segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Bô Yin Râ: biografia, ensinamentos e homenagem no seu aniversário: 25 de Novembro de1876.

                           
Bô Yin Râ, aliás Joseph Anton Schneiderfranken, nasceu em Aschaffenburg, perto de Frankfurt am Main, em 25 de Novembro de 1876, às 2:00 da manhã, numa família de agricultores e artesões, o pai Joseph Schneiderfranken e a mãe Maria Anna Albert.  Aos treze anos, quando estudava na escola de Merian, em Frankfurt, foi obrigado, pelas dificuldades familiares, a abandonar os estudos secundários e a trabalhar como torneiro mecânico durante dois anos. 
Bô Yin Râ, jovem estudante de pintura.
Conseguiu porém inscrever-se e estudar três semestres, mas de 1892 a 1895, no Städelsche Art Institute, em Frankfurt, trabalhando em seguida de Outubro de 1896 a Abril de 1898 nos estúdios de Arte do Teatro  Municipal, de Frankfurt. Na época, através de um familiar, entrou em contacto com o notável pintor Hans Thoma (1839-1924), que, gostando tanto das suas paisagens e desenhos, o tomou por discípulo gratuitamente durante ano e meio, apoiando-o ainda depois.
Hans Thoma, auto-retrato.
Relacionou-se ainda com dois pintores importantes que o apreciaram e apoiaram:  Fritz Boehle (1873-1916) e Max Klinger (1857-1920), este elogiando muito a sua visão espiritual pictográfica e influenciando-o em certo tipo de desenhos e gravuras.
Formou-se finalmente no Städelsche Art Institute em 1899 e  estudou depois pintura em Viena de 1900 a 1901, com breve passagem por Munique, onde conviveu com o pintor Gino Parin (1876-1944). Estuda em Paris em 1902 na importante Académie Julian (fundada em 1867), onde tem como professores Tony Robert-Fleury (1837-1911), especialista em cenas históricas, e Jules Joseph Lefebvre (1836-1911), um simbolista, regressando a Viena no ano seguinte. 
Psyché ou, mais literalmente, Pandora, de Jules Lefebvre.
   Está em Berlim de 1904 a 1908, dando à luz
em 1906, em Leipzig, a sua 1ª exposição de gravuras e desenhos a lápis, tal a série Ornamentos, viajando em seguida até à Itália e à Suécia. De 1909 a 1912 vive e pinta em Munique.
Ornamento, por Bô Yin Râ.
                                                         
