
Não irei neste breve testemunho desenvolver os aspectos mais essenciais da sua vasta obra, em que tantos núcleos de sacralidade Portuguesa, e em ligação com a Europa e o Mundo, foram por ela bem aprofundados, com toda a sua poesia ou esperança, mas não podemos deixar de nomear o culto do Arcanjo Custódio de Portugal e do Anjo inspirador ou génio de cada um de nós, este bem equacionado por diferentes perspectivas e tradições, nelas se destacando as que recebeu do misticismo Iraniano através de Henry Corbin.
Em relação a Portugal, além do seu Arcanjo, cabe destacar Jesus Cristo, abençoador de Portugal pelo menos miticamente em Ourique, e Maria, sua mãe, para a Dalila em Fátima refundando a pátria, sendo sempre concebida como epifania da Deusa-Mãe e profundamente sentida e venerada, estudando e valorizando muito bem múltiplos aspectos e sinais da permanência do Feminino sagrado no espaço português, reflectindo tal em quase todos os seus livros mas neles se destacando o Da Serpente à Imaculada, Gil Vicente e a sua Época, A Ladainha de Setúbal.
O seu entendimento e visão do Divino estava todavia algo condicionado pelo Catolicismo Romano (embora sendo bem crítica da Inquisição) e era bastante ecuménico e universal, aceitando a perene revelação divina e espiritual em todos os tempos e povos (mencionando por exemplo um dos pioneiros de tal consciência Pico della Mirandola, entre nós o Pico Mirandola, citado por Garcia de Resende, na sua censurada Miscelânea), assumida ou referida sob diferentes nomes e formas, e vendo a concretização de tal no desabrochar alquímico ou iniciático do Espírito dentro de nós, a realizar-se pelas mais diversas vias mas das quais realçava a poética, a da saudade, a heróica, a da santidade, a mística, a sacrificial, a dos mistérios da morte e do renascimento, a da viagem e demanda, a do amor e diálogo...
Daí a sua arqueologia do artístico e do sagrado em Portugal, visando trazer ao de cima as linhas de forças do inconsciente colectivo, do mundo imaginal e da sua história, que os portugueses deveriam reconhecer, e logo admirar ou seguir, e tanto os santos e heróis como os amantes, profetas e poetas, tal como Afonso Henriques, a Rainha S. Isabel e D. Dinis, Pedro e Inês, Nuno Álvares Pereira, D. Leonor e Vasco da Gama, Camões, Sá de Miranda, o P. António Vieira, Antero e Pessoa.
E, claro, reconhecer, como já referimos, as deidades e divinizações indígenas e lusitanas, as quais foram verdadeiras teofanias sentidas ou intuídas em montanhas ou fontes, pedras ou árvores, no fundo, na natureza fecunda e espiritualmente habitada, a Mãe Terra sagrada e que Dalila, como duriense por ascendência, bem sabia sentir e admirar, tal como eu comprovei várias vezes em peregrinações, passeios e diálogos.
Convivi bastante com Dalila, desde os 25 anos, tendo chegado a ela via Agostinho da Silva, quando vivi em Guimarães. E, quando dava aulas de Agni Raja yoga e meditação no restaurante Suribachi no Porto, com regularidade estava com ela, bem com Sant’Anna Dionísio, com este em longos diálogos, por vezes tácitos ao modo pitagórico, e ainda com Mário Pinto, um bondoso espiritualista que editava uma revista policopiada, o Infante Mensageiro.
A nossa relação foi ainda intensificada pela particularidade de me ter cedido durante anos a possibilidade de passar umas semanas, em Agosto, quando eu fazia anos, no Douro, nas suas quintas. Lembro-me bem como, nas faldas do Marão sagrado, me estabeleci pela primeira vez numa casa antiga pequena sem água, nem electricidade, sem cama ou chave e onde até passavam raposas e doninhas. Foi no primeiro ano, talvez em teste iniciático, pois no segundo ano já me cedeu uma casinha mais alta ou perto do Marão, com chave e cama, mas sem electricidade e ainda a púcaros de água, pois a saborosa e calma fonte, junto a uma frondosa nogueira, não era longe.
