quarta-feira, 9 de maio de 2018

Uma Peregrinação Portuguesa ao Irão, 2013, (4º cap.), por Pedro Teixeira da Mota.

4º dia da peregrinação. 28-IV. Domingo de manhã, 7:15. Dormida melhor, acordando apenas duas ou três vezes, a primeira logo à 1:03, pois deitara-me às 0:20. Depois outra vez, e outra. Os sonhos já lá vão, mas lembrei-me agora de um padre ou pessoa que fazia bem ao próximo e aos pobres, a ser ajudado e estava muito gente a passar e a vir ter com ele e seria bem diferente do estilo, por exemplo, do padre lisboeta João, mais social e fino do que operativo. Algo que eu também devo ter presente não estando tão isolado em investigações, meditações e escritas.
Noutro sonho ia a descer uma rua e via carroças atulhadas de vegetais e puxadas por cavalos, e pensava: boa fotografia. Quando me aproximava fazia umas festas neles, junto aos olhos, e via expressões completamente de seres humanos. Melhor, eram mesmo seres humanos, algo tristes que iam lá (como cavalos) e que sentiam a minha compaixão por eles. Sonho curioso (1).
Bem, tive ainda outros sonhos; antes de começar a escrevê-los pensara que talvez conseguisse recuperar mais conteúdos, pois sentira um certo fluxo ou continuidade entre os dois descritos e portanto admitira a hipótese do fluxo se conservar ainda vivo, em certos níveis subtis ou da memória…
  Curiosamente, ao acordar fiquei no 3º olho com a visão dum tracejado amarelo alaranjado o qual, embora tivesse relacionado com o fluxo do sonho (e agora lembrei-me de um sonho de ontem que pensara que devia registar pelo que indica de vivência entre os vários planos, o que farei a seguir…), também poderia ser uma antevisão do sol a nascer, pois logo depois, ao levantar-me e abrir a janela, pude ver o Sol e os seus raios dourados a emergirem detrás das montanhas, já perto das 6:50. E do amplo terraço desfruta-se uma visão muito ampla de Teerão...
Pois o tal sonho de ontem que me lembrei há pouco foi com uma alma amiga que já partiu para o além, a Dolores, a aparecer-me a dizer que estava alguém em baixo, e de facto Shokoh Hoseyni, a professora de árabe, que veio ontem trabalhar comigo, estava na realidade a tocar à campainha e teve que ser o porteiro-guardião do edifício a vir bater à porta do 7º andar com mais força e assim eu sair da cama na parte de cima do apartamento ou 8º andar, onde readormecera, pois não contava com ela tão cedo…
 Hoje Marzieh foi a minha guia e veio ter comigo à residência e depois seguimos a pé e de transportes públicos para o centro, onde apanhamos o metropolitano às 10:30 rumo ao Bazar principal, que percorreremos encantados com a sua riqueza de oferta de produtos naturais e faces de pessoas. 
 Na alameda marginal ao bazar, muito movimentada, andava um ancião vestido de modo castiço e de cabelos e barbas brancas, estilo rapsódo e vate, a cantar poemas tradicionais, com um pequeno e rudimentar altifalante de punho, sem dúvida um representante de uma prática mais do que milenária. Cantaria poemas de amor ou épicos?
 Numa das rampas de acesso a uma das portas do bazar ajudei um puxador de carroça atulhada de mercadoria, pois a subida não é fácil para quem vem de dentro, onde o piso é algo subterrâneo em relação ao exterior.
 Por fim, desembocamos no adro da mesquita (masjid, em persa e árabe, significando casa de oração) e santuário do Imamzade Zeinaldin (um santo descendente dos 12 imans shiaas) que tem uma entrada e o interior cheios de vidrinhos coloridos incrustados nas paredes e tectos, gerando reflexões ou refrações luminosas surpreendentes.
 Caligrafias com os 99 nomes benditos de Deus a surgirem abundantemente traçadas em belos azulejos dispostos em formas mandalicas ou concêntricas e que podem facilmente ser utilizadas para contemplação, concentração e aproximação a estados psíquicos de maior equilíbrio ou mesmo expandidos, senão mesmo divinos... 
Sento-me em posição de oração seiza, perto de dois ou três homens, que estão também numa osmose calma religiosa ou mesmo orativa, diante da porta de entrada para o santuário mais íntimo desta pequena mesquita-santuário e vou ora orando ora admirando, e extasiando-me através dos profusos nichos escavados nas semi-abóbadas, cheios de luzes e cores.
                                 
