domingo, 24 de março de 2019

"Em redor de Antero", pelo padre António Maria Pereira Barros, em 1995. Crítica de Pedro Teixeira da Mota.

Qualquer ensaio sobre um escritor e a sua vida e obra é sempre, por maiir imparcialidade objectiva que se queira assumir, uma projecção das nossas ideias e conhecimentos, pensamentos e sentimentos, desejos e ideais, ou mesmo preconceitos e intencionalidades...
Quem  o vier a ler, ainda que  tente discernir os véus postos ou as distorções efectuadas, vai recebê-los, sorê-los  e acrescentar os seus, e de tal modo se adicionam influências e possíveis distorções que o melhor meio de conhecimento ainda será lermos directamente o autor e estudarmos os factos históricos da sua vida, ainda que isto, novamente, seja  indirecto, a menos que seja nosso contemporâneo ou haja gravações e filmagens...
Como a compreensão da vida e obra de alguém depende de muitos factos e circunstâncias, desejamos investigar melhor quem foi, como dialogou e viveu, o que compreendeu ou realizou, disto resultando acerca de certos autores quase infinitos estudos, por vezes apenas repetindo as mesmas informações ou opiniões, e pouco ou nada acrescentando de lúcida observação, de comparação sincrónica de afinidades e influências e de subtil intuição do interior de tal ser, mas como há sempre devotos e curiosos de tais autores, qualquer publicação é apreciada, ou pelo menos consumida, imediatamente por tais admiradores...
Ora quando um autor por vários motivos, activos, afectivos e intelectuais se destaca e deixa uma obra magnífica e com aspectos misteriosos na sua vida, que como sabemos é sempre única e fugidia na sua essencialidade e totalidade, mais natural é multiplicarem-se as hipóteses explicativas, os livros, os colóquios, os debates. Estão neste caso entre nós nos últimos séculos sobretudo Camilo Castelo Branco, Eça de Queiroz, Antero de Quental e Fernando Pessoa, e antes referiremos sobretudo Gil Vicente e Camões.
Em redor de Antero chamou ao seu ensaio interpretativo, publicado em Matosinhos, em 1991, o Padre António Maria Pereira Barros, e se em alguns aspectos vê e ressuscita (como ele próprio afirma) bem Antero de Quental, noutros, levado pela sua premissa de que Antero saindo da fé Católica, recusando a existência de Deus, ficara na escuridão e sujeito ao desânimo, conclui que foi isso que o levou ao suicídio. Assim talvez acabe por acrescentar mais  véus e não chegar à visão mais profunda e completa possível, essa a que todos aspiramos...
Também por  outras caracterizações de Antero de Quental, o padre António Barros parece exagerar ou errar. Todavia, como respeitamos a sua obra e cada um deve discernir o que é a verdade, questionaremos apenas certas afirmações ou conclusões, sem querermos ser dogmáticos e afirmar que a nossa visão ou compreensão, ou a de outros, é a melhor. Transcreveremos então aspectos mais significativos do que foi pensado, sentido, imaginado e escrito pelo padre António Barros acerca de Antero de Quental, ora elogiando ora contrapondo a nossa ou outra interpretação ou hermenêutica.
Antes demais apresentemos da obra, um in-4º de 164 páginas de amplas margens e letra grande, com a seguinte divisão em capítulos: 1 - O Berço de Antero. II - A Aventura do Continente. III - O Lutador Inconformista. IV - Antero, Filósofo? V - O Sonetista, desdobrado em: 1 - O Drama de Deus, 2 - O Drama do Amor, 3 - O Enamorado da Morte, 4 - O Idealista da Morte; e, finalmente, o VI e último - O Soneto mais trágico.
Açores, ilha de S. Miguel. Furnas. Com Alfredo Cunhal Sendim e Joakin Malik. 2018.
No 1º capítulo, após uma bela descrição da força vulcânica e da beleza natural da ilha de S. Miguel, interrogando-se sobre o que  teria Antero de Quental sentido  em criança face a tais maravilhas, destaca ter sido ele, aos quatro anos de idade, aquando de um terramoto, encontrado a rezar no quarto; e aos 10 anos a sintonia e arrebatamento que vivenciou ao ler a longa e solene Ode a Deus de Alexandre Herculano, que transcreve na sua totalidade, considerando um sinal «da alma tenra e pura de Antero». A mãe é apresentada como a grande influência carinhosa e de educação cristã na vida de Antero, embora seja algo pintada por António Barros, padre: «E com que solicitude o não acompanhava à igreja! Ela, mais por intuição que por razões, previa que o seu filho não podia ser feliz sem a aceitação, pela fé, das verdades que Deus revelara ao homem. Sem essas verdades, efectivamente, tanto o homem, como a vida, como o universo se reduzem ao absurdo. A alma converte-se em noite sem estrelas. Que o digam os últimos Diários de Miguel Torga.»
