terça-feira, 9 de abril de 2019

Tolstoi e Konishi Masutarô (1862-1940), no "Tolstoi et le Japon", de Brigitte Koyama-Richard.

As relações entre génios, pensadores e artistas de vários povos é um campo sempre fértil à investigação. A interacção, por exemplo, entre Tolstoi e vários escritores e pensadores japoneses ocorreu prolongadamente e foi bem estudada, e com coração e sentimento descrita, por Brigitte Kyama-Richard, no seu bem documentado (embora só com duas imagens) Tolstoi et le Japon, La découverte de Tolstoi a l'ère Meiji, impresso em 1990 pelas Publications Orientalistes de France, na colecção Bibliotheque Japonaise, dirigida por René Stieffert, já com umas dezenas de boas obras dadas à luz. Vamos abordá-lo quanto a um dos tolstoianos japoneses ...
 Brigitte  Kyama-Richard, autora ainda de várias obras sobre o Japão, neste seu livro, depois de uma breve introdução às relações diplomáticas entre a Rússia e o Dai-Nippon, mostra-nos como  a imprensa japonesa seguia, descrevia e via Tolstoi e analisa os modos de relacionamento dos intelectuais da era Meiji com Tolstoi.
Neste breve artigo vamos referir o primeiro japonês estudado, Konishi Masutarô (1862-1940), que esteve sete anos na Rússia, aprendendo em Kiev e na Universidade de Moscovo, aqui com Nikolai Grot (que fundara um grupo de estudos filosóficos e psicológicos onde participava o brilhante filósofo Vladimir Soloviev, em baixo com Tolstoi, numa pintura de L. Pasternak),  com quem se deu muito cordialmente, tanto mais que conhecia bem, apesar de ser cristão, os filósofos chineses, sendo por isso encarregado por ele, depois de traduzir os Preceitos de Confúcio,  de abordar Lau Tseu e o seu subtil ou místico Tao Te Ching, um livro de cabeceira de milhões de seres...
 Tolstoi, que já conhecia razoavelmente a filosofia Oriental, sobretudo chinesa mas praticamente nada da japonesa, soube da tradução que Konishi iniciava em 1892 e quis conhecê-lo. E assim se deu um encontro ou reencontro importante: Tolstoi então com 68 anos, sua mulher Sónia com 46, receberam-no muito cordialmente na casa que tinham em Moscovo,  e Tolstoi convidou-o a traduzirem a dois, pois ao conhecimento de chinês de Konishi ele acrescentaria as versões alemães, russas e francesas que possuía, pois era grande o seu entusiasmo por Lau Tseu, lamentando-se até de não ter aprendido o chinês. E assim trabalharam lado a lado quatro meses e a obra foi dada à luz. 
Konishi Masutarô, quando regressou ao Japão em 1893, traduziu Tolstoi, nomeadamente a Sonata a Kreuzer, com revisão de Ozaki Koyo, e escreveu vários artigos sobre ele, tais como A concepção do mundo de Tolstoi, e A propósito da "religião" de Tolstoi.
 O efeito anímico tolstoiano fora forte em Konishi, como este lhe confessará em carta de 1896: «Para ser franco, o nosso reencontro e o que me ensinou, transformaram completamente o meu entendimento do cristianismo. Todos os dias, pensando em vós, experimento uma alegria espontânea grande (...)». 
Sabemos que Tolstoi deve ter partilhado com Konishi as sua principais críticas aos ensinamentos da Igreja, tais como a que a Bíblia e o Genesis confundem Deus, ou mesmo o Deus Pai, com um deus invejoso e maldoso; que não houvera redenção da humanidade com a morte dita expiatória de Jesus, pois tudo continuava na mesma, para além de que tal crença tornava menos activas no bem as pessoas. Não acreditava na Trindade ou mesmo na Divindade de Jesus, na sua ressurreição, ou na ridícula ressurreição dos mortos. Nem nos milagres, nem na Eucaristia, nem nos sacramentos, criados para manter o domínio sobre os crentes e explorá-los. Isto tudo abalara certamente a fé de Konishi e algo aos poucos foi fermentando dentro dele, como ele próprio o confessa.
E continuava na sua carta a Tolstoi: «Por aqui, vou escrevendo sobre si e sobre o modo como considera o Cristianismo e a Vida e traduzindo as suas obras. Já traduzi: Os dois velhos, Onde está o amor, aí está Deus, a Sonata a Kreutzer. Actualmente traduzo a Morte de Ivan Illich, e a Religião e Moral, e chamam-me tolstoiano. Posso declarar-lhe que tem por cá muitos admiradores.»
 A resposta uns meses depois de Tolstoi é muito elucidativa da sua visão moral e espiritual do Cristianismo, para ele basicamente a religião melhor afirmativa do Amor, embora iludindo-se sobre o seu futuro no Oriente: «Alegro-me que as suas opiniões sobre o Cristianismo Ortodoxo modificaram-se. Estranhei sempre e não queria crer que um povo tão inteligente e pouco supersticioso como o japonês, pudesse aceitar e acreditar nesses dogmas absurdos que constituem a essência do cristianismo, tanto católico como ortodoxo e luterano ou evangélico. Pelo contrário, sempre pensei que os povos japoneses e chineses não poderiam deixar de aceitar o verdadeiro cristianismo, pois só ele dá a resposta às grandes questões da vida que confrontam todos os seres e apela a uma solução que nem o Budismo nem o Confucionismo podem oferecer.
Os mestres da Humanidade, em todas as épocas, pregaram a fraternidade humana, mas só o cristianismo mostra a via pela qual é possível chegar até isso. Traduziu algumas obras minhas como a Sonata a Kreutzer e outras,  mas gostaria bem mais que o público japonês se familiarizasse com o verdadeiro cristianismo, tal como eu penso que o seu fundador o concebeu. Expus tal, o mais claramente que me foi possível, no meu livro o Reino de Deus está dentro de vós [reproduzido em baix0 o frontispício da 1ª edição, 1893.]. Penso que este livro, ou um resumo dele, interessaria aos japoneses e mostrar-lhes-ia que o Cristianismo não é um tecido de narrativas miraculosas, mas uma apresentação rigorosa do princípio da vida humana que não conduz nem ao desespero nem à indiferença, mas a uma acção moral mais bem definida», nomeadamente a da prática do Amor e a resistência não-violenta à iniquidade ou mal  do sistema político, económico e religioso. 
Anote-se que estes princípios não serão considerados válidos por Lenine, seu admirador literário, nem aplicados na revolução russa mas já serão posteriormente adoptados pelo Mahatma Gandhi e co-relacionados com os três pilares do seu movimento: satyagraha, força ou firmeza da verdade, e ahimsa, não-violência e swaraj, auto-governação, e impulsionarão a libertação da Índia da opressão colonial inglesa.
 Uns meses depois  enviará mesmo um exemplar da sua selecção criteriosa  dos Quatro Evangelhos, com indicações das partes mais importantes a ler e a eventualmente traduzir e divulgar. 
Era uma revolução no Cristianismo católico e ortodoxo que Tolstoi realizava com o seu Cristianismo verdadeiro, e com essa sua versão do Novo Testamento, e por isso não admira que o Sínodo ortodoxo de 1901 o excomungasse, obrigando-o a uma fulminante resposta.
Será em Setembro de 1909 que Konishi regressa à Rússia e a Tolstoi, encontrando-o em Moscovo bastante envelhecido e bastante renitente em aceitar seja as investigações psicológicas ou psíquicas que ele fazia, seja o valor das traduções da Sonata a Kreuzer e outros contos, dizendo-lhe mesmo: «É uma pena traduzir tais textos escritos para camponeses e do que não se pode esperar grande proveito. Se quereis verdadeiramente traduzir algo de valor, gostaria que traduzísseis o Círculo de Leitura, e o Caminho de Vida, que se dirigem a um público bem mais alargado.»
Jaime de Magalhães Lima, na Advertência ao seu livro de 1889 Cidades e Paisagens: -«De resto, quanto ao modo de viver de Tolstoi só repetirei que me merece a mais ilimitada admiração. Compreende-se e admira-se o homem entregue sem reservas a uma paixão sublime, despindo-se heroicamente de todo o snobismo com que a fraqueza de todos nós condescende e curvando-se sobre o arado; absorvido nesse insondável e fascinante da terra, aureolado de maior de todas as bênçãos divinas - a humildade»»
Em Julho de 1910 Konishi ainda estará com Tolstoi já adoentado na mítica quinta, a Iasnaia Poliana, aonde anos antes outro ilustre espiritual português peregrinara, Jaime de Magalhães Lima (descrevendo tal viagem e encontro na Cidades e Paisagens, Porto, 1889, mas ainda escrevendo As Doutrinas morais do Conde Leão, Porto, 1892, dedicado À memória do meu querido mestre Antero de Quental,  e traduzindo depois algumas obras dele.
Três meses depois era informado que Tolstoi deixava a Terra. E após peripécias bem difíceis, já que houve certa repressão oficial e sobretudo religiosa (pois Tolstoi fora excomungado em 1901) à ida de pessoas de comboio, conseguiu chegar a Isnaia Poliana, deixando-nos uma descrição impressionante da devoção que o povo russo e em particular os que o conheciam nutriam para com ele, tão diligente nas suas acções de amor ao próximo, nomeadamente com os seus abecedários, livros de leitura e de contos populares, escolas e bibliotecas, estas como vemos na imagem de 1910.
 
