se vender nem corromper e perante a ameaça da morte morrerão pelas suas ideias e eventualmente tendo na cabeça ou no coração alguns autores ou livros.

                                      

Seria bem valioso investigarem-se algumas mortes, fuzilamentos e mártires de qualquer espécie e religião (em cima, o místico não-dualista Hallaj, de quem Louis Massignon publicou o seu intensíssimo Diwan, aqui em corpo-poema de paixão e sangue), e conseguir-se retratarem-se os últimos pensamentos e imagens que neles se originaram Talvez se discernissem os seres e livros mais inspiradores em tais momentos. Uma ideia original, penso, que daria até para um instrutivo filme (clarividente...) acerca dos grandes auxiliares no momento da morte, os passadores ou psicopompos da história da Humanidade, desde Hórus e Anubis, a Orfeu e Hermes, até chegarmos a Krishna, Jesus e Nossa Senhora da Boa Morte. 

Há contudo algumas obras religiosas que já realizaram bastante isto, ao desenharem a morte, seja de santos e a verem já quem do mundo espiritual os acolhe, seja sobretudo de missionários cristãos na saga dos Descobrimentos, proferindo os nomes invocados, tal como podemos ver na seguinte gravura, em que um missionário ocidental exclama ao ser trespassado como mantra de amor e destino, "Jesus Maria", título até de um ou outro livrinho devocional ou de jaculatória e que para um cristão tinha quase tudo ao incluir a a polaridade masculina feminina do divino.

                                       

Partilhei no diálogo algumas reflexões sobre a energia dos livros, e como é bem diferente lermos um livro feito há 100 ou mais anos de que o exemplar reeditado nos nossos dias. Ou ainda, como cada ser que lê o livro deixa certas energias que se adicionam ao campo energético-informativo que o rodeia ou mesmo constitui...
Entramos aqui no cerne de uma questão escassamente investigada ou debatida, mesmo pelos poucos bibliófilos espirituais: - Os livros têm alma, têm energias, que até, por exemplo, quando ele arde, se desprendem?
Uma questão bem complexa, que nos pode levar às várias Inquisições e queimas de livros ao longo da história, com o que foi sentido e criticado na época (e que deu origem no Renascimento às fabulosas Cartas dos Varões Obscuros, de Ulrich van Hutten, às quais se atribuiu a co-autoria a Erasmo) e não é por acaso que ainda hoje no meu emprego de catalogador de livros descrevi resumidamente para o catálogo de um leilão a reimpressão dos Opúsculos contra o Santo Ofício, escritos no séc. XVIII pelo Cavaleiro de Oliveira, um autor que foi tanto libertino, quanto livre pensador mas que no fim acabou em protestante exaltado. 

Ora como há pouco seres clarividentes que consigam ver a energia contida nos livros e que eventualmente emana deles e que eventualmente sai ou volatiliza-se definitivamente quando ardem, o que poderemos utilizar para dar uma imagem de tal fenómeno?
Será vermos a amplitude do pêndulo face a cada livro, ou tentar medir com aparelhos tipo Kirlian, ou ainda tentar com sorte fotografar algo de mais subtil que irradie deles?
Vejamos uma fotografia tirada por mim há pouco tempo:
                                  
Claro que se pode dizer que é apenas uma distorção mecânica e assim é de facto, mas o que podemos com a imagem aprender é a desfocarmo-nos também da excessiva fixação nas formas precisas que o olhar capta e antes vermos, intuirmos ou sentirmos mais o movimento das partículas e ondas que sabemos constituírem o universo, tanto material dos livros como anímico e espiritual, com o famoso mistério da consciência de si e em si (que parece ser derivada do cerne do Divino em nós), em acção de observar...
Se conseguirmos entrar ou saltar para os níveis mais interiores, finos e subtis da consciência, certamente   dependentes do estado corporal e cerebral em que estamos, e  das emoções e sentimentos que nos perpassam ou autorizamos ou mesmo cultivamos, assim se densifica ou resplandesce a consciência em si, o espírito em nós e logo variando a capacidade menor ou maior de percepção nos planos subtis dos seres e das coisas, nomeadamente dos livros e dos seus conteúdos.
Claro que a investigação da consciência é uma demanda em aberto, não se fechará nunca, dada a irredutibilidade da subjectividade de cada um, o que afecta ou condiciona a consciência pura, já que cada um só pode sentir-se a si mesmo e de acordo com a energia, atenção, inteligência e amor a que se devota a tal função ou prática.
E será só a partir desta unificação próxima do cerne de nós próprios é que podemos chegar ao cerne dos outros, nomeadamente das coisas e dos livros, se neles nos concentramos e unificarmos na medida correcta..
Esta individualidade impenetrável e quase inacessível do centro da consciência é inegavelmente uma pedra de tropeço nas pessoas mais mecanicistas e materialistas, pois se fossem apenas átomos e  ligações entre zonas do cérebro por neuro-transmissões a criarem a noção de consciência de si, então esse eu não teria a continuidade e profundidade que apresenta em nós, nem sequer haveria tantos segredos no inconsciente, fermentações e metamorfoses em espelhos, paramentos ou corpo subtis de um eu-consciência com múltiplas subconsciências bem patentes em sonhos e visões...