É inegável que seria interessante sabermos que intuições teve a mãe da singularidade ou mesmo genialidade do filho, entre os outros filhos. Ou até, acerca do seu misticismo e da sua veia revolucionária. Mas daí a pensar, ou nós, que quem recusa a doutrina ou a dogmática católica se condena ao absurdo e desespero é um salto desmentido pelos biliões de seres de outras religiões, ou fora de religiões, que tiveram vidas plenas de amor e de luz sem nada saberem do Cristianismo. Quanto aos últimos diários de Miguel Torga, aliás até comentados neste blogue, nada dessa tragédia niilista se sente, antes pelo contrário um homem visceralmente religioso nos sentidos mais telúricos e fraternos.
Também  exagerará ao pensar que  o seu misticismo era frequentemente alimentado na leitura da ode de Herculano, o qual «ia-o prendendo a Deus, a quem pensou servir no sacerdócio», embora saibamos que Antero tinha uma forte veia mística e contemplativa e afirmou por vezes em jovem o seu desejo de se tornar religioso. E que também ao longo dos anos valorizou a contemplação e meditação como meios de se resistir à brutalidade dos tempos modernos, expressando o desejo, no plano imaginal, de se criar  uma Ordem dos Mateiros, a qual é referida poucas vezes expressamente, mas várias em termos do que lhe está implícito de recolhimento face à dispersão e barulho, superficialidade e falsidade da vida social moderna.
No II capítulo, A Aventura no Continente,  depois de evocar bem o sortilégio da cidade de Coimbra, da sua luz e luar, António Barros descreve os nove anos estudantis de Antero, dos preparatórios e da Universidade, com bom conhecimento de causa pois,  tendo sido professor e padre, tanto apoia Antero de Quental na crítica aos programas e metodologias do ensino e mesmo às autoridades educativas locais e nacionais, como escreve mesmo: «A esperança de um povo reside efectivamente, no fulgor, na pujança, na actualização constante do ensino universitário (...) Daí, a responsabilidade tremenda do governo na escolha do ministro da Educação. Se este não estiver dentro dos problemas da cultura, se não for homem muito inteligente e de grande poder de decisão para resolver os problemas que, neste sector, surgem de momento a momento, converte-se em deplorável frustração e sujeita o país  a perder o comboio do progresso. Foi o que aconteceu no tempo de Antero e o que aconteceu, infelizmente, nas décadas seguintes, até aos nossos dias»...
Destaca no período estudantil a dificuldade de separar o trigo do joio nas imensas leituras em que Antero se envolveu, a  prisão por oito dias em 1859, a criação da Sociedade do Raio, entre 1861 e 1862, o sarau literário de recepção a António Castilho em Maio de 1862, a mensagem de recepção lida por Antero diante do rei Humberto de Itália em Outubro,  e a saída dos alunos da sala dos Capelos quando o reitor se preparava para discursar, em Dezembro e o consequente Manifesto dos Estudantes da Universidade de Coimbra à opinião ilustrada do país
De 1864, sintetiza bem a épica Rolinada, em Abril, e assinala a sua formatura em 8 de Julho. Dramatiza talvez, contudo, a agitação desta época recorrendo à descrição que dela faz Antero de Quental na carta a Wilhelm Storck em 14 Maio 1887: «o facto importante da minha vida, durante aqueles anos e provavelmente o mais decisivo dela, foi a espécie de revolução intelectual e moral que em mim se deu ao sair, pobre criança arrancada  do viver quase patriarcal de uma província remota e imersa no seu plácido sono histórico, para o meio da irrespeitosa agitação intelectual de um centro onde mais ou menos vinham repercutir-se as encontradas correntes do espírito moderno. Varrida num instante, toda a minha educação católica e tradicional, caí num estado de dúvida e incerteza, tanto mais pungentes quanto, espírito naturalmente religioso, tinha nascido para crer placidamente e obedecer sem esforço a uma regra reconhecida. Achei-me sem direcção, estado terrível de espírito partilhado, mais ou menos, por quase todos os da minha geração, a primeira que saiu decidida e conscientemente da velha estrada da tradição» concluindo desta confissão de Antero que este excerto da carta constitui a mensagem mais sentida de Antero aos descrentes de todo o mundo, ou ela não esteja  orvalhada de lágrimas e sangue».