Em 1903 casara-se com Irma Schönfeld (nascida em 1876), de Viena, mas que, de saúde frágil e diabética, morrerá cedo, em 1915, e sem descendência.
O local da Academia Platónica, junto a Atenas.
Entre Setembro de 1912 e Agosto de 1913 está na Grécia, pintando  paisagens e monumentos,  sendo então contactado por um (ou mais) mestres orientais que o preparam e religam espiritualmente e lhe fazem relembrar ou  conciencializar-se do seu original nome de Bô Yin Râ, de acordo com as proporções e ressonâncias espirituais suas primordiais.
Envia para Leipzig o esboço do seu primeiro livro, intitulado Licht vom Himavat, Luz de Himavat, a que se seguirão mais três pequenos, no número de páginas, publicados entre 1914 e 1917 por Hugo Vollrath (1877-1943), um editor artista e ocultista, ostentando como autor apenas as iniciais BYR. Os quatro, com algumas modificações, serão integrados no Livro da Arte Real, para o qual tinham sido idealizados. É nestes anos que escreve alguns dos livros publicados posteriormente, tais como o Livro do Deus Vivo, O Livro do Homem, Mais Luz, Livro dos Diálogos.
O Partenon, visto por Bô Yin Rã durante a sua estadia na Grécia.
Regressa a Munique, onde vive até ao começo da 1ª grande Guerra, com uma ida pelo menos a Paris, tendo René Guénon sido informado por Hiran Sing, ou Swami Narad Mani (um indiano muito crítico da Sociedade Teosófica e de Helena Blavatsky), como sendo o único representante na Europa de uma importante fraternidade espiritual oriental.
Alistado para a 1ª grande Guerra em 1916, serve na Prússia e depois em 1917 já na Silésia, em Görlitz, como intérprete de prisioneiros gregos. Pinta e desenvolve actividade cultural nessa cidade onde vivera 
desde 1599 o místico Jacob Boehme (1575-1624). E casa-se em 1918 com Helene Hoffmann (1887-1978), de Görlitz, cujo marido perecera na guerra, e que tinha duas filhas, Ria (1909) e Ilse (1912), nascendo do casal, em 1919, Devadatti (que ainda visitei e conheci na casa de seu pai em Lugano, nos anos 90, conforme: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2021/12/visita-e-dialogo-com-filha-de-bo-yin-ra.html).
Helene Hoffmann e as suas duas filhas.
 Em 1919 publica através de Kurt Wolff, em Leipzig, na sua Verlag der Weissen Bücher, o seu primeiro grande livro, Das Buch vom Leben Gott, com prefácio de Gustave Meyrink (1868-1932), que escrevia também para a mesma editora. Posteriormente, por desacordo com Gustave Meyrink, o prefácio será retirado, embora Bô Yin Râ continuasse a elogiar a sua capacidade imaginativa e literária.
 Quando esteve de 1917 a 1923 em Görlitzexpôs uma série de paisagens naturais e arranjos florais em 1919, no museu Kaiser-Friedrich. Nessa época viviam e trabalhavam na cidade valiosos artistas expressionistas e com eles se deu, sobretudo com Fritz Neumann-Hegenberg (que chegou a escrever um livrinho Die deutschen Mantra des Bô Yin Râ), e ainda com Willy Schmidt, Johannes Wüsten, Dora Kolisch, Walter Deckwarth, Arno Henschel e Walter Rhaue. Em 1920 fundou  a Sociedade Jakob Böehme, considerando este escritor hermético e místico um dos verdadeiros mestres da humanidade. E em 1921 expõe na galeria  da Sociedade vinte  pinturas de vistas ou perspectivas dos mundos espirituais, a que chamou "quadros metafísicos", fundados nas suas vivências espirituais, e que virão a ser incluídos no livro tão importante quão belo Welten, Mundos
Durante os anos de 1920 a 1922 publica mais livros através Kurt Wolff. Em 1922 passa duas semanas na paradisíaca ilha de Capri onde escreverá o livro Geheimnis, as Conversas secretas. 
O lago de Lugano, visto da encosta da casa, e hoje fundação museu, de Bô Yin Râ.
Em 1923 retira-se de Görlitz para Horgen, junto ao lago de Zurique, com a família, e em 1925 muda-se definitivamente  para Massagno, perto do lago Lugano, na Suíça, onde reside numa bela casa, a vila Gladiola, rodeada de um simpático jardim, na encosta do belíssimo lago, com Helene e as três filhas, e vai escrevendo e publicando as suas obras com bastante sucesso, dada a aspiração geral a conhecimentos mais profundos e simultaneamente simples e directos sobre a vida e o caminho espiritual.
 A bela casa ajardinada onde viveu Bô Yin Râ junto a Lugano, hoje Museu.
Conhecera nesse ano de 1923  o Dr. Alfred Kober-Staehelin (1885-1963), editor de Basileia,  o qual começa em 1927 a publicar em exclusivo na sua editorial Köber Verlag as obras de Bô Yin Râ e acerca de quem deixará os seus testemunhos em Meine Stellung zu Bô Yin Râ, de 1930, e Weshalb Bô Yin Râ? de 1931.
Dr. Alfred Kober-Staehelin.
Dos seus amigos ou discípulos mais conhecidos destacaremos ainda o barão siciliano ou melhor napolitano Roberto Winspeare (1887-1954),  seu primeiro tradutor para a língua francesa e autor em 1932 de uma conferência em Paris acerca de Bô Yin Râ (resumo em: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2018/11/o-barao-robert-winspeare-apresenta-o.html:), Rudolf Schott, um seu biógrafo,  os músicos e compositores Eugen d’Albert (1864-1932), Egon Wellesz (1885-1974) e Felix Weingartner (1863-1942), este tendo  publicado uma boa introdução à sua obra em 1923 intitulada Bô Yin Râ. Já  em 1994, Otto G. Lienert publicará na Kober Verlag uma  biografia e resumo do ensinamento, Weltwanderung.
 Como o seu sucesso  levara algumas pessoas a deixarem as igrejas, atraídas pela sua espiritualidade de realização interior fortificante e libertadora,  a Igreja Evangélica Protestante sentiu-se incomodada e há documentos internos da sua Apologetishe Centrale com referências aos aspectos do ensinamento de Bô Yin Râ que os desgostavam, já que  proviriam  de um falso guru ou profeta, o qual, ao igualar Jesus a um mestre, e ao considerar-se um seu mensageiro, negando a visão tradicional do  pecado original e da sua redenção por Jesus Cristo, estaria a perverter o Cristianismo. Encontram-se todavia arquivadas também cartas de crentes e fiéis protestantes comunicando a experiência viva de Deus graças ao ensinamento de Bô Yin Râ.
A estrela do Espírito. Ornamento, por Bô Yin Râ.
Era uma época complexa para os cultores do ocultismo e da espiritualidade, bem retratada numa obra recente de Corinna Treitel, A Science for the Soul: Occultism and the Genesis of the German Modern, devida à desconfiança e repressão pelo Estado alemão, a qual se acentuara com o erguer mais forte do Nacional-Socialismo, originando a perseguição a grupos ou pessoas, entre os quais os ligados a Bô Yin Râ, que contudo permanecerá a salvo na Suíça (algo vigiado)  até abandonar a cena terrestre em 14 de Fevereiro de 1943, deixando no seu legado perene gravuras, desenhos, as cerca de duzentas pinturas, os quarenta e três livros e algumas cartas.
Bô Yin Râ, com a Mulher, à porta da sua casa, nos últimos anos de vida.
Foi na Grécia que se encontrou com o mestre oriental que o iniciou espiritualmente (que aliás já lhe aparecera em criança) e é, de certo modo, após tal acontecimento e vivência que as suas pinturas passam talvez a revelar mais profundidade de visão e a sua experiência espiritual começa a ser transmitida em livros, surgindo o primeiro, o já mencionado Luz de Himavat, em 1919 e o trigésimo segundo,  fechando o seu ensinamento, o Hortus Conclusus, Jardim Fechado, em 1936, havendo ainda onze livros sobre arte, cultura, esoterismo e a sua missão publicados até 1939, perfazendo os quarenta e três publicados.
Num dos últimos livros que publicou, Briefen an Einen und viele, Cartas a Um e a Muitos, explica como a correspondência  mantida com os seus leitores o absorvia muito e como o trabalho de escrever  e  de pintar o foi desgastando, nomeadamente na mão, vendo-se forçado a renunciar à correspondência manual, passando a ditá-la e decidindo assim  transcrever
nesse livro algumas cartas-tipo e seus ensinamentos.
                                      
O ensinamento de Bô Yin Râ é inegavelmente de primeira qualidade, a mesma que sentimos nos grandes Mestres da Humanidade, que ele afirma serem seus irmãos na fraternidade dos Irradiantes da Luz Primordial, considerando-os necessários ou essenciais no caminho espiritual de todos os seres humanos, contra o parecer de muitos que os dispensam, pois eles são as pontes ou pontífices, ajudantes ou guias para o mundo espiritual e divino.
                                        
A certeza que as obras e pinturas transmitem, a claridade que trazem, a harmonia poética e mágica com que as suas palavras vibram e ressoam, as impulsões que lançam, tudo contribui para considerarmos a sua obra como das mais valiosas sobre os mistérios da vida, pois encontramos nela valiosas aproximações à descrição do caminho espiritual e da ligação à Divindade, certamente difícil de ser realizada, mas muito verdadeira e praticável...
                                        