Tal transbordou na presença e participação nos passos e  cerimónias, cantos e deposição do seu corpo entre as árvores predestinadas do bosque junto a sua casa, as bétulas.
Regressado ao Japão, Konishi Masutarô, publicou  até 1913 três artigos sobre Tolstoi, e uma antologia do seu pensamento religioso, mas depois envolveu-se noutras actividades, encontrando-se até em missão oficial na Rússia com Estaline,  e só por fim, antes de morrer, em 1936, escreveu Ba nen no Tolstoi to watashi, Tolstoi na sua velhice e eu, e Torusutoi o Kataru, Contar Tolstoi.
Nestes textos narra entre muitos outros aspectos,  a valorização de Tolstoi da grande habilidade espiritual de Lau Tseu de transmitir o seu ensinamento ou filosofia com calma e profundidade, e a sua admiração e receio pelo abandono por parte do Japão da sua civilização milenária em prol da  europeia e norte-americana, questionando quais os aspectos que ela deveria  abandonar ou aceitar, erguendo-se mesmo em defesa da alimentação tradicional macrobiótica e quase vegetariana dos japoneses: «Entre as coisas da vida corrente, o Japão vai eliminar a alimentação próxima do vegetarianismo que utilizara até agora, mas porque será necessário construir matadouros e de comer carne de vaca ou de cavalo? Recentemente, entre os religiosos e intelectuais ocidentais, alguns pararam de comer carne e adoptaram o vegetarianismo. Não será  isso um fenómeno que se amplificará? Gostaria que os intelectuais japoneses reflectissem nesta questão»...
Sairão à luz as suas duas últimas traduções, apenas em 1946, Ikiru Michi, O Caminho de Vida, e Kofuko e no michi, O Caminho da Felicidade, quando Konishi Masutaro se reencontrara já certamente com Tolstoi no mundo espiritual. 
Pintura de circulação no rio da vida, num  tecto de um santuário de
Wakayama, obtida em 26-VI-2010.

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Bocage: das energias anímicas e do espírito na sua vida e obra de vate órfico e cavaleiro do Amor.

Manuel Maria Barbosa du Bocage é ainda hoje um mestre vivo não só na sua obra como nos mundos subtis das almas pela sua essência espiritual tão genialmente manifestada na vida inquieta e aventureira, ardente e amorosa e na criatividade de pensador e poeta, tradutor e dramaturgo, gerando um testamento cultural e espiritual grande para os seus tão breves quarenta anos de vida, de 1765 a 1805, literariamente na época de transição do Neo-Classicismo para o Romantismo.
Aprendermos com a sua sensibilidade e estética, linguagem e cultura, aspirações e visões e, acima de tudo, com o seu espírito pleno de Amor, nas características, capacidades e efeitos, e em especial como fogo de conhecimento e metamorfose, eis o escopo desta singela condensação da espiritualidade omnipresente na sua obra.
 
Em verdade, são muitos os aspectos subtis, supra-sensoriais, espirituais e divinos presentes nos poemas e ideias de Bocage e, para entendermos melhor algo da espiritualidade na sua obra e vida, convirá talvez previamente apontarmos os principais sentidos da palavra espírito, tais como o espírito Divino primordial, a centelha espiritual individual («clara porção do etéreo lume/, Espírito formoso» (p. 578), um ser humano na sua dimensão e identidade subtil, espiritual e imortal e com várias capacidades psíquicas, a respiração, o sopro, a intuição, o estro e o génio e, finalmente, tanto no amplo sentido de Sabedoria como no de Amor. 
Ora podemos sentir ou verificar pela sua obra que Bocage é um ser dotado de imenso amor, e quem diz amor diz sensibilidade, força afectiva e unitiva, coração, imaginação, expansão da consciência e das capacidade psíquicas, do espírito e na sua relação com a Divindade.
É grande e genial o extravasamento na vida e obra de Bocage de tal energia, manifestada em vivências e aspectos, conhecimentos e expressões, tanto vividos sensorial e animicamente como recebidos das leituras e estudos da tradição clássica greco-latina ou ainda intuídos nos níveis supra-sensoriais, pelo que serão algo limitadoras as aproximações à sua obra que não tenham em conta nem valorizem os níveis mais profundos do Ser, divino e humano, ou ainda os transfigurantes do Amor unitivo, sentido não só no corpo físico mas sobretudo na alma e corpo espiritual, com os seus poderes, os quais, na Antiguidade, por exemplo, eram ensinados e despertados nos cultos de Mistérios, dos Magos e sacerdotes, de Orfeu e Pitágoras, todos eles referidos por Bocage.
Podemos dizer ainda que tal genialidade foi precoce em Bocage, tal como ele própria o diz: «Das faixas infantis despido apenas,/ Sentia o sacro fogo arder na mente» (p. 203), tal como foi para Antero e Pessoa e, para além da forte sensibilidade e capacidade imaginativa, poética e onírica, quem sabe se até mesmo de clarividência e que, aparte de ter sido ou não iniciado na Maçonaria (e parece que não), é de certo modo um iniciado, um mestre espiritual na Tradição Portuguesa, tendo em conta ainda a sua evolução anímica valiosa e exemplar, na qual foi marinheiro e guerreiro, desertor e peregrinante, poeta e amante, revolucionário e perseguido, encarcerado e protegido, erudito latinista e genial visionário  que bem acompanha a sua valiosa e intensa obra. 
                                  
É realmente um ser muito sensível e um visionário nas aspirações e sonhos, e na imaginação e intuição dos aspectos subtis e energéticos dos seres e de mitos, arquétipos ou psicomorfismos, tais como o Tempo, a Morte, o Destino, a Liberdade, as três Graças, o Amor, o Anjo, Deus, os quais frequentemente se consideram hoje fria e objectivamente apenas como abstracções e personificações alegóricas, legados da Antiguidade clássica mas que são também seres e componentes anímicos e imaginais do Cosmos, real e noético.

E quem sabe ou consegue discernir o seu poder e vigência no mundo não só dos sonhos e poemas mas das almas, nos séculos XVIII e XIX certamente bem maior do que hoje, em que tantas são as imagens a passar diante de uma pessoa que a sua sensibilidade subtil é afectada e pouco é por ela penetrado até ao seu âmago, assimilado e tornado semente de consciencializações, intuições e determinações novas. Donde a necessidade imperiosa nossa de cercearmos a curiosidade dispersante, a exposição excessiva ao fluxo "megabítico" de informações...
Ora ler Bocage é comungar do seu estro, do seu entusiasmo anímico, o qual o fazia voar frequentemente acima das limitações terrenas e sociais e evidenciar-se como ser amoroso, tanto carnal como espiritual, cidadão livre da Humanidade, do Cosmos e da Eternidade e como tal bem útil nos nossos dias.

                                       
A manifestação de poderes psíquicos na obra poética de Bocage é grande e ecuménica, seja pelo seu génio inato seja pela conhecimento de literatura e cultura greco-latina, e ainda da igreja católica, com a qual dialoga bastante, por vezes ousada ou heterodoxamente, como que a querendo rectificar, em poemas que por isso (censura, inquisição, prisão) não foram publicados em vida, tais como as prodigiosas epístolas a Urânia e a Anélio (duas), onde com muita razão e génio põe em causa, ou melhora, a nossa concepção possível de Deus ou a compreensão de mitos do Antigo Testamento, aludindo ainda ao valor do bonzo e do dervishe da Índia e do islão sufi, ou dos turcos que seguem o Alcorão, e afirmando corajosamente uma visão mais verdadeira e menos primitiva, pois que Deus «recebe imparcial todos os cultos/(...)/ Por acções de virtude ele nos julga,/ Não pelos sacrifícios que fazemos.» (p. 828).
Estes poderes da alma, com efeitos ou impactos nos outros seres humanos e na natureza, manifestam-se através da voz, dos sentimentos, emoções e pensamentos e, sobretudo, do amor, e agem tanto nos seres próximos como nos distantes, ou mesmo para além das fronteiras da morte, algo bem visível nas dezenas de poemas em que Bocage descreve brilhantemente tanto a continuidade da vida consciencial depois da morte cerebral e física como a ininterrupta circulação de energias entre quem se ama.

Os efeitos dos versos nas almas dos outros, e também em si, surgem, por exemplo, com grande qualidade num poema em que confessa o bem que sente na alma, projectando-o para o futuro, para a eternidade, consciência alargada esta que na Modernidade do séc. XXI tende a ser menor, pois as pessoas vivem ora superficializadas e distraídas ora numa dura luta de sobrevivência, sob as crises metodicamente provocadas por grupos de pressão adversos ao bem comum evolutivo da Humanidade.
Esse poema, como vários outros, transparece e implica os poderes mágicos, órficos, terapêuticos, quase divinizantes, da palavra e do som: «Vergava ao peso de mortal quebranto,/ Quando teu hino, teu milagre veio/ De harmonia, de luz, de glória cheio/ Minh'alma repassar de um lume santo:// Cresço em teu estro, sinto-me deidade;/ Já, já piso os salões a Jove, ao Fado,/ No pavimento azul da eternidade.» (p. 458).
Noutros poemas é o poder dissipador das trevas que está associado à palavra proferida justamente: «Alta razão, filosofia augusta/ Troa, num digno tom por ti vibrada;/ E do ígneo arremessão cai fulminada /A de inglórios mortais caterva injusta:/ Elmano adora, como Délio os ama:/ No som, que o ser, e a glória me aviventa/ Tomo à vida o sabor, e o gosto à fama.» (p. 461).