Mas voltemos às imagens dos livros, desfocadas que sejam, mas que possam sensibilizar o nosso ser para percepções mais subtis:
                          
Estarão os livros sempre a emanar energias, partículas, sinais subtis do seu conteúdo, melhor ou mais verdadeiro, e estado material, neste último caso podendo dizer-se que um volume com o papel a desfazer-se apresenta uma irradiação muito menor ou menos luminosa que outra? Ou será que é o seu conteúdo que importa ou vale mais
Deveremos então distinguir entre as fontes físicas e as psíquicas dessas energias, ou a intuição segue um todo e escolhe por essa percepção subtil?
Posso eu olhar para uma prateleira e sintonizar com o livro e discernir o que envia ou irradia mais energias de cada um dos níveis, ou antes a percepção é mais unificada e geral? 
Talvez no nível físico um grande bibliotecário possa, olhando para cada encadernação,  discernir a que está a precisar de creme na pele ou mesmo intuir a que "geme" interiormente, pedindo ar, limpeza ou mesmo restauro nas folhas. 
No entanto, normalmente, o mais importante será no nível psíquico intuirmos o que tem melhores informações e energias, ou seja mais apropriadas  e, logo, mais visíveis ou perceptíveis.
Quanto tempo é que deveremos contemplar a prateleira até podermos intuir o livro que devemos buscar e abrir, e assim desempenharmos bem a função de biblioterapeutas, seres capazes de curaram males da alma e do corpo, da ignorância ao desânimo, seja nossos sejam dos que visitam a nossa biblioteca ou livraria?
Bem, não há medidas de tempo, mas na minha experiência por mais de uma vez acordando, fazendo algumas leves harmonizações ainda deitado, fixo os olhos mais demoradamente numa prateleira até discernir que livro palpita, estremece em reverberações de pontos luminosos, e levanto-me vou direito a ele e tem sido sempre altamente apropriado e significativo, com histórias mirabolantes...
                            
Outra hipótese, ao contrário no curso do Sol, será ao deitar, pegar em alguns livros, observá-los, lermos algo de cada um , até chegarmos ao que nos faça dizer "é este".
E é este que vou levar da estante, para ainda ler, anotar ou partilhar, ou finalmente dormir com ele ao lado da cabeça ou do coração, quem sabe sonhando ou viajando com o que da alma dele se exalar...
Não é muito difícil então pelo menos irmos diariamente ao adormecer comungar mais com um livro, que folheamos ou lemos alguns minutos e depois já de olhos fechados pensamos ou meditamos nele, para por fim entrarmos na noite imensa, quem sabe se navegando nesse barco-livro no grande oceano da existência, do amor e da sabedoria.
 Todavia, o que recomendo mais no aspecto de discernirmos mesmo o livro que da estante mais nos chama, ou mais vibra, será essa prática de manhã ao acordarmos ou pouco depois, ou então de noite com pouca luz, quando a palpitação da estrutura etérica ou subtil do universo e das coisas, livros e pinturas se nos torna mais perceptível ao nosso olhar.
Mas, certamente pode-se pôr em causa, e com razões, se será esse livro o que mais energias têm ou emana. Na realidade, também eu penso  que é mais aquele que ora por certos factores pulsa mais ora porque é mesmo o mais apropriado a nós, e portanto é investido dessa palpitação e luminosidade por tal relação pessoal, quem sabe o nosso próprio olhar psíquico investindo-o de tal..
  Na realidade se é o livro que palpita e irradia mais por si, ou se somos nós que o intensificamos, seja inconscientemente, seja  conscientemente mas pelo tal cerne de nós próprios ou espírito que nos escapa em grande parte, isso fica à consideração dos leitores, acrescentando ainda outra causalidade possível  é a da participação subtil inspiradora dos autores dos livros dentro dá comunhão no Corpo místico da Humanidade, também denominado Campo unificado de energia, informação consciência em que estamos todos interligados e que portanto sintoniza, ressoa, vibra relacionalmente connosco...
Boas inspirações e comunhões com os livros, autores e sua sabedoria perene, rumo ao espírito, ao corpo místico da Humanidade e à Divindade, para que o planeta melhore as suas condições de vida para todos!

