quinta-feira, 10 de maio de 2018

Rabindranath Tagore, "Stray Birds", "Aves Vadias", tradução e paráfrase de Pedro Teixeira da Mota.

 Rabindranath Tagore, em Stray Birds, Aves Vadias, dada à luz em 1916, já depois de ter recebido o prémio Nobel de Literatura em 1913, oferece-nos um ramalhete de frases poéticas e espirituais condensadas, maduras (completara os 57 anos), valiosas, das quais escolhi algumas, traduzindo-as da edição inglesa antiga. E entre chavetas, a seguir às traduções, encontra  comentários, ou seja, como é que parafraseei o seu ensinamento poético-espiritual.
 Já estavam em gestação estas Aves Vadias no artigo de homenagem ao seu aniversário  http://pedroteixeiradamota.blogspot.pt/2017/05/156-aniversario-de-rabindranath-tagore.html, e retirei-as de lá, completei-as (a numeração corresponde à edição original), juntei-lhe as pinturas dos últimos dezassete anos de Tagore (uma vocação de pôr-do-sol mas fecunda: mais de 2500 obras, com uma exposição internacional em Paris em 1930), e autonomizei-as para que voem primaverilmente com a alma de Rabindra e a nossa, inspirando-nos, soprando também nossas asas multicoloridamente, divinamente.
          
3. O mundo tira a sua máscara de vastidão para o seu amante. Torna-se pequeno como uma canção, como um beijo do Eterno. 
 [Ama mais a Natureza, diminui o teu ego e ela envolver-te-á amorosamente.]

6. Se derramas lágrimas então perdes o sol, e perdes também as estrelas.
 [Luta para vencer as tristezas, desilusões e medos, e para que o Sol do Divino Amor chegue até ti, ou irradie através de ti.]
                                     
 18. O que tu és não vês, o que vês é a tua sombra.
[Desconhecemos muito ainda da nossa dimensão psico- espiritual.]

25. O ser humano é uma criança recém-nascida, o seu poder é o poder crescer.
[Não te satisfaças, nem te limites, e aspira sempre a desabrochares mais.]

28. Ó Beleza, encontra-te a ti própria no Amor, não no espelho lisonjeador.
[Sê mais activo e irradiante de Amor e a tua beleza natural e verdadeira brilhará.]

35. A ave deseja ser uma nuvem. A nuvem deseja ser uma ave.  
 [Aceita melhor a forma de consciência e de vida em que estás e com ela participa no grande jogo cósmico (lila), soprando bem nas tuas asas ou aspirações.]
 38. Mulher, quando te moves no serviço da casa os teus membros cantam como um regato montanhoso entre as suas pedras.
[Deixa-me dizer-te, amada, nas  lides domésticas não te deixes prender pela rotina ou a frustração mas encontra criatividade e habilidade, fluidez e canto alegre.]

41. As árvores, como as aspirações da terra, estão em bicos de pé para espreitar o céu.
[Eleva-te em aspirações e realizações espirituais, universais, divinas, comungando, flutuando ou nadando no oceano e céu azul da Unidade.] 
43. O peixe na água está silencioso, o animal na terra é barulhento, o pássaro no ar está cantar. Mas o ser humano tem em si a capacidade do silêncio do mar, o barulho da terra e a música do ar.
[O ser humano tanto pode degradar-se como elevar-se a ser um epítome da natureza inteira, unindo ecologica e harmoniosamente todos os reinos e elementos, tal como afirmou Pico della Miranda, na sua famosa Oratio.]

46. God finds himself by creating. A Divindade descobre-se ao criar, ou por criar.
[Sê um criador, exerce o poder divino de uma ou outra forma, participa na Criação historicamente, dharmicamente]
***
51. O teu ídolo é destroçado em pó para provar que o pó de Deus é maior que o teu ídolo.
[Não cries ídolos terrenos, a natureza imperfeita ou perecível virá ao de cima. Valoriza e ama mais a Divindade, em si, em ti e nos outros.] 
                            
56. A vida é-nos dada, e nós merecemo-la ao dá-la. 
[Saibamos dar-nos, sacrificar-nos, dedicar-nos, pois assim a Grande Vida mais passará por nós.]