E um dos claros sinais da sua filiação órfica será quando repetidamente nomeia o vate e instituidor, mítico ou não, dessa espiritualidade shamânica, melodiosa e de Mistérios: «Entraste Orfeu, coa cítara eloquente,/ Os monstros infernais domesticando:// Penedos com teus sons amontoando/(...)/ Vê delfins, vê tritões no mar dançando: //Tu, linguagem do Céu, tu, melodia// A tudo encantas, para tudo és forte» (p.169).
Quais os aspectos mais importantes da espiritualidade, ou seja, onde e como é manifestada mais por Bocage uma consciência dos níveis subtis, energéticos, psíquicos, espirituais e divinos dos seres?
Na desidentificação do seu ser com a mente, ou seja, na distinção entre mente e alma, ou mesmo na consciência de que um deus, nume, génio ou espírito, habita nele, alma então intensificada e entusiasmada: «Da mente, que lustrava enriquecida/ Ó Grécia, dos teus dons, dos teus, ó Roma,/Vai-se escoando a luz com a luz da vida://Mas inda às vezes n'alma um Deus me assoma,/ E o pensamento audaz forceja, e lida/ Por dar-me o nome, o jus, que os tempos doma.» (p. 460).
Esta mesma sensação de entusiasmo, de estar em Deus, ou de Deus estar na sua mente, surge no poema a Belmiro Transtagano no qual, após invocar a «Musa de Elmano, e Musa de Belmiro», lembra os momentos de gloriosos improvisos ou inspirações, quando ambos relampejavam: «Nem tu me esquecerás, Gastão cadente,/ Lustroso a par de mim, quando de chofre/ Ígneas canções brotei, com Deus na mente.» (p. 465).
Seria significativo conseguirmos discernir se esta expressão e sensação de Deus na mente ou na alma ter-se-á manifestado mais em Bocage no fim da sua vida, como que numa destilação alquímica divinizante de todo o seu sofrimento e busca, amor e trabalho, ou se ela estando em acção desde novo já era reconhecida, embora então denominada Musa, Génio, Estro, Nume, Febo, e portanto pouco importando a designação mais cristã, do final da sua vida, de Deus, tanto mais que Bocage em alguns poemas clarifica bem como não se deve entender Deus. Este aflorar da ligação interior ou íntima entre o ser humano e a Divindade é dos aspectos mais valiosos da espiritualidade de Bocage.
A ligação de respiração e espírito, existente mesmo na etimologia das duas palavras, empregada em muitas tradições, em especial nas orientais, como base de exercícios psico-somáticos de recolhimento, sensibilização e elevação espiritual, ligados portanto a uma respiração mais consciente e subtil, está também viva em Bocage: «Da mente, em que fervia o gaz sagrado,/ Um Deus, que respirei, já não respiro,/ Um Deus, por quem do nada estou salvado» (p. 462).
Esta ligação do estro ou génio com a respiração é lembrada ainda numa das odes finais, a Pato Moniz, na qual Bocage se descreve fabulosamente: «que outrora esperto, aceso/De santa agitação, de ardor sagrado,/ No cérebro em tumulto/ Estância de um Deus!) me borbulhava./Respiração divina,/Entusiasmo augusto, alma do vate/ Que rápidos portentos» (p. 585).
Ou noutro poema ao seu amigo D. João de Noronha, onde começando por elogiar a sua maturidade bem sazonada:«Sábio varão, que na rugosa idade,/ No inverno da existência, quando em tantos/ É gelo o coração, e é gelo a ideia, /conservas o verdor do sentimento,/ O viço da razão! Cultor de Palas,/ Da virtude cultor, que a tens no peito», conclui orficamente «meus versos hoje a ti seu voo alteiam,/ Vão hoje versos meus contigo honrar-se,/ Aura celeste respirar contigo,» (p. 866), mostrando bem a sua sensibilidade participativa no infinito Campo unificado de Energia, Informação, outrora denominado Anima Mundi.
Aguarela oferecida pela notável pintora Maria de Fátima Silva.
Todavia, talvez um dos mais fortes aspectos da sua espiritualidade seja a sua natureza amorosa e a assunção de ser um "leal dos amadores", um "escravo do amor" e, diremos nós, um Fiel do Amor, surgindo tal como tendência e dever inato do ser humano:«Nascemos para amar; a Humanidade/Vai, tarde ou cedo, aos laços da ternura./Tu és doce atractivo, ó Formosura,/ Que encanta, que seduz, que persuade.» (p. 232)
Amor como quinto e mais subtil elemento na Natureza, nesta linha citando de Gabriel Pereira, no seu poema consagrado a Lisboa, Ulisseia, c. II, 95, a frase «Como é no mundo Amor quinto elemento,/ Que tem dos gostos uma e outra chave», e concluindo o seu soneto: «Ventura, ao doce Amor tu andas presa;/ É de todo o vivente instinto e fado,/ É teu quinto elemento, oh Natureza.» (p. 213).
A afirmação do Amor como o quinto elemento é original e inesperada, e talvez por isso Bocage se tenha escudado em Gabriel Pereira, um escritor familiar do Santo Ofício, pondo a citação dele em epígrafe do seu soneto. Mas tal conhecimento também pode derivar da sua filiação na Tradição Espiritual Portuguesa. E se considerarmos que o quinto elemento era a quintassência, procurada pelos alquimistas e que era ela que imortalizava, então compreende-se melhor que o Amor o seja.
O Amor arde então em centenas de poemas ora para Deus e os seres, em especial as sucessivas amadas, ora para o Cosmos e a Natureza, afirmando como é animada pelo Amor mesmo a Natureza dita inanimada: «Choras o infausto amor tão docemente/ Que o tronco o sabe, que o rochedo o sente,/ Que a terra geme... E que fará quem ama!» (p. 472).

 Irrompe principalmente o Amor na paixão com a Amada, e este foi o veio por onde mais correram as forças anímicas de Bocage, seja erotica e carnalmente seja castamente, em poemas nos quais se pode discernir a sua visão do ser humano numa geografia ou corpo do Amor, no qual as diferentes partes corporais se tornam portas de visionadas correspondências nos mundos subtis e paradisíacos, tal como quando intui «Os olhos de que estás enfeitiçado,/ Do puro céu de Amor benignos lumes» (p. 215), e sente que o amor pode ser paixão e ciúme (nele bastante forte por vezes, e logo combatido com a ajuda da razão), ou suavidade e céu, podendo portanto ser «ideia horrenda, ardente frenesi inflamando o peito», ou chegar aos níveis mais íntimos, também desejados por Jorge Ferreira de Vasconcelos em alguns dos seus livros, tal o de se abrir a janela do peito:«Que a mim, para que viva satisfeito,/ me basta possuir teu doce agrado,/ Ter lugar, ó Marília, no teu peito.» (p. 197). 
 A geografia do corpo amado visível e invisível está mapeada genialmente por Bocage em centenas de versos que não poderemos agora referir e que vão desde os brandos ais enviados e os eflúvios dos lábios até às mais íntimas e eróticas descobertas e analogias.
                                                                   
             Vinheta num dos tomos das obras de Bocage, ainda impresso em vida do vate.
A capacidade de amor adorativo a alguém, de osmose com o outro ser, de entrar na outra pessoa, e sobretudo no coração, ou ainda de considerar a amada «alma de minh'alma», aparece por vezes e numa linha platónica (bem hierarquizada no poema «Enquanto o sábio arreiga o pensamento») e camoniana (muito recomendada e valorizada por Bocage), a de que de tanto amar o amante torna-se a coisa ou ser amado», ou mesmo, mais atrevidamente, quando afirma, algo ufano, a sua capacidade psíquica imaginativa de entrar e tocar na amada, mesmo que esta resista ou esteja longe.