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Dia Mundial do Livro de 2020. Recomendações: "Evocando Fernando Pessoa", "Da Alma ao Espirito" e bons autores portugueses que conheci.

                                           Dia Mundial do Livro de 2020.
I. - Breve reflexão sobre os livros e suas almas, estas que poderemos explicitar como as energias subtis com que eles foram gerados mais as  acumuladas ao longo do seu percurso de vida, em geral bem maior que o do ser humano e que têm várias fontes ou proveniências, desde a intencionalidade de quem as gerou psiquicamente até às dos seus leitores-manuseadores, as quais se depositam nos livros com maior ou menor intensidade, ainda que tal nos escape quase completamente, apenas podendo supor-se ou sentir-se algo pelas anotações ou dedicatórias mais sentidas ou assinaladas. Ou ainda que seja, por uma aura indefinida que vive subtilmente nos livros e que se acrescenta à nossa estante, biblioteca ou casa. Ou mesmo à nossa alma, impulsionando-nos para novas modos ou dinamismos de ser e  agir, manifestando-se até nos sonhos ou gerando compreensões mais inspiradas...

Saibamos nós cultivar livros já com história, ou mesmo assinados, anotados, seja por nós ou outros, por vezes dialogando mesmo de novo.  Ou saibamos ainda volta e meia olhar para trás interiormente e lembrar-nos de alguns livros que mais nos impressionaram...
                                 
II - O texto que fotografámos, na última página de um livro editado nos anos 50, produto de uma mentalidade não só de exclusivismo comercial mas também de insensibilidade anímica e cultural, mereceria ser acrescentado ironicamente nessa sua carga: «Defenda a sua virgindade não lendo livros já tocados ou quem sabe influenciados por anteriores leitores, não importando a qualidade das suas anotações visíveis ou invisíveis... Mantenha-se dependente só do que é proposto pelas editoras actuais.... Esqueça-se dos livros antigos, esgotados ou raros e da sua sabedoria...»

Vá lá que o novel corona vírus não tem muitas apetecências culturais e não se fixa nos livros durante algum tempo, senão os livreiros alfarrabistas teriam mais dificuldades em prosseguir a sua nobre missão de transmissores de cultura e de livros já invulgares, raros ou até muito demandados. Mesmo assim as medidas parvas (de parvulas, pequenas) de alguns confinamentos e políticos nem as livrarias deixaram estar abertas diminuindo esse aprivisionamento psíqioco, que contudo a internet em grande medida esbate...
E quem sabe se de novo a mesma frase da fotografia «Defenda sua saúde, não lendo livros usados», não será afixada pelo Amazon ou outros tubarões editoriais como slogan nas capas ou contracapas do livros cor-de-rosa, ou dos trillers de lixo, que tanto ocupam o espaço mental das pessoas onde, ao contrário do que se diz, o saber ocupa lugar. Basta ver quantas pessoa quase se esgotam ao fazer teses, inúteis ou não. E quando o livro é mesmo mau, então rouba mesmo tempo, além de diminuir o discernimento, já tão fragilizado pela lavagem ao cérebro e ataque aos sistema imunitário das notícias televisivas ou radiofónicas. Um bom texto foca o leitor mais na sua ess~encia e na sua melhor caapacidade de compreensão, de Logos.
Seleccione bem ou crie mesmo as suas fontes de informação pessoais. Seja bem criterioso no que lê, ouve ou vê e no que resultará disso...
                                     
