As relações entre génios, pensadores e artistas de vários povos é um campo sempre fértil à investigação. A interacção, por exemplo, entre Tolstoi e vários escritores e pensadores japoneses ocorreu prolongadamente e foi bem estudada, e com coração e sentimento descrita, por Brigitte Kyama-Richard, no seu bem documentado (embora só com duas imagens) Tolstoi et le Japon, La découverte de Tolstoi a l'ère Meiji, impresso em 1990 pelas Publications Orientalistes de France, na colecção Bibliotheque Japonaise, dirigida por René Stieffert, já com umas dezenas de boas obras dadas à luz. Vamos abordá-lo quanto a um dos tolstoianos japoneses ...
Brigitte Kyama-Richard, autora ainda de várias obras sobre o Japão, neste seu livro, depois de uma breve introdução às relações diplomáticas entre a Rússia e o Dai-Nippon, mostra-nos como a imprensa japonesa seguia, descrevia e via Tolstoi e analisa os modos de relacionamento dos intelectuais da era Meiji com Tolstoi.
Brigitte Kyama-Richard, autora ainda de várias obras sobre o Japão, neste seu livro, depois de uma breve introdução às relações diplomáticas entre a Rússia e o Dai-Nippon, mostra-nos como a imprensa japonesa seguia, descrevia e via Tolstoi e analisa os modos de relacionamento dos intelectuais da era Meiji com Tolstoi.
Neste breve artigo vamos referir o primeiro japonês estudado, Konishi Masutarô (1862-1940), que esteve sete anos na Rússia, aprendendo em Kiev e na Universidade de Moscovo, aqui com Nikolai Grot (que fundara um grupo de estudos filosóficos e psicológicos onde participava o brilhante filósofo Vladimir Soloviev, em baixo com Tolstoi, numa pintura de L. Pasternak), com quem se deu muito cordialmente, tanto mais que conhecia bem, apesar de ser cristão, os filósofos chineses, sendo por isso encarregado por ele, depois de traduzir os Preceitos de Confúcio, de abordar Lau Tseu e o seu subtil ou místico Tao Te Ching, um livro de cabeceira de milhões de seres...
Tolstoi, que já conhecia razoavelmente a filosofia Oriental, sobretudo chinesa mas praticamente nada da japonesa, soube da tradução que Konishi iniciava em 1892 e quis conhecê-lo. E assim se deu um encontro ou reencontro importante: Tolstoi então com 68 anos, sua mulher Sónia com 46, receberam-no muito cordialmente na casa que tinham em Moscovo, e Tolstoi convidou-o a traduzirem a dois, pois ao conhecimento de chinês de Konishi ele acrescentaria as versões alemães, russas e francesas que possuía, pois era grande o seu entusiasmo por Lau Tseu, lamentando-se até de não ter aprendido o chinês. E assim trabalharam lado a lado quatro meses e a obra foi dada à luz.
Tolstoi, que já conhecia razoavelmente a filosofia Oriental, sobretudo chinesa mas praticamente nada da japonesa, soube da tradução que Konishi iniciava em 1892 e quis conhecê-lo. E assim se deu um encontro ou reencontro importante: Tolstoi então com 68 anos, sua mulher Sónia com 46, receberam-no muito cordialmente na casa que tinham em Moscovo, e Tolstoi convidou-o a traduzirem a dois, pois ao conhecimento de chinês de Konishi ele acrescentaria as versões alemães, russas e francesas que possuía, pois era grande o seu entusiasmo por Lau Tseu, lamentando-se até de não ter aprendido o chinês. E assim trabalharam lado a lado quatro meses e a obra foi dada à luz.
Konishi Masutarô, quando regressou ao Japão em 1893, traduziu Tolstoi, nomeadamente a Sonata a Kreuzer, com revisão de Ozaki Koyo, e escreveu vários artigos sobre ele, tais como A concepção do mundo de Tolstoi, e A propósito da "religião" de Tolstoi.
O efeito anímico tolstoiano fora forte em Konishi, como este lhe confessará em carta de 1896: «Para ser franco, o nosso reencontro e o que me ensinou, transformaram completamente o meu entendimento do cristianismo. Todos os dias, pensando em vós, experimento uma alegria espontânea grande (...)».