A sua extensa obra de trinta e dois livros, o Hortus ConclususHorto fechado, de profundos mas simples e claros ensinamentos sobre a Realidade Última e Primordial e os caminhos para lá se chegar e estar, assenta no que ele nos diz brevemente no seu folheto Sobre os meus Escritos: «Eu comunico o meu conhecimento experimental das raízes do homem terrestre numa esfera de forças “espirituais” substanciais, inacessível aos sentidos físicos mas alcançável duma maneira “sensível”, esfera na qual a consciência individual do ser humano pode despertar
nesta vida corporal terrestre, mas na qual despertará inevitavelmente assim que a sua existência terrena terminar.
Comunico o meu conhecimento experimental da Hierarquia de ajudas espirituais individuais, que parte do próprio centro Primordial da esfera das forças espirituais, que desce até à Humanidade deste planeta e que se manifesta por certos homens preparados para esta missão já antes do seu nascimento terrestre.
Comunico o meu conhecimento experimental relativo à possibilidade de entrar em ligação espiritual com esta hierarquia, e mostro o caminho a seguir para se chegar a tal.
Comunico finalmente de que maneira adquiri a experiência que me era acessível e porque é que eu devia chegar a ela»....
Ora numa época em que são tantos os semi-cegos guias de cegos, ou os fiéis estagnados no que não é essencial nas suas religiões, ou que é tão grande o carnaval ocultista, a manipulação das seitas, a imaginação das canalizações, as superficialidades e embustes nas auto-ajudas e nova Era, regressões e cabalices, este ensinamento certamente será muito útil, ajudando as pessoas tanto a aprofundar as suas religiões como a discernir melhor, entre tanto falso instrutor e doutrina, o caminho real que conduz à realização própria e á religação espiritual e divina.
Se houve muita gente valiosa a crer em Bô Yin Râ, como alguns dos seus ensinamentos eram difíceis e simultaneamente teceu críticas à teosofia da Sociedade Teosófica e às descrições mirabolantes de vidas passadas de alguns dos seus corifeus (tais Charles Leadbeater e Annie Besant), e à  fundadora Helena Petrovna Blavastky, esta considerando-a mais uma médium de que em contacto verdadeiro com os mestres, surgiram oposições. Também a sua afirmação de que a mulher em si não estava capacitada intrinsecamente para atingir a mais alta realização espiritual enquanto na Terra, suscitou reacções adversas, embora ele diga que o mesmo se passa para a imensa maioria dos homens.
Dos esoteristas devemos destacar os reparos de René Guénon que considerava o seu ensinamento fraco e que não levaria a um nível muito elevado, algo que Julio Evola, próximo de Guénon, também afirmaria. Contudo, os três estavam de acordo nas críticas à Teosofia e aos dirigentes da Sociedade Teosófica, algo que Gustave Meyrink também subscrevia. Mais recentemente, o erudito Antoine Faivre no seu Dictionary of Gnosticism and Esotericism, 2006 tende a menosprezar as capacidade e obras "prolíficas" de Bô Yin Râ, considerando-as baseadas na sua "crença" em intrincadas relações entre a substância omnipresente espiritual e as formas de vida no mundo material, numa crítica nada fundada e clara, já que desprovido de visão espiritual apenas deduz do que lê e pensa e, provavelmente, sente, estando ainda influenciado por algumas linhas ocultistas maçónicas, a do Rito Escocês Rectificado a que pertencia, [pois recentemente, em 2021, desincarnou. Dialoguei com ele duas vezes, cordialmente. Lux!]
                                         
