O verbo considerare provem etimologicamente de cum e sidus, significando este último vocábulo as estrelas, as constelações, o céu. Encaminha-nos ou projecta-nos assim para uma das formas mais naturais de ligação à existência Divina: através da contemplação da noite estrelada, com as suas cintilantes e coloridas estrelas e planetas, infinitamente harmoniosa e até musicalmente, como nos fala a expressão «música das esferas» que Pitágoras teria ouvido e ensinado, e que foi também referida por Virgílio entre outros vates, filósofos e cientistas.
Na realidade, ao considerarmos a sublimidade ou a grandeza do Cosmos, e do seu Logos, ou Espírito imanente, emanado da Divindade Primordial, podemos elevar-nos na sintonização com tais níveis espirituais, gerando-se um estado expandido de consciência, de certo modo comprovado hoje até cientificamente nos efeitos da desactivação das zonas do córtex direito, as mais ligadas ao pensamento normal analítico, e na acalmia da frequência de ondas cerebrais, quando se entra em contemplação, oração, meditação e adoração.
Erasmo poderá estar a descrever mesmo a experiência de orar com as mãos, os olhos e a consciência virados para o céu e o espaço infinito e então um dito de Horácio, quase referente ao centro energético do cima da cabeça, será apropriado: feriam sidera vertice, “alcançar com o cimo da cabeça o céu”. Mas poderia mais simplesmente estar a rezar o "venha a nós o Teu reino" no interior do seu aposento, fechada a porta, em meditação, apenas com a visão espiritual a abrir-se celestialmente.
No seu livro Da Concórdia amável da Igreja, escreverá ainda nesta linha de contemplação das alturas: «o primeiro auxílio de Deus, isto é, o primeiro grau de beatitude, é que elevemos os olhos para os montes», tanto terrenos como da eternidade e mundo celestial, cujo cume para alguns mais clarividentes é o mistério do Amor.
Também nos mestres da literatura latina Virgílio e Cícero, tão apreciados por Erasmo, surge este mesmo verbo sidere com os sentidos de debruçar-se, deter-se e fixar-se, três expressões fluindo até como que num processo de oração interiorizante que nos leva a deixar pousar ou decantarem-se os pensamentos e sentirmos mais conscientemente a subtil e íntima presença espiritual ou divina e a deixarmos nessa fixação ou estabilização mental o espírito brilhar mais luminosamente para nós.
Petrarca, recebendo a coroa da inspiração poética da sua musa Laura. |
Petrarca (1304-1374), «o primeiro dos homens modernos» (segundo Michelet e Pierre de Nolhac), o iniciador do Humanismo, ao ressuscitar o estudo e a valorização da cultura e literatura greco-latina, no seu De Ignorantia valoriza muito os filósofos antigos e diz que nos livros de Cícero «frequentemente uma pessoa acredita que está a ouvir mais um apóstolo que um filósofo pagão», e transcreve uma sua interrogação, da talvez melhor obra ciceroniana, e na linha de expansão acima exposta: «que pode haver de mais claro e distinto, para quem considera o céu e contempla as coisas celestes, que a existência de um Deus, de uma inteligência superior para as dirigir?» (De Natura Deorum, II, 6).
Quanto à sublimitate Dei, a sublimidade de Deus, o que não poderíamos dizer ou anotar, ainda que sempre insuficientemente tal a transcendência e inefabilidade divina em relação a nós, pese a sua subtil imanência?
Evoquemos apenas o tratado (I séc. d.C.) atribuído a um Longino, Do Sublime, durante séculos o manual da beleza do pensamento e do discurso, da ordem retórica da composição, no qual a sublimidade é «o eco de uma mente nobre», capaz de descrever ou de elevar as pessoas ao transcendente e ao divino. Todavia, investiguemos ainda as raízes etimológicas do sublime, escolhida como causadora do arrebatamento por Erasmo, e que ressoa ascendentemente na palavra sublimação, pois o verbo sublimo, are, significa elevar, exaltar, subir, glorificar. Encontramo-nos assim numa aproximação às alturas, ao mundo espiritual ou para alguns à presença espiritual omnipresente, nomeadamente no espaço e no céu e que pode ser sentida num arrebatamento, em beatitude e transfiguração dada a grandeza e sublimidade inefável da presencialidade Divina, que é ainda misteriosa e subtilmente imanente em nós...