III - A Tradição Espiritual e Cultural Portuguesa, que vai passando de uns aos outros pela alma, a voz, o contacto e finalmente o livro, está bem patente nesta recolha de artigos de Francisco Peixoto Bourbon que, depois de ter convivido com Fernando Pessoa nos anos trinta, resolvera nos anos 70 e 80 começar a publicar as suas memórias pessoanas em vários jornais de província. Ainda o conheci e visitei nas terras de Basto, pois era amigo de meu pai e de primos, hospedando-me mesmo na sua simpática casa. Correspondemo-nos bastante, conservando eu inúmeras cartas (com a sua letra difícil, mas que deveria mesmo assim  publicar...) e numerosos recortes de artigos pessoanos que redigia, pelo que é agradável ver alguns dos seus artigos saídos da efemeridade dos jornais, no caso o Eco de Estremoz, para um corpo mais resistente, o livro Evocando Fernando Pessoa, organizado
e prefaciado por um amigo e investigador pessoano bem inquiridor, o José Barreto, que agradece à sua filha Mafalda Bourbon, uma amiga que bem conheço, a gentileza da autorização de publicação.
Um livro a ler-se pelos pessoanos e não só...
III - Recomendar um livro escrito por si próprio, depois dos livros de alfarrabistas e de amigos, é desculpável, pois a fraternidade dos amantes de livros e sua sabedoria é plena de poesia e comunhão e, neste dia Mundial do Livro, porque não ampliarmos também a aura de algum dos nossos tão perdidos ou desapercebidos filhos e suscitarmos nos corpos e almas de pessoas distantes mais algumas aspirações luminosas?
Tal como no de Peixoto Bourbon organizado pelo José Barreto, também neste corre uma transmissão da tradição cultural e até mais espiritual, e já não só portuguesa mas também oriental,  derivada das minhas leituras, viagens, contactos, diálogos, meditações, iniciações e realizações.
                                
Está constituído por 33 capítulos ou textos, alguns que já publicara na net, outros que guardava em papel e outros escritos para o livro, sem qualquer aparato de notas ou bibliografia, sem citações de outros a não ser uma outra frase daquelas que levamos de cor, ou seja no coração e para o além, quais lamelas espirituais no peito dos órficos gregos ou os pequenos papiros egípcios de orações para a entrada luminosa no além.
 Da Alma ao Espírito se chama, um título bem ambicioso, nalguns capítulos mais original ou conseguido, e que recebeu poucos  retornos estimuladores, mas já sabemos que é assim, para aprendermos sentidamente o famoso ensinamento da Bhagavad Gita, 2.47, tens direito à acção, mas não aos seus resultados, bem difícil de se realizar, e que entre nós Antero de Quental foi dos escritores quem mais o valorizou, sobretudo no aspecto de sairmos do nosso egoísmo e entrarmos mais numa dimensão do Bem suprapessoal, pelo que fica-me bem a mim que sou de alguns modos um anteriano tal licção...
Desta Alma ao Espírito há no blogue e no youtube, conferências, diálogos, escritos e transcrições disponíveis.  Embora já tenha tido três edições melhoradas e ampliadas saíram apenas ao todo 500 exemplares, havendo ainda alguns, seja nas Publicações Maitreya, no Porto, da amiga Elisa Flora, seja comigo em Lisboa. Quanto à capa é mesmo bela, graças a uma fotografia da amiga e notável fotógrafa Alice Batista, tirada sob o olhar anímico ou em aspiração de sua filha Cristina. 
Neste Da Alma ao Espírito  será o Espírito, esse grande mistério do ser humano e da Divindade, tão pouco ainda consciencializado nas pessoas, a meta ou fim  para onde se encaminham os vários  capítulos, pelo menos nos ensinamentos para a alma estar mais harmonizada com o que a rodeia e mais alinhada com a centelha espiritual. 
São contributos acerca do que podemos fazer, pensar, sentir, meditar, amar, com a alma, para nos aproximarmos do espírito, para  o começarmos a consciencializar e a ver ou sentir volta e meia, eventualmente, nuns momentos, pois tal é na realidade e quotidiano consciencial a nossa identificação excessiva a uma personalidade horizontal e social e a um corpo instintivo ou animal que fatalmente se gera uma distância em relação à profundidade e qualidade do Espírito.
Continuar a investigar e a vivenciar mais tais relações harmoniosas e o Espírito  e eventualmente surgir um livro esclarecedor e instrutivo sobre ele, e que não seja mais intelectualizações, imaginações, fantasias, mistificações, papagueamentos e enganos, como tanto abundam nos livros da Nova Era,  nas canalizações ou na esoterice portuguesa, é certamente um dos desafios que existem em Portugal e que alguns de nós de certo modo terão e poderão tentar, caso a Ordem do Universo, ou o Mundo Espiritual, o consinta ou mesmo o queira... 
                                                