Seguem-se alguns ensinamentos, segundo o que Bô Yin Râ transmitiu e eu compreendi ou assimilei:
- O caminho espiritual é basicamente o do auto-conhecimento, o do controle e unificação dos átomos e forças anímicas sob a vontade única de nós mesmos, pela qual a pessoa começa a controlar o seu pensamento dispersivo e a conseguir interiorizar-se até começar a sentir e realizar o seu corpo espiritual, a Luz divina, o Espírito.
Para esta unificação e discernimento requer-se longa e perseverante escuta de nós próprios até as flores de lótus da nossa alma se abrirem à luz do alto ou do espírito, particularmente  com a ajuda do nosso Anjo da Guarda ou Mestre.
Uma vida justa, de trabalho consciente, de afectividade e humanidade, deve ser acompanhada de uma prática diária de meditação, de escuta interior, de aspiração à Divindade, para que possamos ir avançando na ligação e união, primeiro ao espírito e depois a Ela, e assim reforçarmos a nossa sintonização com a realidade espiritual em nós e no Universo.
Não é pela alimentação, a respiração, a sexualidade, as drogas, os mantras, a especulação filosófica, a carga erudita cerebral, o fanatismo, a auto-sugestão, as cabalices e esoterices, que tal se consegue mas sim por uma vida dinâmica e desprendida, uma unificação anímica que nos proporcione o domínio harmonioso dos desejos e pensamentos, uma vida sob a orientação ou aspiração da ligação a Deus e de estarmos alinhados com a Sua vontade, e com a  auto-consciência silenciosa e atenta ao sentir interior da presença subtil do espírito em nós. Ou seja, vivendo numa perseverante auto-consciencialização e revelação espiritual, e numa vida criativa, justa e abnegada.
O caminho espiritual é  uma vida harmoniosa realizada com mais consciência do ser espiritual em nós, um alargamento da dimensão dos nossos sentidos psico-espirituais - que se podem abrir então para os mundos espirituais - e uma inserção criativa na fraternidade da Humanidade e dos Mestres, numa vivência do Espírito Eterno na nossa interioridade e coração e na inter-acção não egoísta e solidária com os outros.
Templo Espiritual
Não é pela abertura a espíritos desencarnados, tão vulgar no espiritismo (pois frequentemente são entidades brincalhonas ou obsessivas) ou a extraterrestres (canalizados quase sempre imaginativamente) mas pelo silêncio e a escuta interior que a presença espiritual é sentida e que eventualmente imagens, pensamentos e sentimentos subtis em ligação aos mundos espirituais podem brotar em nós e inspirar-nos, embora o mais importante seja a unificação interna e a aproximação silenciosa ao espírito divino íntimo.
É o culto da voz da consciência, do Génio ou Daimon de Sócrates e que entre nós Antero de Quental recomendou muito, por exemplo, nas suas belas cartas escritas ao poeta, oficial e viajante luso-indiano Fernando Leal,  e que é no fundo a sintonização e audição da Palavra, do Verbo que se pronuncia em nós intimamente: "Lá no fundo do seu coração há uma voz humilde, mas que nada faz calar, a protestar, a dizer-lhe que há alguma coisa porque se existe e porque vale a pena existir. Escute essa voz: provoque-a, familiarize-se com ela, e verá como cada vez mais se lhe torna perceptível, cada vez fala mais alto, ao ponto de não a ouvir senão a ela e de o rumor do mundo, por ela abafado, não lhe chegar já senão como um zumbido, um murmúrio, de que até se duvida se terá verdadeira realidade. Essa, meu amigo, é a verdadeira revelação, é o Evangelho eterno, porque é a expressão da essência pura e última do homem, e até de todas as coisas mas só no homem tornado consciente e dotada de voz. Ouça essa voz e não se entristeça.» Carta de  Antero de Quental.
Todavia, certamente, certas frases ou sons, os mantras, alguns consagrados milenariamente em tradições espirituais, pela disposição e vibração sobretudo das vogais, sejam eficazes auxiliares na modelação harmonizadora das nossas forças anímicas, a fim de conseguirmos interiorizar-nos e silenciar-nos, ou fortificar-nos, para que o Espírito divino possa ser sentido, visto ou acolhido, e por isso Bô Yin Râ partilhou os "seus" mantras, apresentados em Funken, Centelhas.
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Valorizou alguns dos mantras indianos mais sagrados, tais como o Tat Twam Asi, Tu és esse Espírito, que nas Upanishads o mestre indiano transmite ao discípulo, ou o Om Mani Padme Hum, a joia da consciência espiritual está na flor de lótus em ti, que muitos budistas entoam. Bô Yin Râ complementa-os com alguns mantras escritos por ele em alemão, embora diga que se encontram em todas as tradições espirituais tais frases operativas, e que as línguas antigas, tal o Latim para o Ocidente, tem nelas muito da sua força espiritual, considerando assim  a tradução do latim na liturgia para a língua nacional como uma diminuição na sua eficácia espiritual.
As suas imagens, palavras e ensinamentos apelam a libertar-nos de intelectualismos, de curiosidades e saberes livrescos e sectários,  de esoterices complicadas e imaginadas, e despertarmos para o auto-conhecimento directo e libertador... 
Para Bô Yin Râ, em contraste com a maior parte dos que imaginam ou realizam  muitos ditos budistas ou cultores do vazio, não há um mundo sem forma nem símbolos, pois pelo contrário mesmo os mundos espirituais mais elevados contêm formas; e também não há que extinguir-se o eu, pois os espíritos individuais estão destinados a evoluir e a irradiar eternamente, aperfeiçoando a sua vontade e criatividade singular harmoniosamente (sem se deixar limitar pela personalidade antes brilhando através dela, diremos) no seio do Todo e maximamente em união com Deus... 
Considera também Bô Yin Râ que muitas das visões de videntes e pseudo-mestres não passam de aberturas reduzidas das janelas sobre mundos relativamente inferiores (e há-os verdadeiramente negativos) e em muitos casos modeladas pelos próprios observadores e as suas idiossincrasias, expectativas e preconceitos. 
A interacção entre estes mundos subtis e o humano físico é grande, daí muitas das lutas e fanatismos que tanto criam consequências no além, como são alimentadas na Terra por esse além, devido às suas egrégoras ou entidades grupais, e a seres, em geral não humanos, negativos que influenciam ou tomam conta dos humanos mais fanáticos e ambiciosos...
Bô Yin Râ, tal como outros mestres, defende que o ser humano é uma centelha espiritual emanada do Sol Divino primordial e  eterno e não um deus ou Deus. E que pela queda ou união ao corpo físico animal terrestre perdeu a consciência do mundo de onde vem e da sua identidade. 
Mais polémica será para alguns a afirmação de Bô Yin Râ de que só em casos excepcionais é que as almas, por falhanços, mortes prematuras e suicídios, são obrigadas a viver duas vezes na Terra. Ou ainda, a de que as lembranças regressivas, hipnóticas ou de dejá vu, correspondem em geral apenas a algumas das milhares de forças anímicas que nos constituem e que já passaram por outros seres, locais e tempos... 
Disto resulta a recomendação de não desejarmos mais do que podemos realizar nesta vida, pois senão ficamos algo encadeados a essas energias e desejos que não cumprimos, e que terão que aguardar que haja outros seres que as cumpram, satisfaçam ou completem, algo que contudo a sua filha Datti me confessou em diálogo na bela villa Gladiola, em Massagno, não ser motivo para a apreensões já que naturalmente tais forças e aspirações encontrarão quem as exerça ou satisfaça...
                Alguns pensamentos finais importantes de Bô Yin Râ: 
“Deves desenvolver uma certa prática ou treino de concentração para  não te dispersares numa frustrada busca de constantes excitações e distracções e deixares atrofiar a faculdade de fazer experiências interiores nas quais tomes consciência de ti próprio, e que te revelem o mundo do espírito substancial. 
A experiência interior não tem qualquer relação com o pensamento,  pois o mundo do espírito real e autêntico situa-se infinitamente para além dos meandros ou prodígios do mundo cerebral..."
                                      