Amor manifestado finalmente na amizade (e não será por acaso que ele se tornou tão amado e recitado pelo povo), a qual vivencia com profundidade, registando os seus graus: «Os princípios morais, por que governo/Meu dócil coração, meu livre estado,/ Prendem-me a ti com vínculo sagrado/ De amor, que passa o grau de amor fraterno» (p. 399), ou afiançando a «Noronha o mais alto grau da amizade», e dedicando muitos poemas a amigos, consciente de que os imortalizava na memória nacional, e até originando ecos valiosos, tal como  um soneto, quando estava presos por andar envolvido em "papéis e livros ímpios e sediciosos" :- «Custam fadigas a virtude, a glória/ Por entre abrolhos se caminha ao monte/ Ao templo da honorífica memória.// Posto que hoje a calúnia nos afronte,/Inda serão talvez na longa história/ Dois nomes imortais - Bocage e Ponte!» - , e uma ode: - «Nossos nomes, amigo, alçados vemos/ acima dos comuns; ama-nos Febo,/ As Musas nos enlouram (...)//» - dedicados ao companheiro de tais ideias avançadas e de prisão André da Ponte Quental e Câmara, avô de Antero de Quental, o qual refere tal em 1881, num sinal do anel das graças da amizade de poetas, na qual os três comungaram na continuidade da Tradição Espiritual Portuguesa, numa carta a Cândido de Figueiredo:«Meu avô André da Ponte do Quental foi da roda de Bocage e, segundo testemunho deste, poeta nada vulgar, infelizmente nada resta das suas composições...» 
                                       
Embora propriamente não se considere Bocage um místico na história da religiosidade e espiritualidade Portuguesa, todavia ele conheceu essa elevação ou platonização do Amor, esse virar do fogo do desejo para a própria Fonte,  para as virtudes necessárias,  para o convívio puro dos espíritos, ou para a gnose amorosa da Natureza e dos seus seres, para o Cosmos e para a Divindade.
E é um Fiel do Amor místico, quando reconhece e aceita na mulher
a sua dimensão de sacerdotisa casta:«calai-vos (lhes gritei) homens estultos!/ Achei Nise, guardando o lume a Vesta, / quando julguei que a Amor rendia cultos.// Sou nobre! sou herói! Vamos à festa/Amar, e por Amor sofrer insultos,/ Das almas grandes a nobreza é esta.» (p. 495).
Fiel do Amor porque o próprio Deus, Apolo ou Febo lhe diz para adorar, isto é, cultuar a amada : «Subjuga dentro d'alma os sons profanos;/ muda em culto o louvor; celebrem numes,/ Mortais adorem de Marília os anos.» (p. 243).
 Fiel do Amor porque, mesmo na prisão, tal força das forças o movia sempre:« Aceso no almo ardor, que a mente inflama, /Vivo de Amor, de Amor suspiro e canto;/ Na face agora o riso, agora o pranto,/Da árvore tua, oh Febo, eu cinjo a rama:» (p.348).
Fiel do Amor nas valorizações do livre arbítrio, da pedagogia amorosa, da liberdade de educação, pensamento e expressão e de as mulheres decidirem por si os seus destinos e actos amorosos, numa linha bem pioneirizada por Jorge Ferreira de Vasconcelos.
Bem importante na espiritualidade em Bocage são, como já disse, os poderes psíquicos. Como sabemos o amor, a aspiração de união e a concentração de forças afectivas unitivas intensificam a sensibilidade e a manifestação de poderes da alma ou, se quisermos, as capacidades supra-sensoriais, ou ainda, as expansões conscienciais, tais como a telepatia, a intuição, a visão e a clariaudiência, esta reconhecida, por exemplo, quando sente que «aura subtil nas árvores murmura» (p. 418).
Os poderes psíquicos permitem uma comunicação subtil e rápida, e consequentemente o ultrapassar das barreiras do tempo e do espaço, ou das névoas entre a vida e o depois da morte, pelo que há muitos poemas de comunhão com a amada ou os seres amados, com os antepassados, «os Penates, a quem rendo um culto interno», referidos com o Tejo e os amigos, quando parte para a Índia: «por espinhos se vai da Glória ao templo./Adeus sócios fiéis; e tu, querida,» (p. 609), numa bela glosa de lemas como Ad Astra per Aspera,  Per Angusta ad Augusta e In Virtute et Fortuna.
 E na Finisterra oriental de Macau lança um belo hino à virtude da amizade, na Ode dedicada ao desembargador Lázaro da Silva Ferreira, governador interino de Macau, que lhe permitia o regressar à Pátria após a incursão ou peregrinação camoniana, certamente a causa da sua deserção de Damão, onde se encontrava já no posto de Tenente: « Paternos lares, que saudoso anelo,/ Sacros Penates, que de longe adoro,/ Suave asilo, que perdi vertendo/ Lágrimas ternas...» (p. 532).
                         
Estas capacidades anímicas permitem a ligação às Musas - e só esta palavra e realidade subtil mereceria um aprofundamento grande, comparando-se as múltiplas vezes que a utilizou com identificações diferentes, desde a sua Musa única e própria às Musas circunstanciais que o podiam abençoar e inspirar, tal a da Gratidão -, e às Tágides, Náiades e demais espíritos da Natureza, sendo ainda nomeados cupidos ou seres de Amor, Anjos e Arcanjo de Portugal, Protectores desconhecidos, Jesus e Maria e a Divindade.
Muitos poemas incluem estes seres e por vezes elevam-se a grande níveis, tais como quando há a participação no corpo místico da Humanidade, já dos últimos meses da sua vida: «Se o grande, o que nos orbes diamantinos/Tem curvos a seus pés dos reis os fados,/ Novamente me der ver animados/De modesta ventura os meus destinos:// Se acordarem na lira os sons divinos,/Que dormem (já da glória não lembrados),/Ao coro etéreo, cândidos e alados,/Honrar com ele um Deus ireis, meus hinos.// Mas, da humana carreira inda no meio,/Se a débil flor sentir murchada/Por lei que envolta na existência veio,//Co'a mente pelos céus toda espraiada,//Direi, de eternidade ufano e cheio:/— «Adeus, oh mundo! oh Natureza! oh nada!» (p. 437).
 
É no carácter e nas virtudes que assenta uma parte substancial da evolução e realização espiritual das pessoas e Bocage, consciente disso, frequentemente enaltece as virtudes, a generosidade, a fortaleza, o estoicismo (ainda que este moderadamente...), a equanimidade, a justiça, o destemor, a amizade e a fidelidade. 
E fá-lo de modos muitos intuitivos dos aspectos subtis que estão em acção na vida virtuosa, como podemos ver nos dois últimos tercetos do soneto dedicado a Frei José Maria de Araújo, eleito bispo do Pernambuco, Brasil, e no qual liga a essência eterna divina humana à personalidade ou carácter, e à gnose e à praxis: «Reflexo da radiosa divindade/ Com cujo auxílio em estro a mente inundo/ Da virtude és troféu na férrea idade!//Grande em carácter, em saber profundo,/ Até que vás luzir na eternidade / Levarás nova luz ao novo mundo» (p. 410).
                                   
As metodologias ascensionais ou intensificantes são sempre subjectivas, pois cada ser tem de descobrir e percorrer o seu caminho de crescimento e sobrevivência profissional, e de harmonização e intensificação das suas capacidades psico-somáticas, embora, em geral, se possa dizer que  o Amor é uma grande fonte e força de inspiração e de elevação anímica.
Amor a Deus, amor ao Conhecimento, amor à pureza e à virtude, amor à amada ou amado e, certamente, amor à justiça e logo arrependimento de erros e menosprezo e renúncia ao que nos possa desviar e enfraquecer, obstruir e apagar. E, consequentemente, desenvolvimento das vivências de purificação, peregrinação, sacrifício, dedicação, oração, canto, concentração, meditação, silêncio, contemplação e união.
Entre as muitas formas ou práticas ascensionais manifestadas por Bocage se, por vezes, é a simplicidade contemplativa, tal como no belo hino a Deus: «Pasmar na imensidade, é crer o imenso;/Tudo em nós o requer, o adora, o sente;» (p.382), noutras Bocage afirma o seu empenhamento poético cognitivo concentrado, ainda que posto satiricamente contra os sócios da Nova Arcádia: «Deixai Elmano, que inocente e honrado/nunca de vós se lembra, meditando/Em coisas sérias, de mais alto estado:» (p. 321). 

Outra clara metodologia ascensional ainda, e que acontece sob diversas faces, é a invocação, o apelo da corrente do Amor, do Génio, da Musa, da Divindade, tal como vemos em: «Voai, voai do Céu para meu lado,/ Ah! Vinde, doce Amor, doce amizade,» (p. 377).
Noutras vezes há como que a assunção de uma metodologia
ritualística, tal como uma dança derviche, ou uma procissão canora, ou os hinos e poemas a serem ditos em voz alta e com a consciência do eco nas esferas subtis e celestiais, tal como o belo poema em que alude à Fraternidade dos Heróis e Mestres nos planos subtis, nos revela: «Eis da Virtude o templo rutilante:/ Sacerdote ancião, de rubra veste,/ Compassa pelo cântico celeste,/Meneando turíbulo fumante://Do pio aroma, do vapor fragrante/O giro salutar consome a peste/ Do vício, que debalde encara, investe/ Turba de heróis às aras circunstante» (p. 386). 
                                         
Pouco sabemos como Bocage poetizaria sozinho, se teria algumas circunstâncias favoráveis ou impulsionadoras, para além da sua sensibilidade emotiva intensificada: «Alta influência amorosa,/ milagroso e doce lume,» (p. 1065). Os escritos na prisão, sem livros, com poucas conversas com o amigo carcereiro e circunstâncias ambientais minimalistas e sombrias, serão dos mais propícios a discernirmos a sua psique isolada e no caso revoltada até. Já em cafés e botequins, acompanhado e improvizando ao pedirem-lhe que poetizasse, há registos lustrosos, tal como o da resposta fulminante ao polémico José Agostinho de Macedo, passada ao papel pelo morgado de Assentiz.
 
A metodologia espiritual não se pode ver apenas nos sentidos elevantes, cosmicizantes ou interiorizantes pois realiza-se ainda na leitura do livro oculto da Natureza e para isto é necessário uma visão aguçada, limpa, penetrante, capaz de discernir, ouvir e intuir as subtilezas da Natureza e dos seus seres e efeitos. 
                                           
As descrições de aspectos dos vales e rios do Tejo e do Sado, por exemplo, atestam a grande sensibilidade de Bocage à natureza, às águas e ventos, às flores, árvores e penedos, e aos espíritos da natureza, tais como essas Fadas, que seu irmão espiritual Antero de Quental também poetizou no seu tão meritório Tesouro Poético da Infância.