Sabemos que Tolstoi deve ter partilhado com Konishi as sua principais críticas aos ensinamentos da Igreja, tais como a que a Bíblia e o Genesis confundem Deus, ou mesmo o Deus Pai, com um deus invejoso e maldoso; que não houvera redenção da humanidade com a morte dita expiatória de Jesus, pois tudo continuava na mesma, para além de que tal crença tornava menos activas no bem as pessoas. Não acreditava na Trindade ou mesmo na Divindade de Jesus, na sua ressurreição, ou na ridícula ressurreição dos mortos. Nem nos milagres, nem na Eucaristia, nem nos sacramentos, criados para manter o domínio sobre os crentes e explorá-los. Isto tudo abalara certamente a fé de Konishi e algo aos poucos foi fermentando dentro dele, como ele próprio o confessa.
E continuava na sua carta a Tolstoi: «Por aqui, vou escrevendo sobre si e sobre o modo como considera o Cristianismo e a Vida e traduzindo as suas obras. Já traduzi: Os dois velhos, Onde está o amor, aí está Deus, a Sonata a Kreutzer. Actualmente traduzo a Morte de Ivan Illich, e a Religião e Moral, e chamam-me tolstoiano. Posso declarar-lhe que tem por cá muitos admiradores.»
A resposta uns meses depois de Tolstoi é muito elucidativa da sua visão moral e espiritual do Cristianismo, para ele basicamente a religião melhor afirmativa do Amor, embora iludindo-se sobre o seu futuro no Oriente: «Alegro-me que as suas opiniões sobre o Cristianismo Ortodoxo modificaram-se. Estranhei sempre e não queria crer que um povo tão inteligente e pouco supersticioso como o japonês, pudesse aceitar e acreditar nesses dogmas absurdos que constituem a essência do cristianismo, tanto católico como ortodoxo e luterano ou evangélico. Pelo contrário, sempre pensei que os povos japoneses e chineses não poderiam deixar de aceitar o verdadeiro cristianismo, pois só ele dá a resposta às grandes questões da vida que confrontam todos os seres e apela a uma solução que nem o Budismo nem o Confucionismo podem oferecer.
Os mestres da Humanidade, em todas as épocas, pregaram a fraternidade humana, mas só o cristianismo mostra a via pela qual é possível chegar até isso. Traduziu algumas obras minhas como a Sonata a Kreutzer e outras, mas gostaria bem mais que o público japonês se familiarizasse com o verdadeiro cristianismo, tal como eu penso que o seu fundador o concebeu. Expus tal, o mais claramente que me foi possível, no meu livro o Reino de Deus está dentro de vós [reproduzido em baix0 o frontispício da 1ª edição, 1893.]. Penso que este livro, ou um resumo dele, interessaria aos japoneses e mostrar-lhes-ia que o Cristianismo não é um tecido de narrativas miraculosas, mas uma apresentação rigorosa do princípio da vida humana que não conduz nem ao desespero nem à indiferença, mas a uma acção moral mais bem definida», nomeadamente a da prática do Amor e a resistência não-violenta à iniquidade ou mal do sistema político, económico e religioso.
Anote-se que estes princípios não serão considerados válidos por Lenine, seu admirador literário, nem aplicados na revolução russa mas já serão posteriormente adoptados pelo Mahatma Gandhi e co-relacionados com os três pilares do seu movimento: satyagraha, força ou firmeza da verdade, e ahimsa, não-violência e swaraj, auto-governação, e impulsionarão a libertação da Índia da opressão colonial inglesa.
Uns meses depois enviará mesmo um exemplar da sua selecção criteriosa dos Quatro Evangelhos, com indicações das partes mais importantes a ler e a eventualmente traduzir e divulgar.
O efeito anímico tolstoiano fora forte em Konishi, como este lhe confessará em carta de 1896: «Para ser franco, o nosso reencontro e o que me ensinou, transformaram completamente o meu entendimento do cristianismo. Todos os dias, pensando em vós, experimento uma alegria espontânea grande (...)».
Sabemos que Tolstoi deve ter partilhado com Konishi as sua principais críticas aos ensinamentos da Igreja, tais como a que a Bíblia e o Genesis confundem Deus, ou mesmo o Deus Pai, com um deus invejoso e maldoso; que não houvera redenção da humanidade com a morte dita expiatória de Jesus, pois tudo continuava na mesma, para além de que tal crença tornava menos activas no bem as pessoas. Não acreditava na Trindade ou mesmo na Divindade de Jesus, na sua ressurreição, ou na ridícula ressurreição dos mortos. Nem nos milagres, nem na Eucaristia, nem nos sacramentos, criados para manter o domínio sobre os crentes e explorá-los. Isto tudo abalara certamente a fé de Konishi e algo aos poucos foi fermentando dentro dele, como ele próprio o confessa.