                           Sobre a Arte de Ler, dirá com sábio realismo: 
“Entramos em comunhão com a alma do escritor e só devemos ler se temos a certeza que as ideias engendradas pela leitura favorecerão o desenvolvimento supremo da nossa alma. 
Também o cómico e o satírico despertarão em ti as forças divinas necessárias, ou mesmo livros cujo poder cativante reside na tensão que criam em nós.” 
                            Sobre os objectivos da vida: 
“ O teu objectivo supremo é a realização de ti mesmo na tua forma de manifestação engendrada pelo Espírito, na tua forma espiritual. 
Tu mesmo, unido a Deus. 
De toda a eternidade levas em ti  a forma engendrada uma só vez pelo Espírito, forma que é tua e que só tu, por toda a eternidade, tens a possibilidade de atingir, mesmo que tal tenha que tornar-se-te acessível somente após uma infinidade de séculos....” 
                                     
 E fica por aqui a nossa homenagem, neste dia de 25 de Novembro do ano da graça de 2014, e que foi ampliada algumas vezes de 2018 a 2025,  a um dos valiosos mestres e pintores espirituais da Humanidade, pouco conhecido entre os portugueses, embora  eu tenha traduzido colectivamente e publicado o Livro do Deus Vivo (e tenha preparado uma 2ª edição melhorada), e haja, além dos originais em alemão e que estão on-line, vário traduzidos noutras línguas. E se houver almas luminosas que saibam  alemão e que queiram ajudar na tradução de obras de Bô Yin Râ para português, óptimo.
Anote-se que finalmente em 18 de Maio de 2019 será (e foi, estando eu presente...) inaugurada a fundação e museu de Bô Yin Râ, no belíssimo local em que residia, a villa Gladiola, em Massagno, Suíça, conforme as duas fotografias reproduzidas.
E que em Setembro de 2022 acabei a laboriosa tradução e publicação de Das Gebet, A Oração, havendo  ainda exemplares, disponíveis a um módico preço, dos trezentos que dei à luz....
Saibamos aprofundar o ensinamento luminoso e imortalizante de Bô Yin Râ. Que ele nos inspire! Que os raios e iluminações do Espírito Divino se façam sentir em nós e em especial em tantos perdidos ou avençados ao infrahumanismo oligárquico que tanto mal está a causar na Europa. Pax,Lux,Amor....

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Pico della Mirandola. Biografia comemorativa da sua libertação da Terra, em 17-XI-1499.

É em Novembro, 17, que se comemora merecidamente o fim da meteórica passagem terrena de Giovanni Pico della Mirandola (ou João Pico de Mirandula) pois, tendo nascido numa manhã de Fevereiro de 1463, no condado de Concórdia, entre Ferrara e Mântua, e morrido uns escassos 31 anos depois, em 1494, em Florença, deixou contudo um tal rasto luminoso que ainda hoje quem entra em contacto com a sua obra,  vida e espírito não pode deixar de entusiasmar-se com o seu ardor e sabedoria, bem como amá-lo ou pelo menos admirá-lo pelo Amor em que se consumiu...
Nomeado protonotário apostólico aos 10 anos, a pedido de sua mãe aprendeu Direito Canónico desde os 14 anos na Universidade de Bolonha mas, com a morte dela em 1478, resolveu estudar em Ferrara pois o que gostava mais era de Retórica e Poesia. Em 1480 está em Pádua não só recebendo o magistério aristotélico e averroísta do sábio Ermolau Barbaro, como o hebraico de Elia del Medigo, para os seus estudos do Antigo Testamento, em especial o Genesis, acerca do qual editará mais tarde um profundo e imaginativo comentário, o Heptapulo, ou Discurso sobre os sete dias da criação
Em 1484, a convite do médico e filósofo Marsilio Ficino e de Lorenzo de Medici, o governante de Florença, Pico chega a esta urbe, então um centro de grande vitalidade artística e com desígnios de renovadora universal, na base duma simbiose entre a investigação (arqueológica, científica), a filosofia (sobretudo a neo-platónica) e a arte, onde se destacam o Studio, onde Policiano brilhava com a sua sensibilidade e alegria, e a Academia Platónica, da vila de Careggi, idealizada pelos Medici e por Marsilio Ficino, e onde dialogaram artistas como Botticeli, Verrochio, Ghirlandaio, Leonardo da Vinci, Lippi, Fancelli, Fillipino e Alberti.
Fresco pintado em 1488, com Pico ainda vivo, no meio de Ficino e Poliziano, por Cosimo Roselli e ainda hoje contemplável na igreja de Sant'Ambrogio, Florença...
Escreve então duas cartas que o tornam famoso, uma comentando a poesia de Lourenço, o Magnífico, outra a Ermolau Bárbaro, acerca do equilíbrio entre a essência e a forma, entre as Belas Letras e a Filosofia, manifestando com clareza a importância do equilíbrio dos extremos mas valorizando ainda assim a substância acima da forma. Erasmo, anos mais tarde e na sua linha de Humanismo equilibrado, ironizará os Ciceronianos (nomeadamente o francês Longueil), os que levavam um mês, na sua ânsia extremista de perfeccionismo formal, para escrever umas linhas, sendo forte e baixamente atacado ou caluniado por tal crítica, por um deles Julius Caesar Scaliger
Sempre na busca do conhecimento mais elevado, em 1485 Pico parte para a Sorbonne, a Universidade de Paris, onde assiste ao fervilhar de ideias e discussões que caracterizavam o funcionamento daquele grande centro cultural europeu. Em 1486 regressa a Itália e tem a sua aventura amorosa com uma bela dama casada, Margarida, que lhe pediu para a raptar. “Volúpia breve e exígua”, pois é alcançado no mesmo dia e, depois duma renhida batalha contra um número superior nas hostes adversárias, tem de a entregar.
Recolhe-se então em Perugia, aprofunda os estudos filosóficos, teológicos e até esotéricos  e inicia-se no Caldaico, com Mítriades, fazendo rápidos progressos devido à sua excepcional inteligência e capacidade de memorização. Com a sua exuberância juvenil, aliada à sua sede inexaurível de sabedoria, desembocava nas nascentes fabulosas da sageza antiga e o desejo de não só aprofundar e esclarecer essa Filosofia Perene, como o de estabelecer a concórdia entre todos os diferentes filões da mesma Tradição, emerge poderoso na sua alma.
Nasce então, da sua alta visão interior e concepção do ser humano, e do seu ardor optimista de elevação à Verdade e à Divindade, uma das mais belas obras do Renascimento,  A Oração da Dignidade do Homem, uma apologia breve, escrita em 1486 mas só publicada em 1496, e que serviria de introdução ao seu projecto de discussão universal de 900 conclusões ou teses, na qual a posição ímpar do ser humano no Universo, capaz de união com o Pai ou de degradar-se ao nível animal, é transmitida com bastante intensidade e mística, apoiada nas diversas tradições e metodologias espirituais e certamente nas suas intuições. Começa assim:
«Li, Padres muito veneráveis, nos textos Árabes, que interrogado o sarraceno Abdallah [pensa-se que fosse um tradutor árabe de obras persas] sobre o que lhe parecia de admirar mais neste quase palco do mundo, respondeu que nada lhe parecia mais admirável do que o homem, sentença esta de acordo com o que exclamou Mercúrio: Magno, ó Asclépio, milagre é o ser humano.»
Comenta ainda na mesma época, com grande entusiasmo e profundo conhecimento, uma Canção de Amor que o seu amigo Girolamo Benivieni compusera, resumindo a filosofia de amor de Platão e de Ficino, diferenciando-se em certos aspectos das posições do seu grande amigo e inspirador da famosa Academia Platónica florentina, Marsilio Ficino.
A obra de Girolamo Benivieni comentada por Pico...
 Acerca do Amor celeste e Divino diz-nos, numa linha ascensional que liga o ser humano ao ser angélico, sobretudo pela sua capacidade de contemplação:
“A beleza corporal exterior encoraja sobretudo a contemplar-se a da alma, donde nasce e provém a do corpo. Ora a beleza da alma é uma participação na beleza angélica que se eleva cada vez mais à medida que se atinge um grau mais sublime de contemplação, de tal modo que se chega à fonte primeira de toda a beleza, a Divindade...”
Escreverá ainda nesse seu magistral trabalho: “já explicamos que o Amor Celeste é um apetite intelectual e como em toda a alma bem constituída, todos os os outros apetites devem ser governados por esse; ora este governo, como se se diz no Fedro [e na canção de Benivieni “Amor que nas suas mãos/segura alto o freio do meu coracão"], é representado pelo freio. Diz então que o seu coração é refreado ou jungido pelo Amor; noutras palavras, cada um dos seus desejos depende do Amor; onde ele diz “coração” entenda-se, conforme está nos Livros Sagrados, que se atribui as operações das potências cognitivas da alma à cabeça e as apetitivas ao coração.”