IV- Para finalizar, partilhemos  fotografias de livros de três autores  com quem tenho mais ligação afectiva e espiritual: entre os portugueses Antero de Quental  e Fernando Pessoa e entre os estrangeiros o alemão Bô Yin Râ (bem difícil de traduzir, para quem sabe pouco alemão...), os três sendo na verdade aqueles a quem consagrei mais tempo, labor e amor, embora Erasmo, Marsilio Ficino e Pitágoras sejam também outros três seres ou fontes de ensinamentos que bem trabalhei...
Talvez deva referir neste Dia Mundial do Livro de 2020 com tanto confinamento, também quatro outros seres portugueses com quem dialoguei bastante e cujos livros são valiosos, e logo bem dinamizadores ou espiritualizantes: Dalila Pereira da Costa, Sant'Anna Dionísio, Agostinho da Silva e Pina Martins, este mais sobre o Humanismo e a Utopia....
Possamos nós nesta época de mudança, ainda de contornos pouco precisos, em que se celebra o Dia Mundial do Livro de 2020 continuarmos firmes na ligação (ou persistente religação) ao Espírito, aos antepassados, inspiradores, Mestres, Anjos e Divindade, na comunhão dos livros e de outras formas de comunicação do Logos, Inteligência e Amor, que nos une, fortifica e dignifica...

Dia do Livro de 2020. Reflexões sobre a bibliofilia e a biblioterapia em Fernando Pereira Tomás.