E continuava na sua carta a Tolstoi: «Por aqui, vou escrevendo sobre si e sobre o modo como considera o Cristianismo e a Vida e traduzindo as suas obras. Já traduzi: Os dois velhos, Onde está o amor, aí está Deus, a Sonata a Kreutzer. Actualmente traduzo a Morte de Ivan Illich, e a Religião e Moral, e chamam-me tolstoiano. Posso declarar-lhe que tem por cá muitos admiradores.»
A resposta uns meses depois de Tolstoi é muito elucidativa da sua visão moral e espiritual do Cristianismo, para ele basicamente a religião melhor afirmativa do Amor, embora iludindo-se sobre o seu futuro no Oriente: «Alegro-me que as suas opiniões sobre o Cristianismo Ortodoxo modificaram-se. Estranhei sempre e não queria crer que um povo tão inteligente e pouco supersticioso como o japonês, pudesse aceitar e acreditar nesses dogmas absurdos que constituem a essência do cristianismo, tanto católico como ortodoxo e luterano ou evangélico. Pelo contrário, sempre pensei que os povos japoneses e chineses não poderiam deixar de aceitar o verdadeiro cristianismo, pois só ele dá a resposta às grandes questões da vida que confrontam todos os seres e apela a uma solução que nem o Budismo nem o Confucionismo podem oferecer.
Os mestres da Humanidade, em todas as épocas, pregaram a fraternidade humana, mas só o cristianismo mostra a via pela qual é possível chegar até isso. Traduziu algumas obras minhas como a Sonata a Kreutzer e outras, mas gostaria bem mais que o público japonês se familiarizasse com o verdadeiro cristianismo, tal como eu penso que o seu fundador o concebeu. Expus tal, o mais claramente que me foi possível, no meu livro o Reino de Deus está dentro de vós [reproduzido em baix0 o frontispício da 1ª edição, 1893.]. Penso que este livro, ou um resumo dele, interessaria aos japoneses e mostrar-lhes-ia que o Cristianismo não é um tecido de narrativas miraculosas, mas uma apresentação rigorosa do princípio da vida humana que não conduz nem ao desespero nem à indiferença, mas a uma acção moral mais bem definida», nomeadamente a da prática do Amor e a resistência não-violenta à iniquidade ou mal do sistema político, económico e religioso.
Anote-se que estes princípios não serão considerados válidos por Lenine, seu admirador literário, nem aplicados na revolução russa mas já serão posteriormente adoptados pelo Mahatma Gandhi e co-relacionados com os três pilares do seu movimento: satyagraha, força ou firmeza da verdade, e ahimsa, não-violência e swaraj, auto-governação, e impulsionarão a libertação da Índia da opressão colonial inglesa.
Uns meses depois enviará mesmo um exemplar da sua selecção criteriosa dos Quatro Evangelhos, com indicações das partes mais importantes a ler e a eventualmente traduzir e divulgar.
Era uma revolução no Cristianismo católico e ortodoxo que Tolstoi realizava com o seu Cristianismo verdadeiro, e com essa sua versão do Novo Testamento, e por isso não admira que o Sínodo ortodoxo de 1901 o excomungasse, obrigando-o a uma fulminante resposta.
Será em Setembro de 1909 que Konishi regressa à Rússia e a Tolstoi, encontrando-o em Moscovo bastante envelhecido e bastante renitente em aceitar seja as investigações psicológicas ou psíquicas que ele fazia, seja o valor das traduções da Sonata a Kreuzer e outros contos, dizendo-lhe mesmo: «É uma pena traduzir tais textos escritos para camponeses e do que não se pode esperar grande proveito. Se quereis verdadeiramente traduzir algo de valor, gostaria que traduzísseis o Círculo de Leitura, e o Caminho de Vida, que se dirigem a um público bem mais alargado.»