De tais maravilhosos lugares silenciosos aproveitava para mergulhar interiormente em meditações que antecediam o renascimento do meu ciclo anual de aniversariante, ou para subir a serra do Marão até ao alto, onde celebrava as minhas litanias, por ela apreciadas quando lhas lia, pois era também uma cultora das montanhas sagradas e sobretudo do seu Marão. Por fim, cheguei a ficar na sua bela casa de Fontes, uma das vezes com Sant’Anna Dionísio e ela, para uma peregrinação às igrejas românicas do rio Douro, levados na carrinha do snr. Acácio e onde fomos a Cárquere, a S. João da Pesqueira, a S. Pedro de Balsemão. Belos momentos que bem agradeço...
Dalila sabia aliar à sua grande sensibilidade humana, poética e religiosa, e ao seu amor pela Pátria e pelo Divino, um sentido do dever de pater-mater família não só de generosa e cuidadosa hospitalidade como de pragmática administração das suas quintas e do seu vinho, com o seu caseiro, o snr. Acácio, a snra. Adelaide, a mulher, e os dois filhos, os quais, tratando de tudo manualmente, exigiam contudo com regularidade a sua presença humana e capacidade de decisão.
Também a sua pequena tebaida, numa tapada urbana portuense, tinha nela uma autêntica fada, muito empenhada nas flores, arbustos e árvores que rodeavam a casa, os quais frequentemente eram a primeira parte da visita que lhe fazíamos, sobretudo quando as belas japoneiras ou outras árvores emanavam cores e perfumes maravilhosos. De realçar a sua pequena estufa onde apurava, certamente com a ajuda de gnomos e fadas, belos espécimes de plantas, com os seus nomes que me ia presenteando os ouvidos e alma, nomeando-as, ou levando-me a acariciá-las e admirá-las: “ora veja, ora veja”.
Nesta casa apalaçada do final do séc. XIX, princípios do XX, que bem merecia tornar-se um núcleo museológico ou uma fundação na qual o seu legado fosse aprofundado e divulgado (o que não veio a suceder...), Dalila tinha ao seu dispor numerosas salas bem animadas pela Tradição Portuguesa em imagens e livros, tendo no rés de chão, à direita de quem entrava, a vasta sala da biblioteca, onde recebia os visitantes (em geral com um cãozinho, com quem sempre vivia afectiva e carinhosamente, a reclamar festas ou atenção) e onde cerca de três mil livros guarneciam o corpo de estantes instalado em duas paredes, enquanto que nas outras duas alternavam as janelas e cortinados brancos, que davam para o jardim frondoso, com as imagens e gravuras de família ou de predileção. Em alguns móveis iam-se depositando seja as fotografias dos amigos principais seja os objectos sagrados que lhe oferecíamos.
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| Dalila Pereira da Costa em diálogo com a Sandra (Melissa) Pinheiro na sua biblioteca. Fotografia tirada por mim, mas já surgiu na net truncada e sem referências |
Uma grande mesa ao centro continha os livros que recebera nos últimos tempos, ou que andava a ler, e outra mais pequena continha obras de referência, como as de Henry Corbin, Mircea Eliade, Louis Massignon, Rudolf Otto, etc. Era aqui que se travavam os diálogos maiores e por vezes mesmo meditações silenciosas que eu, numa linha de prática mais yoguica, propunha, algumas vezes anuindo, outras sugerindo ela antes alguma colação na sua copa, onde sempre se esmerava em oferecer ainda fruta para eu levar comigo...
Era no 1º andar que a Dalila tinha o seu pequeno escritório (que partilhava com mais reserva) e onde numa máquina de escrever antiga ia redigindo e corrigindo os seus livros, fiel à sua missão e inspiração, enriquecendo assim a Tradição cultural, mítica e espiritual Portuguesa, da qual é certamente no séc. XX uma das mais valiosas cultoras. Escritório pequenino, num dos quatro cantos da casa, era verdadeiramente uma torre de vigília, um altar da sua vocação onde ia tecendo a teia magnífica da sua obra amorosa.
