sábado, 21 de outubro de 2023

Sete sonetos camoneanos de Florência de Morais, poetisa da revista de arte e crítica "Ave-Azul", de Viseu, e das tertúlias de Nova Goa.

Diana, luz na noite, inspiração na poesia, qual Florência de Morais...

      O jornal Heraldo, de Pangim, noticiando em 1926 a morte, já em Lisboa, de Higino da Costa Paulino (nascido a 27/10/1868): «Homem aprimorado, artista de raça, foi entre nós sempre valioso o seu concurso em todas as festas de arte. Poeta e comediógrafo, era um ensaiador admirável (...)
     Que encantadoras noites se passavam em casa de Costa Paulino, onde a poetisa Florência de Morais, Visconde de Castelões e Fernando Leal se juntavam a "virtuoses" como a snra. D. Helena da Cunha Pereira e outras damas e cavalheiros, pondo em tudo uma tal nota de arte que eram noites de sublime prazer intelectual!
»...

Higino da Costa Paulino, um anfitrião de tertúlias literárias em Nova Goa.

Ora se Higino Costa Paulino e Fernando Leal (grande amigo de Antero de Quental) têm sido divulgados por mim e o 1º Visconde [Álvaro] de Castelões é bastante conhecido, notável engenheiro portuense (onde nasceu em 1859 e morreu em1953), tendo estado de 1891 a 1899 na Índia portuguesa, como director do caminho de ferro de Mormugão, e como poeta, já de Florência de Morais  a informação conhecida  é muito escassa: editou dois livros: Vagas (Versos Camoneanos), Viseu, na Tipografia da Folha, em 1901, que adquirimos recentemente ao amigo Miguel Carneiro, da livraria Moreira da Costa, no Porto; e Vozes da Índia, impresso em Nova Goa, pela Casa Luso-Francesa, em 1907. E prefaciou ainda um de  Anna Ayala e Adolfo Costa, de Mãos Dadas, com a mesma data de 1907, em Nova Goa. Das colaborações literárias sabemos apenas na revista de arte e critica, Ave-Azul, publicada entre 1899 e 1900  em Viseu (e dela ainda esperamos transcrever algo),  dirigida pelo inspirado e dinâmico casal Carlos de Lemos e Beatriz Pereira, precisamente a amiga sábia (que na revista, escreve um poema Psyche sob uma epígrafe da tradição Órfica) a quem dedica, com humildade, certamente um traço valioso de Florência, Vagas (Versos Camoneanos): «À minha carinhosa amiga D. Beatriz Pinheiro. Modesta homenagem à sua bondade e ao seu talento -.»

Referências a Florência de Morais há ainda  de um dos filhos de Higino da Costa Paulino e de Maria Helena Noronha, e sobrinho de Fernando Leal, o capitão António Noronha,  no seu livro Relembrando Goa: «Morávamos então numa velha e grande casa apalaçada do engenheiro Assa Castelo Branco, que foi casa solarenga, nos antigos tempos, dos Távoras, e onde hoje, dizem, foi construído o belo Hotel Mandóvi. Deram-se lá belas festas, «serões» e bailes que marcaram na sociedade de Goa desse tempo. Recitava-se, cantava-se, tocava-se e bailava-se também animadamente. Recitavam-se versos dos poetas Osório de Castro, Álvaro de Castelões, Fernando Leal e da poetisa Florência de Morais. E também do meu pai, que «dizia» maravilhosamente».  

E, mais à frente no livro,  sentindo a nostalgia em Lisboa desses tempos do fim da presença cultural e convivial portuguesa na Índia, refere-a de novo: «E outros pensamentos surgiam agora como dobres a finados.... como aqueles queixumes, ditos em versos por homens bons e sábios da portuguesíssima têmpera que eu muito admirava e que se reuniam de quando em quando em casa de meus pais, em amenos serões, tais como o velho Barão de Combarjua, tão acertado no seu dizer, o literato Visconde de Bucelas, o escritor e historiador Frederico de Ayala, os poetas Fernando Leal e Alberto Osório de Castro, Dr. Fragoso, tão original na suas teorias e meu pai [Higino da Costa Paulino]... e mais tarde, o romântico e célebre Visconde de Castelões, Álvaro de Castelões, que provocou o falado "Ultimato", a poetisa Florência de Morais... e neles, nesses versos, traduziram a mágoa que lhes ia na alma por todo aquele abandono para o qual não viam remédio, nem esperança...».

É pouco para reconstruirmos um pouco que seja da personalidade e da criatividade de Florência de Morais. Contudo, na Ave-Azul, nº 5, uma revista literária e de crítica rica, abrangente, muito bem dirigida e alimentada por dois poetas e escritores de valor, Carlos de Lemos e Beatriz Pinheiro, com boa colaboração: os lusófilos em Itália e na Europa,  Antero de Quental (póstumo, mas até porque Carlos de Lemos era um anteriano, pois  recebera uma bela e profunda carta de Antero em Fevereiro de 1888 elogiando a sua poesia e iniciando-a na missão de poeta), Joaquim de Araújo, Eugénio de Castro, Fausto Guedes Teixeira,  Camilo Pessanha, João Lúcio, Lopes Vieira,  Philéas Lebesgue, Maria Veleda,  Alice Pestana, Magalhães Lima, Adolfo e Severo Severo, etc, etc, encontramos mais dados.