                                
Que ele estaria consciente disso, podemos deduzir do que escreve de um poeta amigo: «Intérprete subtil da Natureza,/ Entra seus penetrais, vê seus arcanos,/ De apolíneo fulgor tua alma acesa (...)» (p. 404), ou seja, graças à tua alma inflamada e iluminada, discerne e lê os arcanos, extrai o subtil e escondido do grosseiro e visível. Esta intensificação psíquica é então apresentada de múltiplos modos por Bocage, mostrando quão frequentemente ele a sentiu e através de imagens-forças psicomórficas que movem tanto a psique como as próprias formas corporais e energéticas, inserindo-se na tradição de Orfeu, de Pitágoras e dos sucessivos vates e videntes.
                         
    Pitágoras saindo de uma gruta onde se recolhera em meditações mais profundas ou recatadas
São muito os poemas nos quais Bocage se eleva, ou vê alguém ascender, nos mundos subtis, e eles esclarecem-nos quanto aos modos como ele sentia as dimensões psico-espirituais ou quais eram as suas cosmovisões, por vezes tingidas ou aperfeiçoadas no iluminismo e cientismo que os seus contemporâneos Duque de Lafões, Abade Correia da Serra e o P. Teodoro de Almeida, este seu dialogante, lançavam. Ei-lo falando do poeta amigo Pato Moniz e do Infinito: «Coa mente juvenil, sublime, alada,/ Sais da térrea mansão, mansão profana;/ Introduzes, Moniz, a ideia ufana/ Lá na de sóis sem conto estância ornada:» (p. 453) ou «Com alma solta, e do vil globo alheia/(...)/ Subira céus e céus; já nume Elmano,/Bebera sois, e sois, extasiado:» (p. 478), ou ainda «Oh tu, que tens no seio a eternidade,/E em cujo resplendor o sol se acende,/Grande, imutável ser, de quem depende/ A harmonia da etérea imensidade!» (p. 415).
Muito menos frequentes são os poemas mais ousados, mais heterodoxos nos quais para além dessa ascensão há mesmo uma divinização, não só por os seres serem apresentados como numes, que tem tanto o sentido de espíritos numinosos como deuses, mas quando diz expressamente que o ser é divinizado. Um caso destes explica-se melhor por ser tal atribuído a uma princesa, o que não poderia ser criticado pois sempre houvera uma retórica tradicional da ligação mais directa da realeza com a Divindade.
É o poema dedicado ao nascimento da Infanta D. Maria da Assunção, em 1805, filha de D. Carlota Joaquina e possivelmente de D. João VI, no qual põe o Fado a vaticinar, depois de se confessar conhecedor do futuro:«Tais futuros te deu risonho o Fado/ (Eu o sei, confidente eu sou dos numes)/ De encantadores, divinais costumes/ Serás norma querida, exemplo amado;/E gozará teu ser, divinizado,/ Aras, ministros, cânticos, perfumes:» (p. 455).
                                        
Que não era só o Fado a poder adivinhar o futuro mas também as magas e magos que volta e meia nos surgem e ele próprio, alguns poemas manifestam-nos, e isto numa linha bem comum da Tradição Espiritual Portuguesa bem presente em Gil Vicente, Jorge Ferreira de Vasconcelos e Francisco Botelho de Moraes e Vasconcelos,  tal como quando glosa o mote O Livro Anoso do Fatal Destino: «Do velho Ertílio, mágico afamado,/ Meus passos dirigi ao antro escuro,/ (...)/ Me dize; pois que lendo no éter puro,/ Alças o véu do túrbido futuro,/ Sopras a névoa, que rodeia o fado». (p. 343).
Neste poema podemos discernir psicomorfismos valiosos: a consciência do nível do éter puro, talvez associado ao Céu Cristalino dos diagramas greco-latinos do Cosmos, ou do quinto elemento ou ainda da visão dos glóbulos etéricos solares ou prânicos na Natureza pura. E ainda significativo é o afastar o véu ou soprar a névoa, algo que tanto acontece nas visões interiores como os exercícios psico-respiratórios de Yoga realizam, e que Bocage poderá até ter visto na Índia...
São corajosos estes poemas de Magia, nos quais visita magos ou magas, numa época ainda próxima daquela em que a Inquisição perseguia as bruxas, e nos quais entram formas medicinais, alquímicas e invocatórias que devemos religar à presença na nossa Literatura tanto em Jorge Ferreira de Vasconcelos no seu Memorial de Proezas da Segunda Távola Redonda, como depois a Francisco Botelho de Moraes e Vasconcelos, na sua História das Covas de Salamanca, e já no séc. XX a Fernando Pessoa, tal como eu evidenciei na sua Poesia Profética, Mágica e Espiritual, publicada em 1988.
Sendo perene o mistério da vida depois da morte, sempre houve seres que o tentaram sondar e intuir para além da fronteira do desaparecimento do corpo físico e com o coração e o olho espiritual telescopizados na alma amada conseguiram não perder o seu rasto e até o contacto, celebrando-o em efusões anímicas, cantos e escritos.
Talvez Dante e Beatriz sejam literariamente o caso mais paradigmático e, embora Bocage não tenha encontrado a sua Beatriz, entreviu-a pelo menos parcialmente em algumas das sucessivas amadas (sem que se deva culpá-lo de infidelidade ou de don juanismo...), pelo que naturalmente acolheu ou gerou intuições e rasgos valiosos nos mistérios do além e do amor e, quem sabe, da alma-gémea.
É nas elegias dedicadas a certas a pessoas, por amor ou amizade, ou convidado por elas ou seus familiares, que encontramos mais sinais dos seus conhecimentos, provenientes das leituras religiosas, mitológicas e filosóficas, ou então de diálogos com sábios amigos e intuições. Mas nos sonetos, como já mostrámos, essa presença da morte como passagem para outra dimensão sem que fique impedida a comunicação, está bastante assinalada e sentida emotivamente, pelo que não se devem ser consideradas como retóricas e interesseiras produções, como alguns críticos têm feito. Bocage foi inegavelmente um espiritualista conhecedor e crente de ser um espírito e de haver vida depois da morte do corpo físico.
Destacaremos acerca do momento da morte as seguintes expressões como  exemplos do que Bocage soube sentir e veicular poeticamente do conhecimento da constituição trinitária do ser humano, corpo, alma e espírito, e de alguns aspectos subtis deles: - Quando pensa suicidar-se e se arrepende «Alma quebra as prisões da Humanidade/Despe o vil manto, que pertence ao nada» (p. 273). - Quando comemora o camarada Prudêncio Rebelo Palhares morto em combate:«Cerras teus olhos, despe o teu semblante/ Aquela viva cor de que era ornado,/ E sobes da matéria desatado,/ Espírito feliz, ao Céu brilhante.» (p. 288). Ou ainda, à memória de Marília, o «Áureo fio subtil, que teve unida/ A corpo imaculado uma alma pura,/ de mimoso estalou e a sepultura/ Ficou do teu despojo enriquecida:» (p. 217), afirmação bem interessante por poder aludir, para além do fio das Parcas, aquele que na literatura ocultista é denominado "fio de prata" e que liga o corpo físico e éterico à alma espiritual. 

                                    
Outro psicomorfismo valioso e muito presente na Tradição Espiritual Portuguesa é o destemor perante a morte, pois «é nos eleitos um sorriso a morte», ou como dirão mais tarde Antero e Pessoa, "Morrer é ser iniciado", surgindo mesmo com ousadia na homenagem a um sentenciado no patíbulo em 1797: «Mortal, que foste herói no extremo dia,/ De ideias carrancudas e pavorosas/ Não sofreste o pavor na fantasia:» (p. 393), observando-se, tanto a condenação da pena de morte como a consciência ou sensibilidade às formas de pensamento que se não forem dominadas podem tomar conta da imaginação e causarem ilusão, apego e sofrimento.

No séc. XIX as pessoas eram certamente mais clarividentes e capazes de sentirem e verem como imagens os pensamentos, sentimentos e egrégoras colectivas, já que não havia um tão grande número de imagens a soterrar e a paralizar essa capacidade plástica da imaginação e do olhar interior que é a de reflectirem as ideias-forças subtis, das quais a actividade onírica é também sinal e espelho:«Bem hajas, oh Morfeu! À fantasia/ Que cena divinal me deste agora!» (p.349).  
Outras imagens valiosas encontramos nos sonetos dedicados às amadas Anarda e a Ritália: « Voaste, alma inocente, alma querida/ foste ver outro sol de luz mais pura/ Falsos bens desta vida, que não dura/ Trocaste pelos bens da eterna vida:// Por Deus chamada, para Deus nascida,» (p. 230), este último verso funcionando quase como um mantra, noutro poema manifestado também, «Eu parto, e vou teu nome repetindo» (p. 270), numa linha da Tradição Perene, entre nós por Fernando Pessoa muito glossado. Ou noutro ainda, para Ritália, admitindo dominar o seu corpo de glória e prometendo: «Se, primeiro que a tua, andar errante/ Pelas margens do Letes preguiçoso:/(...)/Ao negro esquecimento hei-de furtar-te:// E o pensamento alígero voando/ Por abafados ares, visitar-te/dali virá, meu bem, de quando em quando.» (p.182), numa bela comunhão de almas em viagens psico-espirituais subtis.
Podemos observar ainda que por vezes o vate, algo iniciaticamente, interroga-se como interpretar a visão gerada, ou intuída, da amada, já deste mundo partida:«Refulgente visão, tu és de Ulina;/ Tu és cópia fiel da minha amada,/ Ou reflexo talvez da luz divina» (p. 227), manifestando a sua actividade gnóstica quanto à substância e origem das visões e da nossa influência nelas, mesmo que receptores passivos.
 