Sem dúvida Antero parece confessar-se nessa carta, levemente mitificante, crente num destino temperamental de obediência sua a uma regra religiosa, algo que contudo não nos parece muito  compatível com o seu verdadeiro génio, daimon ou individualidade. E diz ainda que caíra num estado pungente de dúvida e incerteza mas,  se ele estava em grande demanda ou batalha pelo conhecimento, o que custaria deixar crenças consideradas inúteis, erradas ou desnecessárias? Quem quer certezas nessa idade? Não estava ele todo entusiasmado com os ideais da revolução, da justiça, da igualdade?
A carta de Antero de Quental a Wilhelm Storck não deverá ser tomada tão à letra....
 No 3º capítulo, O Lutador Inconformista, embora reconhecendo a validade das propostas de Antero  de transformações na Educação e no Estado, o padre Barros considera que, quanto à Igreja Católica, Antero confundiu os homens, falíveis, com a Instituição e a Revelação Divina, e que Antero, trocando-a pelo Naturalismo e Materialismo, pelos filósofos apóstatas e ateus, e ainda por Buda e o Não-Ser, sofreu a consequência de perder-se, pois o deicídio intelectual levaria ao suicídio do homem. Pode haver aqui alguma razão, sobretudo quanto a perder certa ligação via Jesus ao Divino embora Antero tenho seguido outros intermediários, ao longo dos anos, autores místicos da Igreja, como o da Theologia Germanica, o que é bem melhor que a pretensa Revelação Divina tão violea todo Antigo Testamento, e com uma concepção de Deus tão tribal e vingativa, que de modo nenhum cabia na sua alma idealista...
Ainda assim valoriza as revolucionárias Odes Modernas publicadas em 1865, "poesia de combate contra a sociedade corrupta e corruptora do seu tempo", bem como a polémica do Bom Senso e Bom Gosto e os escritos de então, considerando tais sacudidelas necessárias, tanto mais que defendiam o progresso, a liberdade e a dignidade do pensamento do povo português. Pena fora (diz) que, em vez de se fundamentar em Jesus, fizesse Antero a escolha fatal de tais autores perdidos e que acabaram por o tornar seja descrente e logo atormentado pela dúvida. 
Mas relembrando as dificuldades sentidas na luta de modernização da literatura e do pensamento nessa polémica que teve reacções fortes dos conservadores e amigos de Feliciano Castilho, elogia-o: «Antero possuía uma alma  grande,  porque cheia de grandes ideais.»
Já quanto à experiência de tipógrafo, primeiro em Portugal e depois França, para onde segue para "poder falar com mais verdade e conhecimento", António Barros falha quando o considera impersistente, valorizando porém o seu credo de justiça social e depois de socialismo, mencionando a fundação do jornal República em 1870 e, pouco depois da eclosão da Comuna de Paris em 1871,  as Conferências do Casino e a reunião com os enviados espanhóis no rio Tejo para fundação do núcleo da Internacional Portuguesa. Bem como os partidos dos quais surgirá em 1875 o Partido Socialista, e em 1879 o Partido dos Operários Socialistas, ao qual Antero concorre como candidato a deputado. A desilusão de Antero dos meios e movimentos  políticos é conhecida mas o Padre Barros não estará a ver bem quando afirma que Antero de Quental se isolou narcisisticamente, sabendo nós das suas fragilidades psico-somáticas, da sua forte exigência de sinceridade, verdade e absoluto e do seu amadurecimento psico-espiritual, o qual o fez desvalorizar de certo modo a sua função de ideólogo ou activista político e socialista, onde também constatava bastantes defeitos.