61. Bebe o meu vinho, no meu próprio cálice. Ele perde a grinalda de espuma quando derramado no de outros.
[O cálice do amor do amado ou amada deve sentir-se no  coração psico-espiritual e aí comungar-se em  entrega e recebimento recíproco e íntimo de consciências unidas. E há também nesta ave vadia ou livre um apelo à criatividade própria e à intimidade mais plena com o espírito e a Divindade.]

73. A castidade é uma riqueza resultante da abundância de amor. 
[Se estamos mais em amor, conseguimos estar menos frustrados e,  ora satisfeitos ora sublimados, gerando criatividade e alegria, em constância e fidelidade.]
143. Mulher, com a graça dos teus dedos tocaste as minhas coisas e a ordem brotou como uma música.
[Encontrarmos o ser cuja aura e toque nos harmoniza como harpa é uma graça divina.]

174. As nuvens enchem as taças de água do rio, escondendo-se a si mesmas nos montes distantes.
[Embora longe ou separadas, as nuvens dos nossos afectos preservados podem regar os campos ou engrossar os rios das nossas almas.]

185. Eu sou a nuvem outonal, esvaziada de chuva; vê a minha plenitude no campo de arroz maduro.
[Sabermos dar-nos adequadamente é certeza da felicidade do dever cumprido ou da graça do amor partilhado.]

220. Faz de mim o teu cálice e que a minha plenitude seja para ti e para os teus.
[Eis uma plena e, logo, bela dedicação seja a Deus, seja à amada ou ao amado.]

227. O movimento da vida tem o seu descanso na sua própria música.
[Sabe manteres-te consciente da dimensão subtil, musical, dos teus trabalhos e ritmos.]

242. Esta vida é o atravessar o mar, onde nos encontramos no mesmo acanhado barco. Na morte atingimos a outra margem e vamos para mundos diferentes.
[Será assim para todos, ou desejamos sempre encontrar alguns companheiros para a viagem ou mesmo para vida no além? Penso que sim, o amor e  a afinidade interior aproximar-nos-á, juntar-nos-á com alguns seres.]
245. O canto do pássaro é o eco da luz da manhã vinda da terra.
[A osmose entre cada ser da natureza e os múltiplos aspectos e energias dela deve-nos desafiar a sabermos também gerar os melhores cantos, actos e sonhos, comungando das melhores vibrações, luzes e intenções do Universo.]

248. O ser humano é pior que um animal quando é um animal.
[O ódio e a crueldade não existem no reino animal e rebaixam portanto abaixo dele o ser humano que os vivencia, nutre e em especial os causa pela sua insensibilidade e violência.] 

249. Nuvens escuras tornam-se flores do céu quando beijadas pela luz.
[Se verdadeiramente beijamos alguém esse ser é transmutado, harmonizado, iluminado, transfigurado. E assim também as nuvens podem ser tocadas e transformadas em anjos e arco-íris.]

251. O silêncio da noite, tal como uma lamparina profunda, está a arder com a luz da Via Láctea.
[Noites ardentes e silenciosas, geram se aprofundadas nas suas interelações no campo unificado de energia e consciência tanto belas comunhões com os mundos distantes como a unificação interior do som silencioso e da luz subtil.]

262. As folhas trémulas desta árvore tocaram o meu coração como os dedos de uma criança.
[O tacto sensível e amoroso transfigura os corpos e almas. Para a alma sensível e pura, para o coração aberto, a natureza é fonte de maravilhosas sensações, percepções e intuições.]

272. Cheguei à tua margem como um estrangeiro, vivi na tua casa como um convidado, deixo a tua porta como um amigo, minha terra.
[Sem ter de voltar, grato e pleno amor de perene. Graças muitas te dou pelo que me ensinaste a amar ó terra, ó ser amado, ó humanidade, ó Divindade.]
273. Que os meus pensamentos cheguem até ti, quando eu me for, como os reflexos luminoso do pôr do sol na margem do silêncio estelar.
[Assim também os mestres transmitiam os seus mantras ou sons sagrados em iniciações que eram meios de conservar a comunhão para além das barreiras das distancias da vida e da morte. Possamos nós passar algo de valioso aos outros ou ao Cosmos e comungarmos nos sons e palavras, cantos e músicas.]
 276. O dia de trabalho está realizado. Esconde a minha face nos teus braços, Mãe. Deixa-me sonhar.
[Bem raro o ser que consegue sonhar nos braços da Mãe Terra ou da Mãe Divina. Para chegarmos a adormecer nos seus braços, ou mão, como desejou Antero de Quental pelo menos no seu famoso soneto, quanta oração não lhe devemos fazer?]