Finalizemos com uma leve hermenêutica a um dos poemas mais profundos e conseguidos órfica e gnosticamente, o dedicado à mulher do grande amigo médico António Bersane Leite: «Espíritos gentis, por Jove amados,/ Volvendo a seu princípio luminoso,/ Olham Sol não crestante, e mais formoso,/ Vagueiam sem temor por entre os fados.» (p.401).
Em verdade, esta quadra dos "espíritos gentis" é certamente das mais espirituais do séc. XIX, pois transmite psicomorfismos da Tradição Perene valiosos, quais sejam os dos amigos de Deus, o do regresso à consciência e mundo espiritual, a dimensão espiritual e amorosa do Sol e, finalmente, a liberdade dos seres luminosos ou já despertos nos seus corpos de glória circulando por entre os seres e planos. 
Muitos outros passos da sua obra manifestam a sua espiritualidade, mas ficaria longo de mais este texto, e sobre algo em geral pouco vislumbrado ou aceite pela crítica literária, embora mais recentemente Ana Chora e Daniel Pires sejam bem mais abertos.
                                     
Este trabalho nasceu de um convite  do Daniel Pires e da Ana Chora  para participar no Congresso internacional Bocage e as Luzes do séc. XVIII, realizado de 12 a 14 de Setembro de 2016, na sua vila natal de Setúbal, e foi continuado e completado em 2 e 3 de Abril de 2019. O improviso da comunicação ao vivo no Congresso está registado no Youtube e as páginas das citações são das Obras de Bocage, Porto, Lello & Irmão Editores, 1968, edição hoje ultrapassada face ao valioso trabalho de reconstituição crítica textual realizado em vários volumes, para a Imprensa Nacional-Casa da Moeda, pelo amigo Daniel Pires, sem dúvida o melhor conhecedor da vida e obra de Bocage, de Elmano, do vate órfico e amoroso nosso...

domingo, 24 de março de 2019

"Em redor de Antero", pelo padre António Maria Pereira Barros, em 1995. Crítica de Pedro Teixeira da Mota.