                           
Por fim entro no santuário propriamente dito, depois de ter visto algumas pessoas beijando a porta de entrada, ou um moola, um teólogo-religioso com o turbante branco, tocando com os lábios devotamente o chão, sentido como sagrado.
                                
                           
Lá dentro, protegido por um gradeamento artístico e dourado, está o remanescente do corpo do santo, dentro de um túmulo em pedra de um metro de altura sobre o qual se vislumbra o Alcorão aberto e uma garrafa de água ou perfume, e que eu admiro e fotografo por entre as grades.
                  
 As pessoas vão passando e tocando, rezando e osculando as grades, no fundo como se elas fossem impregnadas pelas emanações do santo ou iluminado: Quantas conseguirão chegar até esse nível imaginativo e serem mesmo tocadas e abençoadas por ele?
Não muitas, pois em geral fazem-no sem demorar muito tempo, embora um ou outro fique mais agarrado e tocado pelo que se passa ou pelo que se sente, ou pelo que pede e anseia…
Ponho-me em frente ao túmulo, sento-me no chão de mármore, oro e contemplo, e fotografo a abóbada toda trabalhada, da qual pende um candeeiro, reflectindo mil luzes.
 Observo um homem sentado à esquerda da saída, rezando com o rosário ou tshabi. Quando ele, de repente, começa a orar ou a clamar em voz alta, eu ponho a máquina a filmar e vou gravando-o. Quando termina a sua devoção, eu deixo estar-me em silêncio um minuto e depois grito por três vezes a invocação sagrada, “Deus é grande”, “Allah Akbar”. E fico depois em silêncio, por momentos.
E eis que ele de novo ergue a sua voz, agora ainda mais poderosa, e repete outros nomes santos, de certo modo em relação comigo, mas no fundo declamando uma oração poderosa e cheio de fé e força, emudecendo por fim. Termino então a gravação, a primeira feita nesta peregrinação, estou uns momentos ainda em oração, levanto-me e, ao passar diante dele, curvo levemente a cabeça e saio.

Mas eis que, quando já vou a meio do átrio, ele vem a correr e, pleno de entusiasmo, dá-me um grande abraço, presenteando-me em seguida com o seu tshabi, de cor verde, que virá comigo para Portugal. Marzieh assiste a esta parte final divertida ou alegremente, pois esta é uma das suas características pessoais e muito valiosa.
                                      
Tanto a porta e semi-abóbada de entrada, mais baixa, como a da saída, são muito belas e cheias de azulejos, com caligrafias ou disposições geométricas valiosas, propiciando uma nítida elevação ao Divino.
  Será a variedade quase infinita de reflexos e cores, formas e cavidades, serão os nomes de Deus que se encontram traçados, será a nossa consciência de portas para os mundos sagrados, o que mais contribuirá para a sensação do sagrado ou do numinoso que nos penetra ou que tinge e exalta a aura?
                                    
Este é certamente um dos segredos da adesão e vitalidade que o Islão vai conservando mesmo no séc. XXI, provavelmente tal como alguns frequentadores de igrejas românicas ou catedrais góticas sentirão...
                         
Atravessamos de novo o bazar, admirando algumas misturas de especiarias dispostas em camadas sobrepostas de cores diferentes, em forma de bolo de camadas, e saímos para almoçar num restaurante muito popular, com uma constante bicha de pessoas a subir as escadas, enquanto outras descem, apertadamente.
 Consigo receber uma arrozada vegetariana e um pouco de salada, além de um molho talvez de tomate e beringela que acompanha bem o pão deixado pelo vizinho do lado, já saído…
 
 Compro ervas medicinais numa loja e pouco depois encontramo-nos com uma amiga de Marzieh, Afeteh, e chegamos ao alfarrabista que Marzieh considera o melhor, seu conhecido há já uns anos, e que nos mostra dois livros da Colecção Iraniana do saudoso Henry Corbin, do qual compro logo um, as Penetrações Metafísicas, do famoso filósofo Moola Shadra.