De facto, na tão valiosa revista Ave-Azul, muito apoiante da Liga da Paz, e do movimento de emancipação da Mulher (com críticas fortes ao Padre Sena de Freitas e mesmo a Maria Amália Vaz de Carvalho), conseguimos descobrir o seu apelido completo Florência Pereira de Morais, pois Beatriz Pinheiro anuncia e partilha no nº5 as primeiras colaborações de Amélia Jany e de Florência de Morais, desta um poema Vesperal, escrito em Vila Real na noite de Natal de 1898 e duma grande riqueza de cores, imagens e sensações, provavelmente grminação de algum pôr do sol que avistaria de Vila Real onde morava.

Fotografia do poema Vesperal, obtida da revista Ave-Azul digitalizada na Hemeroteca.

Também na 2ª série, nº 3, de Março de 1900, outro belo poema, invocador dos poderes da Lua, intitulado Vigília, pleno da sua empatia com a Natureza, grande amor e compaixão. E no nº 10-11, um muito extenso poema Breviário d'Amor, de Maio de 1900, como os outros escrito em Vila Real e com a mesma tónica de grande espiritualidade e amor, embora neste os versos reflictam já um amor intenso recíproco e em esperanças luminosas desabrochando. Oiçamo-la, apenas nas duas quadras iniciais,  cantar tão belamente a esperança do Amor, num poema que mereceria ser todo transcrito por alma devota:

«A Esperança do porvir é um lar novo
Onde dorme a sorrir a Felicidade;
Donde se avista o mundo todo em globo
aborto em santa espiritualidade.
 
É este o sonho meu, o teu, o nosso;
das nossas almas a elevada esperança;
onde fantasia teu coração novo,
e o meu de fantasiar se não cansa.»

Para concluir, no nº 12 da Ave-Azul, quando finda a magnífica aventura editorial, Carlos Lemos e Beatriz Pinheiro elogiam e agradecem a plêiade de colaboradores, destacam as pugnas pelos ideais da paz, da emancipação de mulher e da fraternidade e espiritualidade verdadeiras, não se esquecem de nomeá-la: «Diminuta, como era natural num país onde as damas por via de regra não se entregam ao cultivo de letras, a colaboração feminina, diminuta muito embora, foi honrosíssima, e para termos ensejo de a declarar, lhe guardamos para o fim a referência. Abrilhantaram as páginas na nossa revista: - em prosa: D. Ana de Castro Osório e a Dra. Sofia da Silva - em verso: D. Teresa Luso e D. Florência de Morais; - em prosa e verso: Maria Veleda» e, claro, Beatriz Pinheiro, com dezenas e dezenas de páginas valiosas.

Que o seu nome completo era Florência Júlia descobrimos pelas genealogias online e que foi casada com Augusto Pereira de Morais, 1º barão de Gouvinhas, certamente o inspirador ou co-autor do Breviário d'Amor. E através dum seu sobrinho neto, José Alberto Morais de Almeida, que ainda a conheceu, que ela era filha do Visconde de Morais e morrera entre 1949 e 1950. E que  recebia  inspirações de noite,  transcrevendo-as então à luz do candeeiro de azeite para que não se esfumassem. Também a notável escritora duriense Dalila Pereira da Costa me confessou fazer algo do género na calada noite, sob diminuta luz pois era onírica e de planos subtis a inspiração.

 Resta-nos agora lê-la no seu livro Vagas (Versos Camoneanos), onde nos damos conta que lera e meditara bem Camões mas também muito outros poetas, nem que fosse só pela valiosa revista Ave-Azul  notando-se na sua personalidade amorosa e compassiva o idealismo tanto perene como o contemporâneo de Antero de Quental  e a luta contra o Ultimato do imperialismo inglês e o desalento disso gerado, em Antero de Quental, por exemplo, talvez uma das causas do seu suicídio já que muito se empenhara na malograda Liga Patriótica do Norte.  No que  Florência Pereira de Morais nos confessa e poetiza, provavelmente nos seus vinte e cinco anos, sentimos a sua alma algo sofrida em ressonância com Portugal, consciente da dificuldade da  plenitudes mas firme no amor da Pátria-Mátria e do Bem e aspirando a mais Luz e Amor, clamando mesmo pela Iniciação da pomba ou do Espírito santo.
Transcrevemos sete sonetos dos vinte cinco que deu então à luz em Vagas e que passados mais de cem anos voltam merecidamente a permitir o singramento dos fiéis do Amor da Tradição Espiritual Portugal a que ela pertenceu e que em Camões teve um dos seus maiores mestres, e
com quem Florência Júlia se inspirou e se iniciou.
Oiçamo-la com a alma bem atenta e o graal do coração receptivo, pois a correnteza iniciática da poesia que se derrama ondulantemente, é um elo, um farol da Tradição a chamar-nos, a impulsionar-nos:
                                                      
                                                      I
Venho pedir à Alma sublimada
e grande e inatingível do Poeta,
na humilhação de mísera violeta
dum cedro olhando a coma, fascinada;
 
ou antes como areia sepultada
do mais profundo escolho em funda greta,
aspirando subir à onda inquieta
do mar na vastidão desenrolada;
 
a esmola dum suspiro, dum suave
adejo místico dessa áurea ave
da Inspiração, a Pomba iniciadora...
 