Qualquer ensaio sobre um escritor e a sua vida e obra é sempre, por maiir imparcialidade objectiva que se queira assumir, uma projecção das nossas ideias e conhecimentos, pensamentos e sentimentos, desejos e ideais, ou mesmo preconceitos e intencionalidades...
Quem  o vier a ler, ainda que  tente discernir os véus postos ou as distorções efectuadas, vai recebê-los, sorê-los  e acrescentar os seus, e de tal modo se adicionam influências e possíveis distorções que o melhor meio de conhecimento ainda será lermos directamente o autor e estudarmos os factos históricos da sua vida, ainda que isto, novamente, seja  indirecto, a menos que seja nosso contemporâneo ou haja gravações e filmagens...
Como a compreensão da vida e obra de alguém depende de muitos factos e circunstâncias, desejamos investigar melhor quem foi, como dialogou e viveu, o que compreendeu ou realizou, disto resultando acerca de certos autores quase infinitos estudos, por vezes apenas repetindo as mesmas informações ou opiniões, e pouco ou nada acrescentando de lúcida observação, de comparação sincrónica de afinidades e influências e de subtil intuição do interior de tal ser, mas como há sempre devotos e curiosos de tais autores, qualquer publicação é apreciada, ou pelo menos consumida, imediatamente por tais admiradores...
Ora quando um autor por vários motivos, activos, afectivos e intelectuais se destaca e deixa uma obra magnífica e com aspectos misteriosos na sua vida, que como sabemos é sempre única e fugidia na sua essencialidade e totalidade, mais natural é multiplicarem-se as hipóteses explicativas, os livros, os colóquios, os debates. Estão neste caso entre nós nos últimos séculos sobretudo Camilo Castelo Branco, Eça de Queiroz, Antero de Quental e Fernando Pessoa, e antes referiremos sobretudo Gil Vicente e Camões.
Em redor de Antero chamou ao seu ensaio interpretativo, publicado em Matosinhos, em 1991, o Padre António Maria Pereira Barros, e se em alguns aspectos vê e ressuscita (como ele próprio afirma) bem Antero de Quental, noutros, levado pela sua premissa de que Antero saindo da fé Católica, recusando a existência de Deus, ficara na escuridão e sujeito ao desânimo, conclui que foi isso que o levou ao suicídio. Assim talvez acabe por acrescentar mais  véus e não chegar à visão mais profunda e completa possível, essa a que todos aspiramos...
Também por  outras caracterizações de Antero de Quental, o padre António Barros parece exagerar ou errar. Todavia, como respeitamos a sua obra e cada um deve discernir o que é a verdade, questionaremos apenas certas afirmações ou conclusões, sem querermos ser dogmáticos e afirmar que a nossa visão ou compreensão, ou a de outros, é a melhor. Transcreveremos então aspectos mais significativos do que foi pensado, sentido, imaginado e escrito pelo padre António Barros acerca de Antero de Quental, ora elogiando ora contrapondo a nossa ou outra interpretação ou hermenêutica.
Antes demais apresentemos da obra, um in-4º de 164 páginas de amplas margens e letra grande, com a seguinte divisão em capítulos: 1 - O Berço de Antero. II - A Aventura do Continente. III - O Lutador Inconformista. IV - Antero, Filósofo? V - O Sonetista, desdobrado em: 1 - O Drama de Deus, 2 - O Drama do Amor, 3 - O Enamorado da Morte, 4 - O Idealista da Morte; e, finalmente, o VI e último - O Soneto mais trágico.
Açores, ilha de S. Miguel. Furnas. Com Alfredo Cunhal Sendim e Joakin Malik. 2018.
No 1º capítulo, após uma bela descrição da força vulcânica e da beleza natural da ilha de S. Miguel, interrogando-se sobre o que  teria Antero de Quental sentido  em criança face a tais maravilhas, destaca ter sido ele, aos quatro anos de idade, aquando de um terramoto, encontrado a rezar no quarto; e aos 10 anos a sintonia e arrebatamento que vivenciou ao ler a longa e solene Ode a Deus de Alexandre Herculano, que transcreve na sua totalidade, considerando um sinal «da alma tenra e pura de Antero». A mãe é apresentada como a grande influência carinhosa e de educação cristã na vida de Antero, embora seja algo pintada por António Barros, padre: «E com que solicitude o não acompanhava à igreja! Ela, mais por intuição que por razões, previa que o seu filho não podia ser feliz sem a aceitação, pela fé, das verdades que Deus revelara ao homem. Sem essas verdades, efectivamente, tanto o homem, como a vida, como o universo se reduzem ao absurdo. A alma converte-se em noite sem estrelas. Que o digam os últimos Diários de Miguel Torga.»
É inegável que seria interessante sabermos que intuições teve a mãe da singularidade ou mesmo genialidade do filho, entre os outros filhos. Ou até, acerca do seu misticismo e da sua veia revolucionária. Mas daí a pensar, ou nós, que quem recusa a doutrina ou a dogmática católica se condena ao absurdo e desespero é um salto desmentido pelos biliões de seres de outras religiões, ou fora de religiões, que tiveram vidas plenas de amor e de luz sem nada saberem do Cristianismo. Quanto aos últimos diários de Miguel Torga, aliás até comentados neste blogue, nada dessa tragédia niilista se sente, antes pelo contrário um homem visceralmente religioso nos sentidos mais telúricos e fraternos.
Também  exagerará ao pensar que  o seu misticismo era frequentemente alimentado na leitura da ode de Herculano, o qual «ia-o prendendo a Deus, a quem pensou servir no sacerdócio», embora saibamos que Antero tinha uma forte veia mística e contemplativa e afirmou por vezes em jovem o seu desejo de se tornar religioso. E que também ao longo dos anos valorizou a contemplação e meditação como meios de se resistir à brutalidade dos tempos modernos, expressando o desejo, no plano imaginal, de se criar  uma Ordem dos Mateiros, a qual é referida poucas vezes expressamente, mas várias em termos do que lhe está implícito de recolhimento face à dispersão e barulho, superficialidade e falsidade da vida social moderna.
No II capítulo, A Aventura no Continente,  depois de evocar bem o sortilégio da cidade de Coimbra, da sua luz e luar, António Barros descreve os nove anos estudantis de Antero, dos preparatórios e da Universidade, com bom conhecimento de causa pois,  tendo sido professor e padre, tanto apoia Antero de Quental na crítica aos programas e metodologias do ensino e mesmo às autoridades educativas locais e nacionais, como escreve mesmo: «A esperança de um povo reside efectivamente, no fulgor, na pujança, na actualização constante do ensino universitário (...) Daí, a responsabilidade tremenda do governo na escolha do ministro da Educação. Se este não estiver dentro dos problemas da cultura, se não for homem muito inteligente e de grande poder de decisão para resolver os problemas que, neste sector, surgem de momento a momento, converte-se em deplorável frustração e sujeita o país  a perder o comboio do progresso. Foi o que aconteceu no tempo de Antero e o que aconteceu, infelizmente, nas décadas seguintes, até aos nossos dias»...
Destaca no período estudantil a dificuldade de separar o trigo do joio nas imensas leituras em que Antero se envolveu, a  prisão por oito dias em 1859, a criação da Sociedade do Raio, entre 1861 e 1862, o sarau literário de recepção a António Castilho em Maio de 1862, a mensagem de recepção lida por Antero diante do rei Humberto de Itália em Outubro,  e a saída dos alunos da sala dos Capelos quando o reitor se preparava para discursar, em Dezembro e o consequente Manifesto dos Estudantes da Universidade de Coimbra à opinião ilustrada do país
De 1864, sintetiza bem a épica Rolinada, em Abril, e assinala a sua formatura em 8 de Julho. Dramatiza talvez, contudo, a agitação desta época recorrendo à descrição que dela faz Antero de Quental na carta a Wilhelm Storck em 14 Maio 1887: «o facto importante da minha vida, durante aqueles anos e provavelmente o mais decisivo dela, foi a espécie de revolução intelectual e moral que em mim se deu ao sair, pobre criança arrancada  do viver quase patriarcal de uma província remota e imersa no seu plácido sono histórico, para o meio da irrespeitosa agitação intelectual de um centro onde mais ou menos vinham repercutir-se as encontradas correntes do espírito moderno. Varrida num instante, toda a minha educação católica e tradicional, caí num estado de dúvida e incerteza, tanto mais pungentes quanto, espírito naturalmente religioso, tinha nascido para crer placidamente e obedecer sem esforço a uma regra reconhecida. Achei-me sem direcção, estado terrível de espírito partilhado, mais ou menos, por quase todos os da minha geração, a primeira que saiu decidida e conscientemente da velha estrada da tradição» concluindo desta confissão de Antero que este excerto da carta constitui a mensagem mais sentida de Antero aos descrentes de todo o mundo, ou ela não esteja  orvalhada de lágrimas e sangue».
Sem dúvida Antero parece confessar-se nessa carta, levemente mitificante, crente num destino temperamental de obediência sua a uma regra religiosa, algo que contudo não nos parece muito  compatível com o seu verdadeiro génio, daimon ou individualidade. E diz ainda que caíra num estado pungente de dúvida e incerteza mas,  se ele estava em grande demanda ou batalha pelo conhecimento, o que custaria deixar crenças consideradas inúteis, erradas ou desnecessárias? Quem quer certezas nessa idade? Não estava ele todo entusiasmado com os ideais da revolução, da justiça, da igualdade?
A carta de Antero de Quental a Wilhelm Storck não deverá ser tomada tão à letra....
 No 3º capítulo, O Lutador Inconformista, embora reconhecendo a validade das propostas de Antero  de transformações na Educação e no Estado, o padre Barros considera que, quanto à Igreja Católica, Antero confundiu os homens, falíveis, com a Instituição e a Revelação Divina, e que Antero, trocando-a pelo Naturalismo e Materialismo, pelos filósofos apóstatas e ateus, e ainda por Buda e o Não-Ser, sofreu a consequência de perder-se, pois o deicídio intelectual levaria ao suicídio do homem. Pode haver aqui alguma razão, sobretudo quanto a perder certa ligação via Jesus ao Divino embora Antero tenho seguido outros intermediários, ao longo dos anos, autores místicos da Igreja, como o da Theologia Germanica, o que é bem melhor que a pretensa Revelação Divina tão violea todo Antigo Testamento, e com uma concepção de Deus tão tribal e vingativa, que de modo nenhum cabia na sua alma idealista...
Ainda assim valoriza as revolucionárias Odes Modernas publicadas em 1865, "poesia de combate contra a sociedade corrupta e corruptora do seu tempo", bem como a polémica do Bom Senso e Bom Gosto e os escritos de então, considerando tais sacudidelas necessárias, tanto mais que defendiam o progresso, a liberdade e a dignidade do pensamento do povo português. Pena fora (diz) que, em vez de se fundamentar em Jesus, fizesse Antero a escolha fatal de tais autores perdidos e que acabaram por o tornar seja descrente e logo atormentado pela dúvida. 
Mas relembrando as dificuldades sentidas na luta de modernização da literatura e do pensamento nessa polémica que teve reacções fortes dos conservadores e amigos de Feliciano Castilho, elogia-o: «Antero possuía uma alma  grande,  porque cheia de grandes ideais.»
Já quanto à experiência de tipógrafo, primeiro em Portugal e depois França, para onde segue para "poder falar com mais verdade e conhecimento", António Barros falha quando o considera impersistente, valorizando porém o seu credo de justiça social e depois de socialismo, mencionando a fundação do jornal República em 1870 e, pouco depois da eclosão da Comuna de Paris em 1871,  as Conferências do Casino e a reunião com os enviados espanhóis no rio Tejo para fundação do núcleo da Internacional Portuguesa. Bem como os partidos dos quais surgirá em 1875 o Partido Socialista, e em 1879 o Partido dos Operários Socialistas, ao qual Antero concorre como candidato a deputado. A desilusão de Antero dos meios e movimentos  políticos é conhecida mas o Padre Barros não estará a ver bem quando afirma que Antero de Quental se isolou narcisisticamente, sabendo nós das suas fragilidades psico-somáticas, da sua forte exigência de sinceridade, verdade e absoluto e do seu amadurecimento psico-espiritual, o qual o fez desvalorizar de certo modo a sua função de ideólogo ou activista político e socialista, onde também constatava bastantes defeitos.
O 4º capítulo é talvez o mais pequeno e discutível pois o padre António Barros não considera Antero um filósofo, já que pensa que ele não criou um sistema filosófico e apenas conheceu e assimilou os diferentes sistemas. Como sabemos, Antero confessou  as dificuldades que sentia em escrever o seu sistema, ou ainda que se sentia mais Sócrates falante que Platão escrevente, mas  temos de reconhecer que todos eles foram filósofos, tal como Antero diz numa carta de 28-3-1885: «continuo pois especulando e tenho lido e pensado bastante, possuindo hoje um conjunto definido e ligado de ideias, como quem diz, o meu Sistema».  
Talvez devamos ver que Antero Quental foi antes um espiritual que discernia as incapacidades do materialismo de explicar seja a subtil consciência, seja a mais elementar sensação,  e o Padre Barros realçará e explicitará bem as posições desenvolvidas nas Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, resumindo-as em algumas páginas, destacando a sua defesa da imortalidade da alma, afirmada desde cedo com a famosa carta a Anselmo de Andrade, em 1866, ainda muito romântica, embora depois não fosse tão desenvolvida por efeito das influências da noção do Inconsciente de Edward von Hartmann e do Não-Ser do Budismo, sobretudo via Schopenhauer, que o impediram de ter uma consciência e vivência mais clara do espírito individual (o jivataman da Índia) que somos, ainda que tão identificados ao corpo que usamos e à alma e mente que desenvolvemos.
Talvez possamos acrescentar que se pode ser filósofo apenas pelas qualidades psíquicas de aspiração, sensibilidade,  seriedade e questionamento e sabedoria, ou não signifique a palavra filósofo, etimologicamente, amigo ou amante da sabedoria...
Talvez o padre António Barros esteja a ver mal quando acha que só nos Sonetos atingiu a imortalidade e transcendeu o seu tempo, pois embora o próprio Antero de Quental reconhecesse que seria por esse livro que ficaria na História da Literatura, não há dúvidas que o seu vasto epistolário é valiosíssimo e por ele se imortalizou tanto no efeito anímico nos destinatários como agora em todos nós que o lemos...
Açores, 2018. Comunhão das almas no infinito...
 No V capítulo, depois de muito bem identificar a alta qualidade dos sonetos por serem representativos das dores e aspirações do Homem Universal, e por haver lume na sua poesia, o padre Barros passa a analisar alguns sonetos, segundo quatro critérios ou temáticas: 
1 - O Drama de Deus. Comentando o último verso do soneto Mea culpa, "É de crer que só eu seja o culpado", escreve acerca dele: «E não se diga que era o destino de Antero. Não há destino traçado. O homem, sendo projecto porque inteligente e livre, constrói, responsavelmente, seu próprio destino. Voluntariamente aos dezoito anos, fechou à luz seus olhos heréticos, fascinados pela vã glória e alimentados por vão narcisismo. Vítima da sua decisão, enveredou por uma vida feita de noite, de dor, de desilusão, de lágrimas inconsoláveis, de tormentos, de angústia de que os seus sonetos são o cântico lúgubre».
Na verdade, se há sempre livre arbítrio e se os muitos condicionamentos que podem pesar sobre uma pessoa não a irresponsabilizam do seu projecto e percurso, já a ideia que por ter saído das crenças católicas e ter enveredado por linhas heterodoxas ou heréticas, devido ao seu pretenso "narcisismo", Antero fatalmente mergulharia no sofrimento que tinge muitos dos seus sonetos, parece exagerada pois há muita gente que sai e continua bem ou até crente em algo de Divino, assim como há muita gente que se conserva na Igreja, ou acredita em Deus, e sofre depressões e angústias. 
Mesmo imaginar a vã glória e o narcisismo de Antero como as causas do seu desvio ou fuga de Deus não me parece  correcto, embora possa haver alguns episódios da sua vida que tenham algo da hybris, da ousadia, tão criticada pelos gregos, tal como quando teria desafiado, no meio de uma tempestade de raios, Jehová a fulminá-lo, se existisse, embora até neste caso devemos relativizaros a pretensa arrogância ou vã glória de Antero de Quental, lembrando que Jehová é apenas uma concepção bem limitada, cruel e vingativa até, de Deus, e que mesmo a Divindade para Jesus, ou o Pai (seja Ele quem for...), nada tinha a ver com o tribal e violento Jehová, bem contestado não só nesse episódio como em vários outros textos e sonetos, aliás numa linha na qual já Bocage, companheiro de seu avô André da Ponte, se iniciara.
 António Barros, como religioso e católico, elogia muito dois  sonetos Na Mão de Deus e o «não menos maravilhoso soneto, soneto de esperança, e Solemnia verba, composto no dia em que fez quarenta anos, marcando sua passagem do pessimismo para o optimismo (...)», e assim seria uma homenagem a D. Vitória, mulher de Oliveira Martins «muito distinta e fervorosa católica. O soneto em causa pretende ser uma homenagem à sua fé. Daí não termos dúvidas de que ao escrevê-lo, Antero o fez recordando, pelo menos, o tempo em que era crente. Não esqueçamos  que o autor dos Sonetos, navegando embora, muitas vezes, em mares de dúvida, no fundo nunca deixou de ser uma alma profundamente religiosa. Viveu o drama de Deus. Quem não o vive? Que o diga, nos nossos dias, Miguel Torga?»  
 