 Um dos aspectos mais valiosos ou fascinantes do livro, e em especial nestes tempos modernos em que estão a ser postos em causa pela leitura crescente pela internet, reside tanto na sua beleza como na sua durabilidade, quase perenidade, pois embora aparentemente frágeis, e por isso protegidos até por encadernações mais ou menos belas ou sólidas, resistem às vidas de sucessivos possuidores, que vão deixando-os para outros, seja algo vencidos seja desprendidos e felizes, com todo o enriquecimento realizado.
Com efeito, tal como a encadernação, também a preservação, o adicionamento de recortes de jornais, de marcas de posse e ex-libris, de sublinhados e anotações, valorizam bastante o livro tanto na sua materialidade como na sua alma e história subtil, que as entrelinhas e margens desvendam mais ainda quando estão bem anotados e permitem por essa  marginália um enriquecimento da tradição cultural e espiritual a que esse livro e seus leitores estão associados.
Faço esta reflexão ao findar de um dia do inverno, quando estive a ajudar um livreiro amigo a "limpar" numa casa a biblioteca de um comum amigo, bancário, licenciado, sociólogo, e bibliófilo, nomeadamente pelo seu incessante amor aos autores que coleccionava, aos temas que estudava e ao estado de conservação das obras, partido agora para a outra margem da vida, tendo os dois filhos,  em homenagem ao seu amor aos livros, juntado ao seu corpo físico já exangue um exemplar dos Lusíadas de Camões, que ele amava e que assim ardeu ao mesmo tempo que os despojos mortais do pai bibliófilo.
Deixou ele, após ter vendido anteriormente em leilão os principais, ainda assim algumas centenas de livros para chegarem a novos donos e de preferência leitores, o que nem sempre é fácil, sobretudo quando muita da obra é em francês, ou de autores e assuntos menos em voga...
Orei por ele no seu apartamento em Algés, onde o visitara algumas vezes, embora ele fosse mais frequentador e dialogante nos alfarrabistas da Calçada do Combro (nomeadamente da Eclética e da Antiquária do Calhariz), enquanto agradecia poder comprar a um preço modesto várias obras, para ler,  dar e eventualmente algumas vender.
Os milhares de livros que ele leu, e que foi comprando e vendendo,  nestas actividades conviviais prolongando a biblioterapia da leitura,  servir-lhe-ão também para a sua vida no além, eis uma questão que ponho, tendo várias vezes discutido-dialogado com ele, algo agnóstico e reticente às minhas transmissões espiritualizantes.
 Ou será melhor dizermos que ele serviram mais para os seus estudos e gostos em vida, e para melhorar a sua qualidade ética e mental, já que embora forte intelectualmente, culto na literatura francesa, russa e portuguesa, na filosofia e na sociologia das religiões e dos costumes, tradutor mesmo de uma obra grande sobre a história das religiões (para a qual se documentou bem, tendo a colecção Mythes et Religions quase completa e que me vendeu já no fim da vida), apesar de tudo  isso não acreditava em Deus, nem no espírito nem na vida post-mortem, mesmo com as nossas animadas discussões enquanto eu ajudava as catalogações do José Manuel Rodrigues e da sua filha Catarina, da livraria do Calhariz, ao elevador da Glória. Teremos então de ser agora nós a enviar-lhe algumas energias em orações, meditações e lembranças...
« - Desperta, és um espírito imortal, abre-te aos seres espirituais, avança para a Divindade.
- Consigas tu, ó Tomás, despertar a tua alma do semi-sono da ignorância, pois és um espírito imortal e com um corpo espiritual...
 - Possam os melhores ensinamentos que leste e traduziste da história das religiões virem ao de cima como luzes na tua alma e possa algum dos fundadores ou mestres das religiões e tradições derramar uns raios de luz divina na tua alma, contribuindo para o teu despertar e avançar nos planos subtis do Universo.»
De qualquer modo, os livros que vamos lendo, se bem sentidos e assimilados, deixam sementes e frutos na vida post-mortem. Todos nós iremos um dia partir, levaremos consciente ou inconscientemente algumas destilações do que lemos;  e deixaremos de algum modo para os outros  tais instrumentos de saber e cultura, de beleza e realização espiritual. 
Assim, saibamos trabalhá-los bem enquanto dura a luz do dia, antes que sejamos arrebatados e lamentemos não ter realizado o principal, ou lido os que mais gostaríamos ou partilhados os mais importantes, estabelecendo-se quem sabe boas ligações perenes...
Possa esta breve homenagem aos livros e ao intelectual, investigador e  coleccionador Fernando Pereira Tomás, concluída hoje 23-IV-2020, #DiaMundialdoLivro 2020, inspirá-lo, ajudá-lo, iluminá-lo.
 E a nós de seguirmos o conselho perene de um autor que o Tomás apreciava bastante, tendo-o encadernado bem em muitas das suas obras, como vemos na imagem. Ei-lo, um mantra de Antero de Quental e nosso e, no fundo, também da essência dos livros: «um contínuo impulso para a verdade e o bem»...

domingo, 19 de abril de 2020

"A Minha Cartilha" (9ª p. fim), de Teixeira de Pascoaes, lida e comentada por Pedro Teixeira da Mota