O 4º capítulo é talvez o mais pequeno e discutível pois o padre António Barros não considera Antero um filósofo, já que pensa que ele não criou um sistema filosófico e apenas conheceu e assimilou os diferentes sistemas. Como sabemos, Antero confessou  as dificuldades que sentia em escrever o seu sistema, ou ainda que se sentia mais Sócrates falante que Platão escrevente, mas  temos de reconhecer que todos eles foram filósofos, tal como Antero diz numa carta de 28-3-1885: «continuo pois especulando e tenho lido e pensado bastante, possuindo hoje um conjunto definido e ligado de ideias, como quem diz, o meu Sistema».  
Talvez devamos ver que Antero Quental foi antes um espiritual que discernia as incapacidades do materialismo de explicar seja a subtil consciência, seja a mais elementar sensação,  e o Padre Barros realçará e explicitará bem as posições desenvolvidas nas Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, resumindo-as em algumas páginas, destacando a sua defesa da imortalidade da alma, afirmada desde cedo com a famosa carta a Anselmo de Andrade, em 1866, ainda muito romântica, embora depois não fosse tão desenvolvida por efeito das influências da noção do Inconsciente de Edward von Hartmann e do Não-Ser do Budismo, sobretudo via Schopenhauer, que o impediram de ter uma consciência e vivência mais clara do espírito individual (o jivataman da Índia) que somos, ainda que tão identificados ao corpo que usamos e à alma e mente que desenvolvemos.
Talvez possamos acrescentar que se pode ser filósofo apenas pelas qualidades psíquicas de aspiração, sensibilidade,  seriedade e questionamento e sabedoria, ou não signifique a palavra filósofo, etimologicamente, amigo ou amante da sabedoria...
Talvez o padre António Barros esteja a ver mal quando acha que só nos Sonetos atingiu a imortalidade e transcendeu o seu tempo, pois embora o próprio Antero de Quental reconhecesse que seria por esse livro que ficaria na História da Literatura, não há dúvidas que o seu vasto epistolário é valiosíssimo e por ele se imortalizou tanto no efeito anímico nos destinatários como agora em todos nós que o lemos...
Açores, 2018. Comunhão das almas no infinito...
 No V capítulo, depois de muito bem identificar a alta qualidade dos sonetos por serem representativos das dores e aspirações do Homem Universal, e por haver lume na sua poesia, o padre Barros passa a analisar alguns sonetos, segundo quatro critérios ou temáticas: 
1 - O Drama de Deus. Comentando o último verso do soneto Mea culpa, "É de crer que só eu seja o culpado", escreve acerca dele: «E não se diga que era o destino de Antero. Não há destino traçado. O homem, sendo projecto porque inteligente e livre, constrói, responsavelmente, seu próprio destino. Voluntariamente aos dezoito anos, fechou à luz seus olhos heréticos, fascinados pela vã glória e alimentados por vão narcisismo. Vítima da sua decisão, enveredou por uma vida feita de noite, de dor, de desilusão, de lágrimas inconsoláveis, de tormentos, de angústia de que os seus sonetos são o cântico lúgubre».
Na verdade, se há sempre livre arbítrio e se os muitos condicionamentos que podem pesar sobre uma pessoa não a irresponsabilizam do seu projecto e percurso, já a ideia que por ter saído das crenças católicas e ter enveredado por linhas heterodoxas ou heréticas, devido ao seu pretenso "narcisismo", Antero fatalmente mergulharia no sofrimento que tinge muitos dos seus sonetos, parece exagerada pois há muita gente que sai e continua bem ou até crente em algo de Divino, assim como há muita gente que se conserva na Igreja, ou acredita em Deus, e sofre depressões e angústias. 
Mesmo imaginar a vã glória e o narcisismo de Antero como as causas do seu desvio ou fuga de Deus não me parece  correcto, embora possa haver alguns episódios da sua vida que tenham algo da hybris, da ousadia, tão criticada pelos gregos, tal como quando teria desafiado, no meio de uma tempestade de raios, Jehová a fulminá-lo, se existisse, embora até neste caso devemos relativizaros a pretensa arrogância ou vã glória de Antero de Quental, lembrando que Jehová é apenas uma concepção bem limitada, cruel e vingativa até, de Deus, e que mesmo a Divindade para Jesus, ou o Pai (seja Ele quem for...), nada tinha a ver com o tribal e violento Jehová, bem contestado não só nesse episódio como em vários outros textos e sonetos, aliás numa linha na qual já Bocage, companheiro de seu avô André da Ponte, se iniciara.