277. A lamparina do encontro arde longamente; apaga-se todavia num instante no momento da separação.
[Alguns de nós conseguem manter o ardor do amor encontrado mesmo separados. Infelizes os que subitamente apagam a chama do amor recíproco tão longamente preparado].
278. Uma palavra, ó Mundo, conserva para mim no teu silêncio, quando eu morrer: «Eu amei.»
[Que ligações, que transfigurações, que realizações flamejantes ou humildes continuarão a ressoar na terra após a nossa partida? E que ecos serão como que braços abertos para nós no Cosmos? Que o fogo do Amor divino arda bem em nós.]

284. O amor é a vida na sua plenitude, como a taça com o seu vinho.
[Um fiel do Amor está sempre a gerar no seu corpo e alma o suco do amor luminoso.]

285. Eles acendem as suas próprias lamparinas e cantam as suas próprias palavras no seus templos. As aves, porém, cantam o Teu nome na tua própria luz matinal, - pois o teu nome é alegria (joy, ananda).
[Sabermos discernir qual é a acção, pensamento e sentimentos justos e beatificantes, que brotam do coração mais profundo, é a arte real da harmonia e é por ela que nos unimos ao mundo  e ao ser Divino.]
286. Conduz-me ao centro do teu silêncio para encher o meu coração de canções.
[Possa eu entrar no silencio profundo, na intimidade máxima de mim mesmo e aí me inspirar e encher, descobrir-te e adorar-te.]
287. «Que eles vivam, os que o escolhem, no seu próprio mundo de fogos de artifício assobiantes. O meu coração aspira às tuas estrelas, meu Deus».
[Felizes os que sabem não se perder nas aparências e egoísmos ilusórios e aspiram às estrelas e ao Sol Divino, com perseverança.]
 291. I have seen thee before in the light of the earth, in the love of man...  
Vi-te antes na luz da terra, no amor humano. Um dia cantarei para ti no nascer do sol de algum outro mundo. 
[Grande graça quando, vendo alguém pela primeira vez, intuímos que já a conhecêramos, ou que a víramos na luz e no amor divinos.]
292. Nuvens vêm de outras vidas flutuando até à minha vida já não para derramar a chuva ou desencadear tempestade mas para dar cor à atmosfera do meu pôr do sol.  [Intuições de energias e relações vindas de um passado imemorial passam por nós, mas sabiamente as acolhemos levemente.]
297. A doçura do teu nome enche o meu coração quando eu esqueço o meu - tal como o teu sol matinal quando a névoa se vai dissipando. [ Teu nome é em minha alma uma fonte de amor, seja quando me dedico plenamente a ti seja se afligido só esteja.]
301. Deixa-me sentir este mundo como o teu amor tomando forma, então o meu amor ajudá-lo-á.
[Todos nós somos chamados a fazer aumentar o amor e a felicidade na vida e a diminuir o sofrimento e a ignorância dos outros e nossa. Se o fizermos como aliados ou amigos de Deus, máximo]
                                                       
304. Atravessas desertos de terras áridas para chegares ao momento de realização plena.
[Saibamos perseverar na aspiração aos nossos mais elevados fins].
307. Não me deixes envergonhar-te, Pai, tu que manifestas a tua glória nas tuas crianças.
[Saibamos honrar ou continuar toda a cadeia dos nossos antepassados ou ascendentes até chegarmos à Divindade e que ela se sinta alegre com a nossa acção no mundo],
313. Saberemos um dia que a morte nunca nos poderá roubar aquilo que a nossa alma ganhou, pois os seus ganhos são um com ela.
[A consciência de que somos almas espirituais e que continuaremos após a morte do corpo físico ajudar-nos-á a manter a consciência nesse momento da transição para o além e também avançarmos mais radiosamente para os mundos espirituais].
                                     