Nesta 9ª e última leitura comentada d' A Minha Cartilha, de Teixeira de Pascoaes, finalizada em 1951 pouco antes de partir da Terra e de certo modo o seu testamento ideológico, marcadamente cristão (embora ateu e teísta, como ele se definia paradoxalmente, certamente marcado pela sua incursão como originalíssimo biógrafo histórico-filosófico-religioso de S. Paulo, S. Agostinho e S. Jerónimo) abordamos os aforismos LIII a LX, oito aforismos finais verdadeiramente  ricos  de jogos de opostos e de analogias e intuições fecundas. Escolher dois ou três para transcrevermos não é fácil, e vamos assim resumi-los brevemente, intercalando os três.
 No aforismo LIII fala da sublimação do desejo, da sexualidade e como por tal actividade geramos outros filhos psíquicos, criações literárias, que são irmãos das nossas ideias e sentimentos. São fantasmas ou espectros que podemos ver interiormente e seriam as últimas formas de vida ou já próximas da Divindade. Há nisto um exagero mitificante, porque os mais próximos de Deus serão os espíritos celestiais mais elevados, e nos humanos os mestres, grandes seres, santos e santas. 
Estas personagens literárias são mais como arquétipos, ou podem estar associadas a arquétipos ou modelos psicológicos, de tal modo que podem funcionar nas psiques e nos sonhos, ao consubstanciarem qualidades que assim podem aparecer em visões e sonhos para advertir ou fortalecer as pessoas.
Podemos pensar que como criador literário, admitisse que o seu Marânus e Eleonor chegassem a tal imortalidade, tal como Hamlet e Ofélia, ou mesmo Simão e Mariana (não a Alcoforado...), personagens criadas por Camilo Castelo Branco no Amor de Perdição. Esperanças ou ilusões desvanecidas com a crescente transitoriedade ou efemeridade dos autores e obras no século XXI, embora possamos admitir que um camiliano possa sonhar com Simão e Mariana ou um pessoano com Alberto Caeiro, embora creia que seja raríssimo e bem difícil.
No fim há uma crítica à secura e intelectualismo escolástico, na sua materialização e simplificação esquemática do aristotelismos pois, como. diz cada vez mais a importância e riqueza seja da imaginação seja da alma são reconhecidas como determinantes da percepção da realidade. Oiçamo-lo:
«Ó Santa Teresa! Ó saudosa de Deus! Mas a saudade é o desejo sem posse! É a tragédia do Desejo insatisfeito, que se torna espiritualmente fecundo. Satisfeito, gera animais da nossa espécie; insatisfeito, gera fantásticos filhos, em que a Humanidade se continua idealmente, - um Orestes e Efigénia, um Hamlet e Ofélia, um Dom Quixote e Dulcineia, um Simão e Mariana...
Irmãos das nossas ideias e sentimentos, representando o Reino Psíquico, além do Bio, são as últimas formas da vida ou já próximas da Divindade, mas ainda sensíveis ou reais, porque se fixam na memória, como qualquer árvore ou penedo. E, se sonharmos com o Dom Quixote, vemo-lo com os nossos olhos, que tanto olham para fora como para dentro; tanto abrangem o panorama objectivo como o subjectivo, ou o dos animais e o dos fantasmas. E quem distingue, depois dos escolásticos, entre si mesmo e o seu espectro?»
                                         
                   Um D. Quixote de la Mancha, muito segundo a visão de Teixeira de Pascoaes
No LIV, limitando demais os seres espirituais a criações subjectivas psíquicas ou mesmo cerebrais, considera que Deus será o mais alto da escala psique, na sua inefável transcendência, na ideia que não podemos ter dele qualquer imagem dele, a qual seria pagã, num sentido algo negativo. Penso que está a criticar também as imagens de Deus que fizemos, inclusive a do Pai. Contudo Pascoaes vai longe de mais no sua iconoclastia pois eu penso que apesar da sua transcendência e infinidade a Divindade pode manifestar-se em imagens nas psiques humanas que a procuram correctamente e amam, ou seja pode mostrar proporcionalmente à dimensão humana a sua luz esplendorosa, o seu amor, ou as suas faces de deuses ou deusas conforme a crença do seu adorador perseverante.
Oiça-mo-lo: «Entre os seres espirituais que tem, como paisagem habitável, o nosso crânio, essa esfera, onde os fenómenos vivos são interiores, e não exteriores como na esfera terráquea; e tem, na Arte, a galeria dos seus retratos, esse Museu do Prado, atarantado pela Fealdade do Goya, tão sublime como a Beleza de Rafael, Deus ocupa, é claro, o mais alto da escala psíquica. E é Ele, no mais longínquo da sua inefável transcendência, reflectido em nossa alma. E é ele na ideia que não fazemos ainda do seu ser, e não na sua imagem impossível, que de resto, as imagens são pagãs: Deuses imaginários só os da Fábula.» Aqui Pascoaes falha quanto à admissão da possibilidade das teofanias da Divindade em deuses pagãos ou hindus...
                                         
                            Platão e Aristóteles, ou a Academia de Atenas, por Rafael
No LV repete a linha bíblica de Adão humanizador e do Jesus redentor como os modelos pelos quais nos devemos esculpir e declara tanto o helenismo como o judaísmo como sendo pré-cristãos, incompletos, incapazes de nos ajudarem a convergir no divino sem o amor manifestado por Jesus.
No LVI valoriza de novo a dualidade, sem o mal o bem não poderia surgir, por vezes mesmo miraculosamente, quando por exemplo o perseguidor fanático anti-cristão Saúl (na estrada de Damasco, capital da Síria, hoje graças ao apoio russo e iraniano finalmente quase liberta dos terroristas lançados e apoiados pela USA, Arábia Saudita, Israel, Turquia e União Europeia), se torna o apóstolo das gentes, quase que o fundador do catolicismo e que Pascoes tanto estudou, amou e biografou.
No LVII irrompe de novo a sua caracterização algo irónica ou provocante da realidade com alguma verdade:«Vivamos, enfim, no: Faça-se a luz! e no Amai-vos uns aos outros! Faça-se a luz é o grito do anarquista. Amai-vos uns aos outros».
                                         