Em Julho de 1910 Konishi ainda estará com Tolstoi já adoentado na mítica quinta, a Iasnaia Poliana, aonde anos antes outro ilustre espiritual português peregrinara, Jaime de Magalhães Lima (descrevendo tal viagem e encontro na Cidades e Paisagens, Porto, 1889, mas ainda escrevendo As Doutrinas morais do Conde Leão, Porto, 1892, dedicado À memória do meu querido mestre Antero de Quental, e traduzindo depois algumas obras dele.
Três meses depois era informado que Tolstoi deixava a Terra. E após peripécias bem difíceis, já que houve certa repressão oficial e sobretudo religiosa (pois Tolstoi fora excomungado em 1901) à ida de pessoas de comboio, conseguiu chegar a Isnaia Poliana, deixando-nos uma descrição impressionante da devoção que o povo russo e em particular os que o conheciam nutriam para com ele, tão diligente nas suas acções de amor ao próximo, nomeadamente com os seus abecedários, livros de leitura e de contos populares, escolas e bibliotecas, estas como vemos na imagem de 1910.
Tal transbordou na presença e participação nos passos e cerimónias, cantos e deposição do seu corpo entre as árvores predestinadas do bosque junto a sua casa, as bétulas.
Em Julho de 1910 Konishi ainda estará com Tolstoi já adoentado na mítica quinta, a Iasnaia Poliana, aonde anos antes outro ilustre espiritual português peregrinara, Jaime de Magalhães Lima (descrevendo tal viagem e encontro na Cidades e Paisagens, Porto, 1889, mas ainda escrevendo As Doutrinas morais do Conde Leão, Porto, 1892, dedicado À memória do meu querido mestre Antero de Quental, e traduzindo depois algumas obras dele.
Três meses depois era informado que Tolstoi deixava a Terra. E após peripécias bem difíceis, já que houve certa repressão oficial e sobretudo religiosa (pois Tolstoi fora excomungado em 1901) à ida de pessoas de comboio, conseguiu chegar a Isnaia Poliana, deixando-nos uma descrição impressionante da devoção que o povo russo e em particular os que o conheciam nutriam para com ele, tão diligente nas suas acções de amor ao próximo, nomeadamente com os seus abecedários, livros de leitura e de contos populares, escolas e bibliotecas, estas como vemos na imagem de 1910.
Tal transbordou na presença e participação nos passos e cerimónias, cantos e deposição do seu corpo entre as árvores predestinadas do bosque junto a sua casa, as bétulas.
Regressado ao Japão, Konishi Masutarô, publicou até 1913 três artigos sobre Tolstoi, e uma antologia do seu pensamento religioso, mas depois envolveu-se noutras actividades, encontrando-se até em missão oficial na Rússia com Estaline, e só por fim, antes de morrer, em 1936, escreveu Ba nen no Tolstoi to watashi, Tolstoi na sua velhice e eu, e Torusutoi o Kataru, Contar Tolstoi.
Nestes textos narra entre muitos outros aspectos, a valorização de Tolstoi da grande habilidade espiritual de Lau Tseu de transmitir o seu ensinamento ou filosofia com calma e profundidade, e a sua admiração e receio pelo abandono por parte do Japão da sua civilização milenária em prol da europeia e norte-americana, questionando quais os aspectos que ela deveria abandonar ou aceitar, erguendo-se mesmo em defesa da alimentação tradicional macrobiótica e quase vegetariana dos japoneses: «Entre as coisas da vida corrente, o Japão vai eliminar a alimentação próxima do vegetarianismo que utilizara até agora, mas porque será necessário construir matadouros e de comer carne de vaca ou de cavalo? Recentemente, entre os religiosos e intelectuais ocidentais, alguns pararam de comer carne e adoptaram o vegetarianismo. Não será isso um fenómeno que se amplificará? Gostaria que os intelectuais japoneses reflectissem nesta questão»...
Sairão à luz as suas duas últimas traduções, apenas em 1946, Ikiru Michi, O Caminho de Vida, e Kofuko e no michi, O Caminho da Felicidade, quando Konishi Masutaro se reencontrara já certamente com Tolstoi no mundo espiritual.
Sairão à luz as suas duas últimas traduções, apenas em 1946, Ikiru Michi, O Caminho de Vida, e Kofuko e no michi, O Caminho da Felicidade, quando Konishi Masutaro se reencontrara já certamente com Tolstoi no mundo espiritual.
Pintura de circulação no rio da vida, num tecto de um santuário de
Wakayama, obtida em 26-VI-2010.
|
Sem comentários:
Enviar um comentário