Quanto à elevação ou arrebatamento, que pode suceder a quem contempla ou medita com mais intensidade a maravilhosa sublimidade divina, reafirmemos a importância das investigações das neurociências que, indo bem mais além dos registos fisiológicos (tal como a diminuição do ritmo cardíaco e respiratório, a pressão arterial, o stress, etc.), descodificam as inter-relações cerebrais e neuronais implicadas em tais estados de consciência concentrada ou expandida, em certos casos místicos, observando dessa harmonização que já mencionamos de coerências, padrões e ritmos cerebrais, um primeiro resultado e que, nos nossos dias tão manipulados por atemorizações mediáticas, convém termos o mais presente, vibrante e amado possível: a suave paz, a pax profunda, e que no ensinamento erasmiano resulta da contemplação do céu ora azul com as suas miríades de partículas de prana respiráveis profundamente, ora nocturno repleto de luminárias, mundos distantes e os comunicativos meteoros cadentes, e que nos arranca de nós e expande para a sublimidade divina.
Psicologicamente, o rapto, arrebatamento ou êxtase (que será ainda “instase” no seu aspecto de interiorização) pode ser compreendido como consequência da entrega, da veemência amorosa ou do entusiasmo psico-energético da pessoa, e que intensificam o vibrar anímico ascendente, a qual pode causar mesmo, para além da sensação da elevação, a saída do corpo psico-espiritual do invólucro físico, para não falarmos dos casos de levitação que por exemplo S. Teresa de Ávila, S. Pedro de Alcântara e S. José Cupertino experimentaram, e que têm raízes nas escrituras, tal em S. Paulo e S. Filipe.
S. José Cupertino, agraciado com êxtases e levitações... |
Por outro lado, também se poderá explicar pela unificação energética e consciencial alcançada, que gera um extravasar, ou ir para além, dos limites corporais ou mesmo das normais percepções mentais, num estado expandido de consciência, participante de capacidades do misterioso corpo espiritual que nos habita e constitui, e que o canto, mantra ou hino que dedilharmos também ajuda a autonomizar-nos face a tanta agitação de informação desinformante e ora atractiva ora atemorizante.
Um bom latinista e estudioso dos humanistas, M. A. Screech, na sua excelente obra Ecstasy and the Praise of Folly (acerca do Elogio da Loucura, de Erasmo), confessando as limitações de não ter tido qualquer experiência extática, interroga-se lúcida e eruditamente sobre o êxtase (apresentando o sentido clássico grego de ekstasis, o de deslocação ou o deitar abaixo de algo da sua posição normal), e a loucura divina descrita por Platão (furor, mania), a partir de uma extensa revisitação do Novo Testamento, da patrística e da literatura clássica religiosa à luz das referências de Erasmo, abordando depois muitas dessas passagens onde se encontram tais expressões, conceitos e experiências, e embora se possa discordar de algumas das traduções apresentadas, e consequentes induções para provar as suas teses, é ainda assim provavelmente a melhor hermenêutica do Elogio da Loucura, e dos meios de se realizar a iluminação, beatitude, êxtase ou o rapto das faculdades psíquicas normais (no que é considerado comummente por loucura), na tradição greco-romana e no Cristianismo (tal como o episódio dos três discípulos na Transfiguração, o rapto ao 3º céu de S. Paulo), e particularmente nas obras, polémicas e correspondência de Erasmo.
Poderemos, para finalizar, caracterizar o tipo
mais acessível de elevação por parte da persona acima do ego e do indivíduo, certamente experienciado
por Erasmo, como a admiração ou estupefacção perante a potência do
espírito ou a imensidade da beleza cósmica e divina, a qual gera uma beatitude ou bem-aventurança que esbate as fronteiras separatistas e harmoniza.
Este estado de expansivo de amor e de consciência integradora e unificadora, psicoformado a partir da consideração
mais prolongada e meditativa da sublimidade e grandeza de Deus, apoiada numa vida harmoniosa e em orações e cantos, contemplações e meditações, e que Erasmo conheceu e recomenda, é certamente um dos mais elevados que nos é acessível no nosso Caminho para a sublimidade Divina por entre tanto caos e violência humana ou, melhor, infrahumana.
Saibamos pois vislumbrar, sentir e realizar mais a sublimidade da Divindade e da sua infinita energia, nomeadamente pela contemplação do céu infinito e brilhante, interior e exterior, e assim sairmos das nossas limitações psíquicas e conscienciais e deixar-nos arrebatar pela unidade subtil e sublime espiritual e divina que nos funda e desafia.
De Nicholas Roerich. |
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