Na valiosa aproximação de Pico della Mirandola à harmonia das capacidades e níveis do ser humano, e ao desabrochar do Amor Celestial, realçemos o valor dado à invocação do Amor. ou chama amorosa inspiradora do poeta e de quem aspira ao Bem, a Deus ou à Verdade e que, quando o Amor se acende mais em nós, ou desce sobre nós, ao nosso ser, peito e coração espiritual, é para nos envolver, fazer arder e elevar-nos à Unidade e à Divindade.
Mas onde trabalha mais nesses anos de 1486 e 1487 é no conjunto de 900 conclusões ou teses, resumindo as principais doutrinas de todos os tempos, dos egípcios e gregos aos persas, hebreus, latinos e árabes, provando o seu valor intrínseco, concordância e catolicidade (ou universalidade).
Uma edição quinhentista das 900 Conclusões ou Teses
Traduzamos as seis primeiras das "dez conclusões segundo a prisca (ou vetusta) doutrina do egípcio Hermes Trismegisto":

1- Onde haja vida, aí está alma; onde haja a alma, aí está a mente.
2- Tudo o que é movido é corporal, tudo o que move é incorporal.
3- A alma no corpo, a mente na alma, o verbo na mente e o pai destes, Deus.
4- Deus está cerca de tudo e por entre tudo; a mente cerca da alma, a alma cerca (ou à volta, em latim circa) do ar, o ar cerca da material.
5- Nada há no mundo sem vida.
6- Nada no universo é passível de morte ou de corrupção.  - Corolário: ubíqua é a vida, ubíqua é a providência, ubíqua a imortalidade.
7- De seis modos Deus denuncia ao homem o futuro: por sonhos, portentos, aves [voo], as estranhas [examinadas], espírito e a Sibila.»
 
[Veja ainda outras teses em https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2023/08/pico-della-mirandolaas-teses-de-egidio.html]

Viajar ou comunicar sob as bênçãos ou inspirações de Pico...
Tencionava convidar (com as despesas pagas de viagem... ) quem quisesse discutir as 900 Conclusões ou Teses, a Roma. A Cúria romana assustou-se e o papa Inocêncio VIII, depois de consultar uma comissão que considerou treze das teses heréticas, e insuficientes ou mesmo semi-heréticas as explicações que Pico ofereceu numa Apologia, proibiu-a por bula em 4 Agosto de 1487 devendo-se queimar as cópias manuscritas já impressas, e excomunga Pico della Mirandola. A desilusão deste foi grande e teve de abandonar Roma a toda a pressa. Acabou por ser detido por ordem do Núncio apostólico, já depois de ter estado nos Países Baixos, por Filipe de Sabóia, em França e  ficou preso no castelo de Vincennes. Acabará por ser libertado graças à acção de Lourenço de Médici e de Clara Gonzaga e à adesão do rei de França Carlos VIII.