315. Quando todas as cordas da minha vida estiverem sintonizadas, meu Mestre, então a cada toque de ti sairá a música do amor. 
[Fortalece-me, unifica-me, para que diante todas as situações saiba estar em amor e sabedoria e gerar a luz e a música, em unidade].
316. Deixa-me viver verdadeiramente, meu Deus, de modo a que a morte para mim se torne verdade.
[Felizes os que saberão chegar à hora da morte sem medos, prontos a partir desprendidos e abertos à verdade que ela revelará de nós e dos nosso futuro].
326. Que esta seja a minha última palavra: eu confio no teu amor.
[Que esta seja a minha palavra: Ó Deus, eu amo-te tanto que espero avançar sempre contigo e que o nosso amor comungue o ser dos outros seres nesta Unidade que nos liga a todos e da qual tu és a fonte e fundamento.]
   

quarta-feira, 9 de maio de 2018

Uma Peregrinação Portuguesa ao Irão, 2013, (4º cap.), por Pedro Teixeira da Mota.

4º dia da peregrinação. 28-IV. Domingo de manhã, 7:15. Dormida melhor, acordando apenas duas ou três vezes, a primeira logo à 1:03, pois deitara-me às 0:20. Depois outra vez, e outra. Os sonhos já lá vão, mas lembrei-me agora de um padre ou pessoa que fazia bem ao próximo e aos pobres, a ser ajudado e estava muito gente a passar e a vir ter com ele e seria bem diferente do estilo, por exemplo, do padre lisboeta João, mais social e fino do que operativo. Algo que eu também devo ter presente não estando tão isolado em investigações, meditações e escritas.
Noutro sonho ia a descer uma rua e via carroças atulhadas de vegetais e puxadas por cavalos, e pensava: boa fotografia. Quando me aproximava fazia umas festas neles, junto aos olhos, e via expressões completamente de seres humanos. Melhor, eram mesmo seres humanos, algo tristes que iam lá (como cavalos) e que sentiam a minha compaixão por eles. Sonho curioso (1).
Bem, tive ainda outros sonhos; antes de começar a escrevê-los pensara que talvez conseguisse recuperar mais conteúdos, pois sentira um certo fluxo ou continuidade entre os dois descritos e portanto admitira a hipótese do fluxo se conservar ainda vivo, em certos níveis subtis ou da memória…
  Curiosamente, ao acordar fiquei no 3º olho com a visão dum tracejado amarelo alaranjado o qual, embora tivesse relacionado com o fluxo do sonho (e agora lembrei-me de um sonho de ontem que pensara que devia registar pelo que indica de vivência entre os vários planos, o que farei a seguir…), também poderia ser uma antevisão do sol a nascer, pois logo depois, ao levantar-me e abrir a janela, pude ver o Sol e os seus raios dourados a emergirem detrás das montanhas, já perto das 6:50. E do amplo terraço desfruta-se uma visão muito ampla de Teerão...
Pois o tal sonho de ontem que me lembrei há pouco foi com uma alma amiga que já partiu para o além, a Dolores, a aparecer-me a dizer que estava alguém em baixo, e de facto Shokoh Hoseyni, a professora de árabe, que veio ontem trabalhar comigo, estava na realidade a tocar à campainha e teve que ser o porteiro-guardião do edifício a vir bater à porta do 7º andar com mais força e assim eu sair da cama na parte de cima do apartamento ou 8º andar, onde readormecera, pois não contava com ela tão cedo…
 Hoje Marzieh foi a minha guia e veio ter comigo à residência e depois seguimos a pé e de transportes públicos para o centro, onde apanhamos o metropolitano às 10:30 rumo ao Bazar principal, que percorreremos encantados com a sua riqueza de oferta de produtos naturais e faces de pessoas. 
 Na alameda marginal ao bazar, muito movimentada, andava um ancião vestido de modo castiço e de cabelos e barbas brancas, estilo rapsódo e vate, a cantar poemas tradicionais, com um pequeno e rudimentar altifalante de punho, sem dúvida um representante de uma prática mais do que milenária. Cantaria poemas de amor ou épicos?
 Numa das rampas de acesso a uma das portas do bazar ajudei um puxador de carroça atulhada de mercadoria, pois a subida não é fácil para quem vem de dentro, onde o piso é algo subterrâneo em relação ao exterior.
 Por fim, desembocamos no adro da mesquita (masjid, em persa e árabe, significando casa de oração) e santuário do Imamzade Zeinaldin (um santo descendente dos 12 imans shiaas) que tem uma entrada e o interior cheios de vidrinhos coloridos incrustados nas paredes e tectos, gerando reflexões ou refrações luminosas surpreendentes.
 Caligrafias com os 99 nomes benditos de Deus a surgirem abundantemente traçadas em belos azulejos dispostos em formas mandalicas ou concêntricas e que podem facilmente ser utilizadas para contemplação, concentração e aproximação a estados psíquicos de maior equilíbrio ou mesmo expandidos, senão mesmo divinos... 
Sento-me em posição de oração seiza, perto de dois ou três homens, que estão também numa osmose calma religiosa ou mesmo orativa, diante da porta de entrada para o santuário mais íntimo desta pequena mesquita-santuário e vou ora orando ora admirando, e extasiando-me através dos profusos nichos escavados nas semi-abóbadas, cheios de luzes e cores.
                                 