                               
O empregado-ajudante afadiga-se para encontrar obras em inglês que me possam interessar e traz-me uma pequena mas bela edição bilingue de poemas do Diwan de Hafiz, impressa na Javidan Publication, da Índia, do que parecia ser dos anos 40 mas é de 1963, bem ilustrada e com os poemas dentro de uma tarja ou moldura com desenho do estilo miniatura persa.

Eu encontro um livro intitulado Farah (de Teheran, 1965) em francês, com dedicatória do autor, Emir Nosrateddine Ghaffary, e sobre a espiritualidade e literatura persa bem valioso, que também adquiro, pois é uma verdadeira antologia de frases, poemas e ensinamentos dos grandes mestres iranianos mas em diálogo com mestres de outras tradições e até cientistas. O sub-título da obra é sintomático:  O Universo Paradisíaco dos Sufis Persas, seguindo-se na página seguinte uma caligrafia da palavra HOU, É Ele, (a Divindade), escrevendo em seguida "Hou, sinal de ajuntamento dos sufis persas". E sabemos que é um dos mantras ou zikrs mais usados pelos místicos na suas práticas meditativas e invocativas da Divindade. A obra está bem ilustrada com desenhos e fotografias.
Marzieh e o calmo dono da livraria alfarrabista algo encantada
Compro ainda duas revistas sobre Sufismo em inglês, dos anos 90, e ele ficou de saber se haverá mais livros dessa colecção nos colegas. O 1º andar, onde está instalada a livraria, tem umas quatro salas bem altas, cabendo até ao tecto umas 12 prateleiras em estantes de metal repletas de livros, alguns deles com belas capas, outros com elas protegidas por plástico. E foram passando algumas pessoas enquanto estivemos em conversas ou apreciações de livros, sob uma arquitectura de estantes carregadas de uma sabedoria e amor que ninguém conseguirá medir...
 
Seguimos os três pelas ruas centrais de Teerão, com algumas paredes de edifícios muito bem pintadas em formas conviviais de arte urbana e as ruas bem vitalizadas ecologizadas por múltiplos canteiros de flores e neste mês de Abril, as mítica rosas persas desabrochando.
                                

                                     
Visitamos um conjunto palacial bastante vasto, denominado  Golestan, ou seja, Jardim das Rosas (que é também o título de uma das obras mais importantes de Saadi e que tenho trabalhado também), com dezassete palácios, em geral do séc. XVIII e XIX, e que albergam dentro de si sucessivos museus,2 adornados com milhares de jogos de pequeninos espelhos e vidros, cores e candelabros, ampliados pelas janelas de vidros coloridos, ou pelos espelhos em molduras multifacetadas. As salas sucedem-se aos salões, alguns com reconstituições da época gloriosa ou mais faustosa no séc. XIX, seja em figuras de tamanho natural, seja através das fotografias da época.
                              
Um belo trono de mármore, o Takht e Marmar, mandado construir com mestres pedreiros de Isfahan em 1800, por Fath’ Ali Shah Qajar (1772-1834), num terraço muito artístico, destaca-se, alinhado com um longo tanque de água que converge do amplo jardim para ele.
 Num dos palácios encontro uma gravura representando Nur Ali Shah, o mestre espiritual do séc. XVIII, de quem li alguns dos ensinamentos em Portugal e que mais de uma vez invoquei, e que durante esta peregrinação iraniana está a ser a fotografia de perfil no facebook, tirada de um tapete persa antigo. Está representado numa idade ainda muito jovem, belo, transparecendo a sua qualidade de testemunha (shahab) da Divindade, algo muito cultivado pelo misticismo iraniano. Os guardas do Museu fazem sinal que não se pode fotografar mas, por fim, pedindo a Marzieh que interceda por mim, recebo bastante feliz a autorização e tiro duas fotografias, embora não tenha registado o nome do gravador ou pintor.
                               