Refugiado no ambiente liberal da Florença de Lorenzo de Médici, o Magnífico, seu admirador e protector, Pico della Mirandola continua os seus estudos espirituais explicando simbolicamente os sete dias da Criação do Génesis, no Heptaplus, uma obra à partida dificílima tais as limitações do Génesis ser uma manta de retalhos de tradições, imaginações e simbolismos, e sobretudo quando se tenta interpretar cabalísticamente, em que qualquer coisa pode significar tudo. (Mesmo assim há explicações valiosas, das quais dei eco em https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2017/08/ensinamentos-de-pico-della-mirandola.html)  Numa carta da época descreve, possivelmente já a trabalhar na sua próxima obra, o seu dia a dia: «de manhã aplico-me assiduamente na concordância de Platão e Aristóteles, as horas da tarde são para os amigos, e a recreação do espírito através da leitura de obras literárias, e as horas da noite reparto-as entre o estudo dos textos sagrados e um breve sono».
Em 1491, depois de vender grande parte dos seus bens ao sobrinho João Francisco Pico (que escreverá uma piedosa biografia do tio, traduzida para inglês por Thomas More), viaja com Policiano e Critino visitando várias bibliotecas, então verdadeiros e plenos templos da Sabedoria e da Divindade. Em 1492 publica o De Ente et de Uno, no qual desenvolve a identidade entre o Ser e o Uno e como ambos estão e são na Divindade, dedicado ao seu grande amigo, o retórico e poeta, Angelo Policiano (que teve alguns alunos portugueses e autor de uma longa e entusiástica carta ao D. João II), que lhe responderá assim: «A posterioridade narrará um dia que houve um certo Policiano, o qual foi tão estimado que mereceu que o Pico, luz de todo o saber, falasse dele num belíssimo livro, que trata das coisas sublimes. Rendo-te pois, pela imortalidade, graças imortais».

Ficino, Pico e Poliziano
Entretanto em 1493 morre prematuramente Lorenzo, o Magnífico, e em Ferrara recebe a notícia da eleição do novo papa, Rodrigo Bórgia, um humanista e esteta, o que pressagia a sua absolvição e a realizar-se de facto, liberta-lo-a de um certo pesadelo realmente singular: um excomungado andar vivo e livre tanto anos. Entretanto Ermolau Bárbaro, grande retórico e sábio, morre também e Pico sente-se mais isolado, aumentando a sua convivência com o austero reformador Savonarola, o qual se torna quase o mentor e líder de Florença, impulsionando Pico no ascetismo e pietismo cristão... 
É só em Agosto de 1493 que sai o breve de Alexandre VII absolvendo Pico della Mirandola,o qual, feliz, e pouco se sabe do desgaste que a excomunhão lhe provocara, passa logo a escrito as suas últimas vontades, nomeando testamenteiros Policiano e Savonarola, e entrega-se a uma vida cada vez mais retirada do mundo. 
Resolve então, sob a inspiração ou impulsão de Savonarola, que censurava e atacava fortemente tudo o que lhe parecesse paganismo, escrever um tratado contra a vaidade e a superstição dos astrólogos, as Disputationes adversus astrologiam divinatricem, os quais se gabavam de poder conhecer os destinos do ser humano, e põe  em causa na obra não as influências dos Astros mas a capacidade de através do conhecimento delas se poder determinar o curso dos acontecimentos das vidas humanas. Esta polémica chegará até Portugal e à corte da rainha D. Leonor, com a obra de Frei António Beja,  Contra os Juizos dos Astrologos, impressa por Germão Galhardo em 1525, em Lisboa, e foi nos nossos dias por José Vitorino de Pina Martins bem estudada e divulgada.
Uns meses depois, em 1494, uma febre prostrava Pico della Mirandola no leito da morte, e será certamente numa ardência amorosa de aspiração à Divindade e ao Uno que atravessou a porta do umbral neste dia de 17 de Novembro, em 1499.
Que muita luz e amor circulem entre nós e ele, agora e sempre, Amen...
A porta celestial, obra bela, actual, de Patrizia Giovanna Corttezi
Pese a ligeireza de algumas das suas teses ou a imaginação mistificador cabalística das suas explicações do começo do Universo segundo o Genesis, o seu valor como pioneiro da Filosofia Perene e da unidade das Religiões e Tradições, bem como as suas aproximações ao Amor, Beleza, Liberdade e  Verdade, serão valiosas perenemente...
Opera Omnia, Obra Completa, de Pico, numa edição veneziana de 1556
Para Pico della Mirandola, o Amor é a inclinação para o objecto do seu desejo, que é o Bem ou o Belo. A Beleza é a proporção justa, o brilho, a harmonia que resultam da combinação ou mistura de diferentes elementos. Por causa disto, diz-nos, o grande contemplativo Plotino pensava que a palavra Eros, Amor, derivava de orasis, que significa visão.
Dois tipos de visão se distinguem, a do mundo visível e a do mundo invisível ou inteligível, o qual abrange as ideias, os seres angélicos, a Divindade, e que é visto pela inteligência ou visão espiritual. Há portanto dois amores para Pico, o engendrado pela Vénus ou Beleza terrestre, e o da Vénus Celestial, o desejo por parte da inteligência da Beleza ideal. Será da Divindade que o ser humano pode receber a perfeição da Beleza máxima.
Medalha de Pico, com as três Graças: Pulcritude, Amor e Volúpia
 Para Pico as Três Graças eram consideradas as servas do Amor e representavam a juventude, o esplendor e a alegria... Ou seja, a capacidade de permanência e duração duma coisa ou ser na sua integralidade. A iluminação da inteligência e a movimentação da vontade para alcançar essa beleza, e a resultante felicidade, ou alegria, ao ser atingida.
Três graus principais podemos ainda distinguir no amor humano: primeiro, o amor da beleza exterior e corporal. Em seguida, o da imagem dessa pessoa ou coisa que amamos em nós sempre que a queremos pela imaginação. E, finalmente, a visão da Luz divina, através do nosso amor universalizado, no coração, e que nos eleva, ora súbita ora gradualmente para a sua Origem ou Fonte Divina. 