                           
Por fim entro no santuário propriamente dito, depois de ter visto algumas pessoas beijando a porta de entrada, ou um moola, um teólogo-religioso com o turbante branco, tocando com os lábios devotamente o chão, sentido como sagrado.
                                
                           
Lá dentro, protegido por um gradeamento artístico e dourado, está o remanescente do corpo do santo, dentro de um túmulo em pedra de um metro de altura sobre o qual se vislumbra o Alcorão aberto e uma garrafa de água ou perfume, e que eu admiro e fotografo por entre as grades.
                  
 As pessoas vão passando e tocando, rezando e osculando as grades, no fundo como se elas fossem impregnadas pelas emanações do santo ou iluminado: Quantas conseguirão chegar até esse nível imaginativo e serem mesmo tocadas e abençoadas por ele?
Não muitas, pois em geral fazem-no sem demorar muito tempo, embora um ou outro fique mais agarrado e tocado pelo que se passa ou pelo que se sente, ou pelo que pede e anseia…
Ponho-me em frente ao túmulo, sento-me no chão de mármore, oro e contemplo, e fotografo a abóbada toda trabalhada, da qual pende um candeeiro, reflectindo mil luzes.
 Observo um homem sentado à esquerda da saída, rezando com o rosário ou tshabi. Quando ele, de repente, começa a orar ou a clamar em voz alta, eu ponho a máquina a filmar e vou gravando-o. Quando termina a sua devoção, eu deixo estar-me em silêncio um minuto e depois grito por três vezes a invocação sagrada, “Deus é grande”, “Allah Akbar”. E fico depois em silêncio, por momentos.
E eis que ele de novo ergue a sua voz, agora ainda mais poderosa, e repete outros nomes santos, de certo modo em relação comigo, mas no fundo declamando uma oração poderosa e cheio de fé e força, emudecendo por fim. Termino então a gravação, a primeira feita nesta peregrinação, estou uns momentos ainda em oração, levanto-me e, ao passar diante dele, curvo levemente a cabeça e saio.

Mas eis que, quando já vou a meio do átrio, ele vem a correr e, pleno de entusiasmo, dá-me um grande abraço, presenteando-me em seguida com o seu tshabi, de cor verde, que virá comigo para Portugal. Marzieh assiste a esta parte final divertida ou alegremente, pois esta é uma das suas características pessoais e muito valiosa.
                                      
Tanto a porta e semi-abóbada de entrada, mais baixa, como a da saída, são muito belas e cheias de azulejos, com caligrafias ou disposições geométricas valiosas, propiciando uma nítida elevação ao Divino.
  Será a variedade quase infinita de reflexos e cores, formas e cavidades, serão os nomes de Deus que se encontram traçados, será a nossa consciência de portas para os mundos sagrados, o que mais contribuirá para a sensação do sagrado ou do numinoso que nos penetra ou que tinge e exalta a aura?
                                    
Este é certamente um dos segredos da adesão e vitalidade que o Islão vai conservando mesmo no séc. XXI, provavelmente tal como alguns frequentadores de igrejas românicas ou catedrais góticas sentirão...
                         