No LVIII voltamos de novo a Paulo, apóstolo de Jesus embora a dualidade seja mitigada, pois admite no fundo que o helenismo represente a luz da verdade e a beleza, enquanto o cristianismo seria o calor da verdade ou a Bondade. E subitamente, embora sabendo-se que Pascoaes valorizou a dança como forma de oração, primordial até, introduz Isadore Duncan (1828-1927), que certamente o tocou, fazendo-a uma sacerdotisa ou bacante (tanto mais que se inspirou muito na dança antiga grega apreensível nos museus) na Dança do Futuro, ou moderna, que ela terá intuído em Florença (da Academia Platónica de Marsilio Ficino) e manifestou pioneiramente num equilíbrio dos veios e valores do paganismo e do cristianismo. Na web encontramos o texto escrito por ela em 1901 e publicado em 1928, que Pascoaes poderá ter lido intitulado The Dancer of the Future, onde logo na página inicial afirma: "O ser humano, chegado ao fim da civilização deverá retornar a nudez, não a nudez inconsciente do selvagem, mas à consciente e reconhecida nudez do ser humano maduro, cujo corpo será a expressão harmoniosa do seu ser espiritual. E os movimentos deste ser serão naturais e belos como os dos animais selvagens."
 Oiçamos então Pascoaes, LVIII: «Há a luz da Verdade, ou a Beleza, à Platão; e há calor da Verdade, ou a Bondade, à Paulo.
Platão ou Apolo, Paulo ou Jesus... E diante duma estátua de Apolo e duma pintura de Jesus, num museu de Florença, a Isadora Duncan visionou a Dança do Futuro
No LIX Pascoaes tenta regressar à esperança no futuro, no mundo espiritual em que havemos de estar e ver. E cita  o famoso reconhecimento de Tomás de Aquino que todo o seu trabalho filosófico intelectual e tão escolástico, seco e abstracto, e mesmo assim considerado durante séculos como a suma das sumas, afinal era palha perante uma pequena visão que teve do espírito ou da Divindade quando estava para morrer.
                           Ornamento simbólico do Espírito, por Bô Yin Râ
Já bem original e valiosa é considerar que tal consciencializaçao final de Tomas de Aquino, como tendo o brilho da estrela de Belém, como um símbolo espiritual, que nada tem a ver com cometas ou astros e astrologia, mas sim com o espírito que nele se manifestou.
No aforismo final, LX, Pascoaes volta ao seu saudosismo. Não muito desenvolvido na Cartilha mas subitamente surgindo como seu fecho. Pascoaes não se deu por vencido no relativo insucesso da sua religião da Saudade, suplantado pelo Modernismo e depois pelo Presencismo, e apoia-se na reminiscência platónica que Camões manifestou em alguma da sua poesia concluindo que o que verdadeiramente a alma lusíada é saudade, ou seja, lembrança e esperança, certamente algo que todas as almas individuais e grandes almas nacionais têm de um modo ou outro enquanto seres seja em queda e retorno, seja em história e evolução.
Leiamos então o seu fim ou coroa da obra: «LX - Salvamo-nos em esperança ou em lembrança, que a lembrança também incide sobre o futuro na poesia camoniana. E que é a lembrança incidindo sobre o passado e o futuro? É a alma lusíada, a Saudade».

                                    
Possamos nós desenvolver algo deste testamento de Teixeira de Pascoaes, sobretudo cultivando a grande alma portuguesa, protegendo-a da excessiva globalização, apoiando os que trabalham e criam obras e produtos dela, e sobretudo consigamos aprofundar e captar a lembrança da primordialidade espiritual nossa e, logo, desejarmos, querermos e realizarmos tal, de modo a vivermos mais  agora e no futuro, ou seja, sempre, na Luz e Amor divinos...
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