Pico realçava assim que a grandeza do ser Humano estava no objecto do seu livre arbítrio ou desejo, que criativamente o pode degradar em formas inferiores brutas, ou o pode regenerar em formas superiores, divinas, nomeadamente até unus cum Deo spiritus factus, ser feito um espírito com Deus, como culmina a ascensão humana no início da Oração da Dignidade Humana…
Eis um brevíssimo resumo biográfico daquele que veio a ser chamado «a mais pura figura do humanismo cristão», e que, ao que consta, transparecia a beleza angélica, como podemos ver na relativamente abundante iconografia, nomeadamente, na famosa pintura de Cosimo Rosseli, na igreja de S. Ambrósio, em Florença, pintada ainda em vida de Pico, e numa pintura do século XVI (provavelmente inspirada num fresco em Veneza, hoje perdido, de Bellini ou de Carpaccio, seus contemporâneos), que foi estudada por um dos melhores conhecedores de Pico e do Humanismo, o prof. José Vitorino de Pina Martins, encontrando-se hoje na posse da sua filha Eva Maria, em Portugal, onde aliás já desde o século XVI há sinais da influência de Pico, nomeadamente nas obras de Aires Barbosa, Frei António Beja, Garcia da Orta, Sebastião Toscano, Coelho Amaral, Frei Luís de Granada, etc.
José Vitorino de Pina Martins com o retrato de Pico della Mirandola, estudado na sua tese de doutoramento na Sorbonne. Está com as  vestes do doutoramento sorbónico, na sua  luminosa biblioteca... Muita luz e amor estejam na sua alma espiritual....


A pintura seiscentista de Pico della Mirandola, adquirida em Paris pelo prof. Pina Martins, devotamente contemplada por ele e os seus amigos, aqui eu, já depois da migração de Pina Martins para o mundo dos espíritos...
De facto, entre os amigos da perenidade de Pico della Mirandola, cabe destacar inegavelmente o investigador  e professor, e durante muitos anos Presidente da Academia das Ciências de Portugal, José Vitorino de Pina Martins, um grande estudioso e amador de Pico, Erasmo, Thomas More, Sá de Miranda, Camões, Pascal, Antero, etc. Com  ele convivi bastante, e confidenciou-me mais de uma vez a fortíssima impressão sentida (talvez de já ter  estado noutra vida em Florença, admitia) quando entrou pela primeira vez na basílica principal de Santa Maria Maior, onde se encontram os restos mortais de Marsilio Ficino...
Marsilio Ficino, no seu busto na parede da Basílica Maior, em Florença
 O inglês Jesup, na sua obra The Lives of Picus and Pascal, 1723, Londres, impresso por W. Burton, explica-nos que Pico della mirandola, na linha pitagórica e que ele tanto apreciava, “nunca estimou os ricos e os poderosos por o serem assim, mas as marcas de Honra, Piedade e Virtude sempre prenderam a sua afeição às pessoas em que apareciam”. E que costumava dizer «que a liberdade de acção e da mente devia ser estimada acima de todas as coisas, e que para a gozar, nunca residia muito tempo no mesmo lugar». E que «A mais pequena propensão para a devoção amorosa era preferível a tudo o que o homem pudesse conhecer». Ou ainda: «Nunca conheceremos a Divindade, nem as obras da sua criação, enquanto não A amarmos».
A Oração, [apologia ou discurso] da  Dignidade Humana é uma obra muito bela e nela encontramos valiosas descrições ascensionais do ser humano. Oiçamos  algumas para finalizar:
"E, se não ficar contente com a sorte de qualquer criatura, se recolher ao centro da sua unidade, feito um espírito com Deus, à sombra do Pai, que está acima de todas as coisas, a todas antecederá...
"Quem portanto não admirará o nossa camaleão? Ou de outro modo, quem poderá admirar mais outrem? Asclépio ateniense não errou ao dizer que nos Mistérios, devido à sua natureza mutável e susceptível de se transformar, se designa este ser por Proteu. Daí as metamorfoses célebres dos hebreus e pitagóricos. Por um lado, a mais secreta teologia dos hebreus transforma tanto Henoch num santo anjo da Divindade, chamada Malak háshekinah, tanto outras personagens noutras divindades. E os pitagóricos, os celerados em brutos. E, se acreditarmos em Empedocles, em plantas..."
"Se vires um filósofo discernir todas as coisas segundo a correcta razão, venerai-o: é um ser celeste e não terreno; se virdes um contemplador puro, liberto da preocupação corporal, retirado no santuário do espírito, já não se trata dum animal terreno ou celestial, mas de uma divindade muito augusta circumvestida de carne.»
Em 1998, em homenagem aos 500 anos da viagem de Vasco da Gama e aos principais artífices da ligação do Oriente e do Ocidente, publiquei o:

nele inserindo esta notícia, entre outras efemérides do dia 17 de Novembro:
 "Em Florença, a bela, assistido pelo austero Savonarola, em 1494, Pico della Mirandola, o príncipe dos humanistas, abandona o corpo rumo aos planos elevados da Divindade. Na lápide da sua sepultura ressoa inscrito: «Aqui jaz Pico della Mirandola. O Tejo e o Ganges conhecem-no, e porventura os antípodas». O historiador das Décadas da Ásia, João de Barros terá talvez pensado nisto quando diz que os portugueses ultrapassaram tanto «as próprias fábulas da gentilidade grega e romana, que vêm a ser antípodas da própria pátria, e se Deus tivera criado outros mundos, já lá tiveram metido outros padrões de vitória; contendendo os perigos do mar, trabalhos de fome e de sede, dores de novas enfermidades, e finalmente com as malícias, traições e enganos dos homens, que é mais duro de sofrer». Embora tendo uma vida muito activa inicialmente e depois a sujeição alguns anos à tenebrosa excomunhão, a odisseia de Pico foi mais no mundo das ideias, das religiões e do espírito, tentando descobrir e provar a unidade do Aristóteles ocidental com o Platão oriental, e a Filosofia Perene que caldaicos e persas, gregos, árabes, judeus, cristãos e de outras religiões tinham e têm em comum."
          Om, Lux, Amor,  Pico della Mirandola|!