De destacar no exterior os painéis de azulejos multicoloridos e com influências ocidentais, já dos finais do séc. XVIII, alguns muito suaves pelos anjos, cisnes, mulheres e paisagens idílicas que apresentam.

 
  E os canais de água e lagos ou piscinas que refrescam o conjunto relativamente arborizado que está no meio dos palácios, destacando-se ainda nos sub-jardins algumas árvores com tijolos nos troncos que secaram em parte, de modo a dar-lhe mais resistência e algumas com frutos. Belas flores, nomeadamente rosas fragrantes, alegram vitalmente este espécie de jardim paraíso.
 
                            
Uma antiga fonte e tanque, dentro de uma sala aberta por dois arcos e guardada por dois gatos-leões em mármore, muito fresca e revestida ainda de belos azulejos florais, servir-nos-á para nos sentarmos e fazermos a istixara, isto é, a tiragem à sorte, oracular, abrindo-se o livro de poemas de Hafiz, lidos maravilhosamente por Marzieh e Afeteh. (3)
                          
Sou acolhido esta noite em casa de Marzieh, por estar bastante mais próxima da universidade onde vou proferir a primeira palestra e assim evitar a longa deslocação e eventuais demoras. Quando chegamos ao seu apartamento, uma sala grande, a cozinha ao lado e um quarto, a irmã está sentada no chão a cozer e a passar a roupa. Muito sensível, bela, esguia, parece uma gazela. Está a passar uma fase difícil com o fim do namoro, explica-me Marzieh, e tento animá-la. Como trouxe uns presentes de Portugal (cristais do Gerês, sabonetes e alimentos) e ofereci, ou por curiosidade ou cortesia, o pai desce do andar de cima, onde mora com a mulher e a filha mais nova, e vem conhecer-me e dialogar. Simpático, atento e sabendo ouvir, firme e com a sua sabedoria. É psiquiatra. Comida simples, lavagens e conversas interessantes pois está a par das várias correntes de psicologia mundiais e ao mesmo tempo conhece os mestres da poesia amorosa e da espiritualidade persa.
 1 - Que tanto pode apontar para a transmigração das almas para corpos animais, como para a qualidade da alma dos animais, muito próxima dos humanos. Mas parece-me que o sentido será o primeiro e que portanto devemos usar muito bem este corpo e alma durante a vida no mundo terreno físico para não termos de ir passar por purgatórios animais… Porque tive este sonho no Irão? Será pelo meu interesse pelos sonhos e o mundo espiritual, e por isso me deram esta amostra de conhecimento?

2 - O pequeno conjunto de três divisões abertas para o jardim chama-se Khalvat e Karimkhani. O regente Nasser-ol-Din Shah gostava muito deste local e acabou por erigir nele o seu túmulo. 
 
3 - Muito dos palácios, torres e dependências, que constituíam o centro da cidade antiga, e que vinham do séc. XVI-XVII (dinastia safavida), e do XVIII-XIX (a dinastia Qajar) foram infelizmente demolidos pelo Reza Shah, o último shah (rei) da dinastia Pahvali, para dar lugar a uma cidade mais moderna. Sobreviveram dezassete edifícios e destacam-se o Palácio dos Diamantes, com milhares de reflexos dos espelhinhos, e os museus de Etnologia, Zorouf, Tajgazari. Em Junho de 2013 este conjunto foi proclamado Património Mundial, pela Unesco. Gravei alguns vídeos valiosos, que estão no Youtube na play list Irão...

Quanto à Istixara tanto é feita pelo Alcorão de Mohammad, como pelos Diwans de poemas outros dois autores sagrados do Irão, Hafiz e Saadi,  mestres da religião do Espírito e do Amor, tão ainda lidos, recitados e amados por quase todas as almas iranianas. Concentração, oração invocativa, abrir a página e tentar intuir a mensagem que o texto pode suscitar em nosso caminho de luz, amor e harmonia!

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