Dos nossos diálogos, ora nestas duas salas, ora na salinha de jantar ou na varanda para as traseiras da casa, ou passeando no jardim, fica a sua suavidade e subtileza e uma grata amizade, que perdura no mundo espiritual e interior, e apontamentos nos diários, ou cartas, cartõezinhos e dedicatórias, além de algumas poucas fotografias e vídeos (já que ela era muito avessa a tal, na sua enorme discrição), mas é certamente nos seus livros que podemos ir buscar mais as deduções, intuições e esperanças e assim comungar com ela e o caminho e ensinamentos.
Ligada ou discípula do movimento portuense da Renascença Portuguesa, leitora dos grandes mestres espirituais, desde os místicos cristãos e iranianos (Shorawardi) aos mestres do séc. XX, tais como Ramana Maharishi, Aurobindo, Carl Gustav Jung, Henry Corbin, Louis Massigon, René Guenon, Jean Herbert, Mircea Eliade, Dalila Pereira da Costa foi sobretudo mais original na verbalização artística, poética e densa da sua visitação da Tradição Portuguesa, desde a arte à arqueologia, lendas, movimentos literários, ordens religiosas, místicos e espirituais, e fê-lo com grande coerência, intensidade e unidade, muito tingida pelo seu amor ao Princípio Feminino e à missão espiritual de Portugal, que sonhava ou intuía, e pela qual muito sofria, orava e ansiava.
Dalila tinha uma visão clara de que o essencial era o nosso aperfeiçoamento anímico e a ligação a Deus, ou a união em cada um de nós da transcendência e da imanência, do Céu e da Terra, da reminiscência e da presciência, e acreditava mesmo que os Portugueses, mais do que outros povos, por várias razões de confluência de forças e correntes, e pela sua capacidade de aceitação do outro e de harmonização dos três estados ou funções (da tradição indo-europeia, bem desenvolvidos por Dumézil, e das várias religiões), tinham e têm essa missão reintegradora e comunicadora, fraterna e ecumenicamente, como já o tinham debuxado e realizado a certo nível, segundo as linhas de força Franciscanas, Templárias e da Ordem de Cristo, na época dos Descobrimentos.
Para isto tínhamos, ou teremos, que reconquistar forças primordiais e despertar mesmo poderes ocultos, tal como o terceiro olho, a que chama mesmo o da sabedoria ou da visão arcaica, ou ainda o despertar da shakti (energia) interna, pelo que parte do seu labor de escritora foi dirigido para assinalar tal poder, forças e capacidades psico-espirituais no que ela compreendia ou intuía nas tradições portuguesas, nas raízes primordiais da grande Alma portuguesa, na Tradição Perene em Portugal, embora por vezes talvez exagerando na exegese das capacidades clarividentes dos antigos e no valor representativo de obras poéticas que nem sempre implicariam uma verdadeira realização interior. Também as comparações valorizadoras da Saudade como meio iluminativo, ou o providencialismo Divino sobre Portugal podem ter sido demasiado amplificadas...
Mas, significativamente, apesar do seu muito amor a Portugal e aos seus grandes seres e heróis, ao Catolicismo e aos seus místicos e poetas, Dalila estava bem ciente do lado excessivamente masculino, patriarcal, ou mesmo machista do judeo-cristianismo, o qual, aliado à “peçonha” da “cobiça e ambição sem freio”, fez falhar em parte a possível ou a potencial missão Portuguesa, pelo que valorizava muito o renascimento da potência anímica feminino, já vivenciada tão sagradamente pelas civilizações pré-indo-europeia e pré-cristãs e que deixara fundas raízes na alma Portuguesa, acessíveis seja em sonhos e visões, seja a partir da nossa apreciação e contemplação reconhecendo-a nas formas artísticas pré-históricas, tais como as mamoas, os vasos campaniformes, os ídolos placas, as espirais, o culto das serpente, os berrões ou porcas, as águas e da fecundidade.