Atravessamos de novo o bazar, admirando algumas misturas de especiarias dispostas em camadas sobrepostas de cores diferentes, em forma de bolo de camadas, e saímos para almoçar num restaurante muito popular, com uma constante bicha de pessoas a subir as escadas, enquanto outras descem, apertadamente.
 Consigo receber uma arrozada vegetariana e um pouco de salada, além de um molho talvez de tomate e beringela que acompanha bem o pão deixado pelo vizinho do lado, já saído…
 
 Compro ervas medicinais numa loja e pouco depois encontramo-nos com uma amiga de Marzieh, Afeteh, e chegamos ao alfarrabista que Marzieh considera o melhor, seu conhecido há já uns anos, e que nos mostra dois livros da Colecção Iraniana do saudoso Henry Corbin, do qual compro logo um, as Penetrações Metafísicas, do famoso filósofo Moola Shadra.

                               
O empregado-ajudante afadiga-se para encontrar obras em inglês que me possam interessar e traz-me uma pequena mas bela edição bilingue de poemas do Diwan de Hafiz, impressa na Javidan Publication, da Índia, do que parecia ser dos anos 40 mas é de 1963, bem ilustrada e com os poemas dentro de uma tarja ou moldura com desenho do estilo miniatura persa.

Eu encontro um livro intitulado Farah (de Teheran, 1965) em francês, com dedicatória do autor, Emir Nosrateddine Ghaffary, e sobre a espiritualidade e literatura persa bem valioso, que também adquiro, pois é uma verdadeira antologia de frases, poemas e ensinamentos dos grandes mestres iranianos mas em diálogo com mestres de outras tradições e até cientistas. O sub-título da obra é sintomático:  O Universo Paradisíaco dos Sufis Persas, seguindo-se na página seguinte uma caligrafia da palavra HOU, É Ele, (a Divindade), escrevendo em seguida "Hou, sinal de ajuntamento dos sufis persas". E sabemos que é um dos mantras ou zikrs mais usados pelos místicos na suas práticas meditativas e invocativas da Divindade. A obra está bem ilustrada com desenhos e fotografias.
Marzieh e o calmo dono da livraria alfarrabista algo encantada
Compro ainda duas revistas sobre Sufismo em inglês, dos anos 90, e ele ficou de saber se haverá mais livros dessa colecção nos colegas. O 1º andar, onde está instalada a livraria, tem umas quatro salas bem altas, cabendo até ao tecto umas 12 prateleiras em estantes de metal repletas de livros, alguns deles com belas capas, outros com elas protegidas por plástico. E foram passando algumas pessoas enquanto estivemos em conversas ou apreciações de livros, sob uma arquitectura de estantes carregadas de uma sabedoria e amor que ninguém conseguirá medir...
 
Seguimos os três pelas ruas centrais de Teerão, com algumas paredes de edifícios muito bem pintadas em formas conviviais de arte urbana e as ruas bem vitalizadas ecologizadas por múltiplos canteiros de flores e neste mês de Abril, as mítica rosas persas desabrochando.
                                

                                     
Visitamos um conjunto palacial bastante vasto, denominado  Golestan, ou seja, Jardim das Rosas (que é também o título de uma das obras mais importantes de Saadi e que tenho trabalhado também), com dezassete palácios, em geral do séc. XVIII e XIX, e que albergam dentro de si sucessivos museus,2 adornados com milhares de jogos de pequeninos espelhos e vidros, cores e candelabros, ampliados pelas janelas de vidros coloridos, ou pelos espelhos em molduras multifacetadas. As salas sucedem-se aos salões, alguns com reconstituições da época gloriosa ou mais faustosa no séc. XIX, seja em figuras de tamanho natural, seja através das fotografias da época.
                              
Um belo trono de mármore, o Takht e Marmar, mandado construir com mestres pedreiros de Isfahan em 1800, por Fath’ Ali Shah Qajar (1772-1834), num terraço muito artístico, destaca-se, alinhado com um longo tanque de água que converge do amplo jardim para ele.
 Num dos palácios encontro uma gravura representando Nur Ali Shah, o mestre espiritual do séc. XVIII, de quem li alguns dos ensinamentos em Portugal e que mais de uma vez invoquei, e que durante esta peregrinação iraniana está a ser a fotografia de perfil no facebook, tirada de um tapete persa antigo. Está representado numa idade ainda muito jovem, belo, transparecendo a sua qualidade de testemunha (shahab) da Divindade, algo muito cultivado pelo misticismo iraniano. Os guardas do Museu fazem sinal que não se pode fotografar mas, por fim, pedindo a Marzieh que interceda por mim, recebo bastante feliz a autorização e tiro duas fotografias, embora não tenha registado o nome do gravador ou pintor.
                               