 Acrescentemos apenas que o Solemnia Verba foi escrito em Paris, em 1877, quando Antero se apaixonou pela baronesa de Seillières, e é realmente autobiográfico, provavelmente a mais do que um nível, na sua sensação-intuição-reconhecimento forte do Amor. Quanto ao soneto Na Mão de Deus, embora posto como o último dos Sonetos Completos, sabemos que foi redigido em Março-Abril de 1882, e enviado em Maio a Alberto Sampaio, no fim de uma carta e antecedido da seguinte explicação: «Fiz, depois que aqui estiveste, mais um soneto, que aí vai. Não te assuste a palavra Deus. É um símbolo e ainda o melhor para exprimir uma certa coisa, que doutro feitio não caberia em verso. Pura liberdade poética.»
 A explicação sem "dúvida" do padre Barros fica assim relegada para um desejo seu e provavelmente só foi dedicado a Dona Vitória aquando da impressão dos Sonetos Completos prefaciados pelo seu marido  Joaquim Oliveira Martins, em 1886. 
 2 - O Drama do amor. Menciona ao de leve (e porque Antero era muito discreto quanto aos seus amores e logo pouco se sabe) os cinco apaixonamentos, nomeadamente o de 1877 nas termas francesas de Bellevue, com a baronesa de Seillière. E traz à liça as citações de Oliveira Martins, belas, sobre a qualidade do seu coração e amor, e como ele sofreu com isso. 
                         
3 - O Enamorado da noite: António Barros tenta explicar a predominância da noite na poesia e cosmovisão de Antero seleccionando três sonetos Luta, Nox e Consulta e tece algumas considerações ora muito prováveis ora muito simplistas, de dualismo radical e discutíveis. Oiçamos-lo:  «Desde que deixou extinguir-se a luz da fé, Antero mergulhou em infinita escuridão. Abandonou a crença que é luz para se refugiar na descrença que é noite.// Interrogou o mistério da vida, do sofrimento e da morte mas não encontrou a resposta luminosa que só a fé lhe podia dar. Ardia e tremia com o gelo do Infinito. A noite poisava, como asa negra, no coração do poeta.»
Esquece que crença e fé podem ser cegas e absurdas. E que além da fé sempre houve a via do conhecimento, da gnose, da iniciação, na qual Antero se ligou  por leituras, conversas e meditações intermitentemente, já que poucos na sua época compreendiam e se interessavam por tal, e referiremos Vasconcelos d'Abreu, Jaime de Magalhães Lima e Cirilo Machado.
Que diferença para os nosso dias, em que a relatividade das fés, crenças e religiões é cada vez mais evidente e como a divulgação de ensinamentos e práticas espirituais de todos os tempos e povos permite as pessoas saírem de crenças ou dúvidas para as vivências e visões.
E continua:«Na noite da desilusão forja-lhe a dor sua poesia metafisico-sentimental, única na História da Literatura Portuguesa. Odiava a luz que lhe mostrava as misérias da existência e a pátria humilhada e apática que ele queria despertar, da terrível sonolência em que a lançara a loucura dos políticos, para uma vida nova que a tornasse digna aos olhos dos portugueses e estrangeiros. Entre o ideal longínquo e o real cruel que continuamente presenciava, seu coração balançava e tremia de frio, deixando-se envolver pela noite do desânimo e do pessimismo. Odiando o dia, quantas vezes não levantava voo nas asas da sua imaginação, pela noite dentro, pelos espaços sidéreos, alucinado, à procura do segredo da vida, para regressar à terra, desiludido, com os mesmos sonhos, fantasmas e espantos. Seu pensamento voava no escuro, por entre desilusões de fogo. Amaldiçoando a claridade, iluminava o desencanto e a morte, agitando um facho de lágrimas na noite que o fascinava como podemos ver no soneto Lucta...»
                                     
Absurdo pensar-se, como o padre Barros se deixa levar, que Antero odiava o dia, amaldiçoava a claridade e andava alucinado à procura do segredo da vida, em voos imaginários nocturnos, ele que tinha tão grande aspiração de conhecimento, de justiça, de amor, de verdade...
 4 - O Idealista da morte, embora  o sub-capítulo tenha este título,  segundo o padre Barros, Antero de Quental temia a morte e amava a vida loucamente, interpretação que me parece errada, tão visível é o seu namoro com a morte e o não-ser, bem como o desprendimento em relação à vida, algo que foi amadurecendo ou fortificando-se ao longo dos anos e de algumas desilusões. Realça ainda a arrumação dos Sonetos completos terminar com um soneto cristão, "na mão de Deus", e não budista, como se tal expressão simbólica de entrega a Deus se limitasse a metáfora do cristianismo. E atreve-se a clamar em conclusão «que só à luz do Cristianismo conseguimos decifrar tão grande mistério da morte». Com as míticas ressurreição dos mortos e a última vinda de Jesus, perguntaremos? E tantos outros povos onde a certeza da vida espiritual era ensinada por iniciação ou religião, como na Grécia, na Índia, no Irão?
Todavia, termina bem o capítulo, ou não fosse ele um sacerdote portador do graal da comunhão: «A tal luz [do Cristianismo], esta [a morte] não é o ponto final da vida, mas um renascer para a comunhão com o eterno Bem», frase esta copiada quase de Antero, e estando tal possibilidade aberta a todos os seres de todos os povos e religiões e não só em termos tão fáceis e plenos, como ele sugere para a tradição seja paradisíaca seja purgatorial cristã...
No VI capítulo e final,  o Soneto mais trágico, António Barros metaforiza a morte de Antero de Quental como sendo tal soneto, e especula um pouco sobre as  causas remotas e próximas que contribuíram para tal acto, mencionando correctamente a doença enfraquecedora e desgastante, a morte da mãe a quem amava tanto, depois a do seu irmão André e a de Germano Meireles, por fim a da mulher deste, a que o obriga a separar-se relativamente das duas crianças adoptadas. Não nomeia porém a separação final delas, já nos Açores, uns dias antes de se matar.  Erradamente, e repisando a tecla do narcisismo de Antero, considera mal que teria tido uma desilusão  por os seus sonetos traduzidos para alemão não terem obtido sucesso...
Transcreve por fim a última carta de Antero de Quental, já nos Açores onde tencionava terminar os seus dias,  a Oliveira Martins, onde explica verdadeiramente o que se estava a passar de problemas, a preocupação imensa que sentia pelas crianças de que se tinha de separar, o não sentir melhoras de saúde e não se conseguir adaptar, terminando com a confissão da sua dualidade: «peço a minha razão que comunique aos meus nervos o estoicismo que ela tem, mas de que eles não parecem susceptíveis»...
De algumas confidências de Antero nesses últimos dias recolhidas por José Bruno Carreiro na sua monumental biografia de Antero de Quental, transparece grande desânimo, tal como a transmitida a D. Maria de Conceição Machado, "sou um vencido da vida. Já nada pode distrair-me" e "a felicidade não se fez para mim"...
As considerações que faz do suicídio são também  discutíveis, ou mesmo risíveis, tal como quando diz que nesse momento «o gelo do seu vazio existencial faz nascer nele saudades da serenidade do túmulo», numa coisificação da morte e do cadáver a repousar, quando Antero se sabia espírito, ainda que pouco o tivesse cingido na sua individualidade própria. Talvez o melhor neste final do P. António Pereira Barros seja quando se interroga mais humildemente:«Voluntário, este acto tresloucado de Antero? Creio que não. Talvez as forças do inconsciente e subconsciente, por enquanto desconhecidas, estejam por detrás de semelhante tragédia». E de facto quem conhece a sua alma, como já os iniciados de Delfos eram chamados a demandar: Gnothi seauton?
Muita luz e amor nas almas de Antero de Quental e do padre António Barros. Que  possam até dialogar luminosamente...
                                             Vista dos mundos espirituais por Bô Yin Râ...