 António Barros, como religioso e católico, elogia muito dois  sonetos Na Mão de Deus e o «não menos maravilhoso soneto, soneto de esperança, e Solemnia verba, composto no dia em que fez quarenta anos, marcando sua passagem do pessimismo para o optimismo (...)», e assim seria uma homenagem a D. Vitória, mulher de Oliveira Martins «muito distinta e fervorosa católica. O soneto em causa pretende ser uma homenagem à sua fé. Daí não termos dúvidas de que ao escrevê-lo, Antero o fez recordando, pelo menos, o tempo em que era crente. Não esqueçamos  que o autor dos Sonetos, navegando embora, muitas vezes, em mares de dúvida, no fundo nunca deixou de ser uma alma profundamente religiosa. Viveu o drama de Deus. Quem não o vive? Que o diga, nos nossos dias, Miguel Torga?»  
 
 Acrescentemos apenas que o Solemnia Verba foi escrito em Paris, em 1877, quando Antero se apaixonou pela baronesa de Seillières, e é realmente autobiográfico, provavelmente a mais do que um nível, na sua sensação-intuição-reconhecimento forte do Amor. Quanto ao soneto Na Mão de Deus, embora posto como o último dos Sonetos Completos, sabemos que foi redigido em Março-Abril de 1882, e enviado em Maio a Alberto Sampaio, no fim de uma carta e antecedido da seguinte explicação: «Fiz, depois que aqui estiveste, mais um soneto, que aí vai. Não te assuste a palavra Deus. É um símbolo e ainda o melhor para exprimir uma certa coisa, que doutro feitio não caberia em verso. Pura liberdade poética.»
 A explicação sem "dúvida" do padre Barros fica assim relegada para um desejo seu e provavelmente só foi dedicado a Dona Vitória aquando da impressão dos Sonetos Completos prefaciados pelo seu marido  Joaquim Oliveira Martins, em 1886. 
 2 - O Drama do amor. Menciona ao de leve (e porque Antero era muito discreto quanto aos seus amores e logo pouco se sabe) os cinco apaixonamentos, nomeadamente o de 1877 nas termas francesas de Bellevue, com a baronesa de Seillière. E traz à liça as citações de Oliveira Martins, belas, sobre a qualidade do seu coração e amor, e como ele sofreu com isso. 
                         
3 - O Enamorado da noite: António Barros tenta explicar a predominância da noite na poesia e cosmovisão de Antero seleccionando três sonetos Luta, Nox e Consulta e tece algumas considerações ora muito prováveis ora muito simplistas, de dualismo radical e discutíveis. Oiçamos-lo:  «Desde que deixou extinguir-se a luz da fé, Antero mergulhou em infinita escuridão. Abandonou a crença que é luz para se refugiar na descrença que é noite.// Interrogou o mistério da vida, do sofrimento e da morte mas não encontrou a resposta luminosa que só a fé lhe podia dar. Ardia e tremia com o gelo do Infinito. A noite poisava, como asa negra, no coração do poeta.»
Esquece que crença e fé podem ser cegas e absurdas. E que além da fé sempre houve a via do conhecimento, da gnose, da iniciação, na qual Antero se ligou  por leituras, conversas e meditações intermitentemente, já que poucos na sua época compreendiam e se interessavam por tal, e referiremos Vasconcelos d'Abreu, Jaime de Magalhães Lima e Cirilo Machado.
Que diferença para os nosso dias, em que a relatividade das fés, crenças e religiões é cada vez mais evidente e como a divulgação de ensinamentos e práticas espirituais de todos os tempos e povos permite as pessoas saírem de crenças ou dúvidas para as vivências e visões.
E continua:«Na noite da desilusão forja-lhe a dor sua poesia metafisico-sentimental, única na História da Literatura Portuguesa. Odiava a luz que lhe mostrava as misérias da existência e a pátria humilhada e apática que ele queria despertar, da terrível sonolência em que a lançara a loucura dos políticos, para uma vida nova que a tornasse digna aos olhos dos portugueses e estrangeiros. Entre o ideal longínquo e o real cruel que continuamente presenciava, seu coração balançava e tremia de frio, deixando-se envolver pela noite do desânimo e do pessimismo. Odiando o dia, quantas vezes não levantava voo nas asas da sua imaginação, pela noite dentro, pelos espaços sidéreos, alucinado, à procura do segredo da vida, para regressar à terra, desiludido, com os mesmos sonhos, fantasmas e espantos. Seu pensamento voava no escuro, por entre desilusões de fogo. Amaldiçoando a claridade, iluminava o desencanto e a morte, agitando um facho de lágrimas na noite que o fascinava como podemos ver no soneto Lucta...»