Algo que fora bem vivenciado pelos Celtas, os Galaicos-Portugueses (cuja separação, para Dalila como para Agostinho da Silva, foi trágica), com os Druidas, as Sibilas, as Mouras encantadas, Bruxas e Meigas, e de cuja alma e poesia destilada se apurou e se pode apurar muito do Amor-Conhecimento pleno e reintegrador tanto da Natureza e da Mulher como de Deus e da Humanidade, que nos caracterizam no nosso melhor ser actual e potencial...
Podemos dizer então que é a hora, e com as celebrações e fecundações do ano do seu centenário em 2018, ou sempre que lermos este texto, de continuarmos as suas pisadas e voos, aprofundar veios e virtudes, aperfeiçoar as práticas espirituais, tais as que ela praticou: pouca dispersão, oração, escuta silenciosa e anamnese ou reminiscência, registo dos sonhos e tentarmos assim avançar mais na iniciação, na elevação das energias psíquica, tal a indiana shakti ou kundalini, na abertura do olho espiritual, na formação do corpo glorioso, para ela, o verdadeiro meio de transmissão interior e exterior…
Despertemos e vivamos cada vez mais na harmonia do céu e da terra, da justiça e da verdade, da transcendência e da imanência, na complementaridade harmoniosa dos contrários, na união com o Anjo e na ligação à Divindade, fluindo mais dinamicamente na vivência do Espírito Santo e na grande Alma Portuguesa, à qual a Dalila constantemente se deu, cultivou ou aspirava e onde agora se encontra mais supra-consciente e inspiradoramente, ajudando-nos, por exemplo, a ver mais claro, por entre a letra da sua obra ou a dispersão mundana, o Espírito que é vida e verdade, amor e liberdade e como poderemos fortificar tal em Portugal...
Este texto foi escrito (e não pus ainda as fotografias de sua casa) para a comemoração da sua desencarnação terrena para a revista Nova Águia do 2º semestre de 2012 e foi em 23/24 de Novembro de 2016 melhorado, tendo em conta a conferência a 25, no Espaço Salitre-Amaro, em Lisboa, sobre a Tradição Espiritual Portuguesa e alguns dos seus elos: Bocage, Antero, Pessoa, Agostinho e Dalila. E a 27-II-2017 foi aperfeiçoado tendo em conta a conferência a proferir no dia 3 de Março no mesmo no Espaço Salitre-Amaro, em Lisboa, sobre a Dalila e onde cingi os veios principais femininos da sua obra. E foi ainda relida e melhorada no dia 2-III-2018, sexto aniversário da sua passagem para o mundo espiritual, tendo em conta a celebração do seu centenário do nascimento a ser comemorado de 4 a 6 num Congresso no Porto, e num ciclo de conferências ao longo do ano, também nas margens do Douro, e nos quais participarei. Seguem-se as imagens que os anunciam, com muita gente a trabalhar luminosamente a Dalila e as suas aberturas e aproximações à Realidade...

Como sabemos e já lemos, a
valorização da mitologia, da poesia, da filosofia e da mística como
vias de salvação ou de iniciação foi uma das suas ideias forças ou
vectorizantes da sua vida e obra e num dos seus talvez melhores livros, A Nau e o
Graal, citemos, para concluir esta invocação da Dalila Pereira da Costa, uma sua boa transmissão da metodologia do conhecimento, como acto total de um ser total: «Em
alma, corpo e espírito. Onde a realidade será conhecida partilhadamente
pelo pensamento e sentimento. Onde o coração é o órgão eminente do
conhecimento. Em participação com a Realidade»...
Muitas saudações luminosas e de amor para a Dalila
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| De Domenico Ghirlandaio: As Sibilas, ou da vidência da alma feminina, espiritual. |