Porque eu sou pobrezinha; em desajuda
do Céu tenho vivido, em vida ruda,
sem bafejo da Vida-Criadora. 
 
III 
Tiveste um peito vasto onde, acendrados,
viveram sentimentos poderosos;
cantando ou batalhando, jubilosos;
por meigo Amor e pela Pátria ousados. 
 
Nas lutas que travaram enrijados
e mais no seu cuidado cuidadosos,
ao coração leal, mais fervorosos
se viam dia a dia acorrentados.
 
À pátria deste um escudo burilado
pelo fogo da Fé, com os primores
dum sentimento altivo, acrisolado.
 
Fundiste o oiro da alma e os fulgores
da tua mocidade no legado,
mas criando leais ressurgidores! 
 
IV
Sem ti, sem a tua obra alevantada,
- de sangue, ao fim da luta, tão escassa,
sucumbiria a lusitana raça:
a Pátria morreria escravizada.

Mas soava mui alta e mui ousada
a tua voz que as almas despedaça...
No peito onde vibrava, uma couraça
lhe cingia, p'ra luta receiada.

Em cada peito uma muralha altiva
fizeste levantar, destemerosa,
e renascer a antiga fé mais viva.

D'aí o vivo ardor, a nova idade,
enrijecendo a gente victoriosa
para exigir da Pátria a liberdade.
 
XVII
 Subir até à radical Verdade
Até ao nível da suprema Razão;
achar os fundamentos da Paixão:
- impossível à pobre Humanidade!

Mas entretanto, quem não lutar não há-de
em busca do ideal da perfeição?
Embora não se chegue à conclusão,
faz-se um dever dedicar-lhe a vontade.

Cada passo que atrás nos fôr ficando,
na selva escura do desconhecido,
é um facho de luz que vai entrando:

Um abismo em vida convertido:
E, do Futuro, os nautas esperando,
mais um farol em saudação erguido.

XXII
 Eu queria vibrar electrizada
da fantasia que arrebata os poetas,
embora fosse como as borboletas
pela chama cair estonteada.

Mas antes embeber-me fascinada
nas vibrações dos sons, de dor repletas...
Palpar... sofrer essas tensões inquietas
que vão à Dor, terna ou alucinada.

Descair no desmaio da ternura
em êxtase aéreo, elysial,
ou subir o calvário da tortura

escrava dum martírio sem igual,
para conseguir, se muita dor depura,
extremar, distinguir o bem do mal.
 
Dois dos sonetos não transcritos.

XXIII
Se com todo o calor que n'alma assiste,
na ânsia duma chama que a fascina,
bastasse a inaugurar uma doutrina
que fosse a remissão desta hora triste;

daria vida quanta em mim existe
latejando no cérebro - que o domina:
- ilusão levantada como ondina
que, enquanto a espuma dura, só subsiste.

Mas que onda efervescente - em almas fortes,
derrubando inimigas cohortes
na luta de atingir o seu ideal,

galgando pelos espaços do infinito,
mostra que, o que para muitos fora um mytho,
é na colheita o fruto mais real.

XXV
A ti, Camões, à tua Pátria amada
que minha é também e amo tanto,
oferta à minha alma o pobre canto
duma voz frouxa e pobre, mas ousada.

Se à minha invocação não for negada
da Graça-Iniciadora o meigo encanto,
de sob o gasalhado do meu manto
soará a fraca voz aviventada.

Seja a tua memória o meu auxílio
e a doce inspiradora, a mim sustendo,
dos páramos [alturas] da Luz, ao meu exílio,
 
benigna a remissão à culpa breve
de vir, desajudada, - «cometendo
o duvidoso mar num lenho leve».

Saibamos ler e meditar estes sonetos e neles nos religarmos «à grã-corrente» e, ainda que no «duvidoso mar num lenho leve», preservarmos firmes no Caminho. E saudemos particularmente os tertulianos na Índia, os participantes na tão valiosa quão esquecida (merecedora de quantos estudos e  congressos?) revista de Viseu Ave-Azul e especialmente Florência de Morais. Lux, Amor!
Delicada vinheta das Vagas do oceano Divino, florescendo na alma de Florência de Morais, de quem desejaríamos saber mais, nomeadamente da sua brilhante mas misteriosa passagem pela "Índia portuguesa".

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