                                     
Absurdo pensar-se, como o padre Barros se deixa levar, que Antero odiava o dia, amaldiçoava a claridade e andava alucinado à procura do segredo da vida, em voos imaginários nocturnos, ele que tinha tão grande aspiração de conhecimento, de justiça, de amor, de verdade...
 4 - O Idealista da morte, embora  o sub-capítulo tenha este título,  segundo o padre Barros, Antero de Quental temia a morte e amava a vida loucamente, interpretação que me parece errada, tão visível é o seu namoro com a morte e o não-ser, bem como o desprendimento em relação à vida, algo que foi amadurecendo ou fortificando-se ao longo dos anos e de algumas desilusões. Realça ainda a arrumação dos Sonetos completos terminar com um soneto cristão, "na mão de Deus", e não budista, como se tal expressão simbólica de entrega a Deus se limitasse a metáfora do cristianismo. E atreve-se a clamar em conclusão «que só à luz do Cristianismo conseguimos decifrar tão grande mistério da morte». Com as míticas ressurreição dos mortos e a última vinda de Jesus, perguntaremos? E tantos outros povos onde a certeza da vida espiritual era ensinada por iniciação ou religião, como na Grécia, na Índia, no Irão?
Todavia, termina bem o capítulo, ou não fosse ele um sacerdote portador do graal da comunhão: «A tal luz [do Cristianismo], esta [a morte] não é o ponto final da vida, mas um renascer para a comunhão com o eterno Bem», frase esta copiada quase de Antero, e estando tal possibilidade aberta a todos os seres de todos os povos e religiões e não só em termos tão fáceis e plenos, como ele sugere para a tradição seja paradisíaca seja purgatorial cristã...
No VI capítulo e final,  o Soneto mais trágico, António Barros metaforiza a morte de Antero de Quental como sendo tal soneto, e especula um pouco sobre as  causas remotas e próximas que contribuíram para tal acto, mencionando correctamente a doença enfraquecedora e desgastante, a morte da mãe a quem amava tanto, depois a do seu irmão André e a de Germano Meireles, por fim a da mulher deste, a que o obriga a separar-se relativamente das duas crianças adoptadas. Não nomeia porém a separação final delas, já nos Açores, uns dias antes de se matar.  Erradamente, e repisando a tecla do narcisismo de Antero, considera mal que teria tido uma desilusão  por os seus sonetos traduzidos para alemão não terem obtido sucesso...
Transcreve por fim a última carta de Antero de Quental, já nos Açores onde tencionava terminar os seus dias,  a Oliveira Martins, onde explica verdadeiramente o que se estava a passar de problemas, a preocupação imensa que sentia pelas crianças de que se tinha de separar, o não sentir melhoras de saúde e não se conseguir adaptar, terminando com a confissão da sua dualidade: «peço a minha razão que comunique aos meus nervos o estoicismo que ela tem, mas de que eles não parecem susceptíveis»...
De algumas confidências de Antero nesses últimos dias recolhidas por José Bruno Carreiro na sua monumental biografia de Antero de Quental, transparece grande desânimo, tal como a transmitida a D. Maria de Conceição Machado, "sou um vencido da vida. Já nada pode distrair-me" e "a felicidade não se fez para mim"...
As considerações que faz do suicídio são também  discutíveis, ou mesmo risíveis, tal como quando diz que nesse momento «o gelo do seu vazio existencial faz nascer nele saudades da serenidade do túmulo», numa coisificação da morte e do cadáver a repousar, quando Antero se sabia espírito, ainda que pouco o tivesse cingido na sua individualidade própria. Talvez o melhor neste final do P. António Pereira Barros seja quando se interroga mais humildemente:«Voluntário, este acto tresloucado de Antero? Creio que não. Talvez as forças do inconsciente e subconsciente, por enquanto desconhecidas, estejam por detrás de semelhante tragédia». E de facto quem conhece a sua alma, como já os iniciados de Delfos eram chamados a demandar: Gnothi seauton?
Muita luz e amor nas almas de Antero de Quental e do padre António Barros. Que  possam até dialogar luminosamente...
                                             Vista dos mundos espirituais por Bô Yin Râ...

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