De destacar no exterior os painéis de azulejos multicoloridos e com influências ocidentais, já dos finais do séc. XVIII, alguns muito suaves pelos anjos, cisnes, mulheres e paisagens idílicas que apresentam.

 
  E os canais de água e lagos ou piscinas que refrescam o conjunto relativamente arborizado que está no meio dos palácios, destacando-se ainda nos sub-jardins algumas árvores com tijolos nos troncos que secaram em parte, de modo a dar-lhe mais resistência e algumas com frutos. Belas flores, nomeadamente rosas fragrantes, alegram vitalmente este espécie de jardim paraíso.
 
                            
Uma antiga fonte e tanque, dentro de uma sala aberta por dois arcos e guardada por dois gatos-leões em mármore, muito fresca e revestida ainda de belos azulejos florais, servir-nos-á para nos sentarmos e fazermos a istixara, isto é, a tiragem à sorte, oracular, abrindo-se o livro de poemas de Hafiz, lidos maravilhosamente por Marzieh e Afeteh. (3)
                          
Sou acolhido esta noite em casa de Marzieh, por estar bastante mais próxima da universidade onde vou proferir a primeira palestra e assim evitar a longa deslocação e eventuais demoras. Quando chegamos ao seu apartamento, uma sala grande, a cozinha ao lado e um quarto, a irmã está sentada no chão a cozer e a passar a roupa. Muito sensível, bela, esguia, parece uma gazela. Está a passar uma fase difícil com o fim do namoro, explica-me Marzieh, e tento animá-la. Como trouxe uns presentes de Portugal (cristais do Gerês, sabonetes e alimentos) e ofereci, ou por curiosidade ou cortesia, o pai desce do andar de cima, onde mora com a mulher e a filha mais nova, e vem conhecer-me e dialogar. Simpático, atento e sabendo ouvir, firme e com a sua sabedoria. É psiquiatra. Comida simples, lavagens e conversas interessantes pois está a par das várias correntes de psicologia mundiais e ao mesmo tempo conhece os mestres da poesia amorosa e da espiritualidade persa.
 1 - Que tanto pode apontar para a transmigração das almas para corpos animais, como para a qualidade da alma dos animais, muito próxima dos humanos. Mas parece-me que o sentido será o primeiro e que portanto devemos usar muito bem este corpo e alma durante a vida no mundo terreno físico para não termos de ir passar por purgatórios animais… Porque tive este sonho no Irão? Será pelo meu interesse pelos sonhos e o mundo espiritual, e por isso me deram esta amostra de conhecimento?

2 - O pequeno conjunto de três divisões abertas para o jardim chama-se Khalvat e Karimkhani. O regente Nasser-ol-Din Shah gostava muito deste local e acabou por erigir nele o seu túmulo. 
 
3 - Muito dos palácios, torres e dependências, que constituíam o centro da cidade antiga, e que vinham do séc. XVI-XVII (dinastia safavida), e do XVIII-XIX (a dinastia Qajar) foram infelizmente demolidos pelo Reza Shah, o último shah (rei) da dinastia Pahvali, para dar lugar a uma cidade mais moderna. Sobreviveram dezassete edifícios e destacam-se o Palácio dos Diamantes, com milhares de reflexos dos espelhinhos, e os museus de Etnologia, Zorouf, Tajgazari. Em Junho de 2013 este conjunto foi proclamado Património Mundial, pela Unesco. Gravei alguns vídeos valiosos, que estão no Youtube na play list Irão...

Quanto à Istixara tanto é feita pelo Alcorão de Mohammad, como pelos Diwans de poemas outros dois autores sagrados do Irão, Hafiz e Saadi,  mestres da religião do Espírito e do Amor, tão ainda lidos, recitados e amados por quase todas as almas iranianas. Concentração, oração invocativa, abrir a página e tentar intuir a mensagem que o texto pode suscitar em nosso caminho de luz, amor e harmonia!