Filho do médico do regente de Florença, Cosmo de Médices, foi também médico dele, mas entrou na Religião como clérigo. Aos 23 anos, em 1459, tornou-se discípulo do notável John Argyropoulos que ensinava então grego em Florença. A sua capacidade de aprender e aprofundar os conhecimentos era muito boa.
Ficino, Pico e Poliziano. |
Ao juntar a melhor filosofia pagã e teologia cristã, bem como ao efectuar estudos médicos, e ao ser um místico, simbolista e ocultista, Marsilio Ficino tornou-se uma das pessoas com melhor realização espiritual da Divindade e da espiritualidade humana, nomeadamente através do seu conhecimento psico-somático e da sua constante religação à Unidade Divina, e pode assim tornar-se um mestre tanto por livros, como por presença para muitos amigos que hauriram a sua sabedoria ao vivo ou por carta. Dos livros há que destacar sua obra principal, a Theologia Platonica; de immortalite animorum, escrita em 1469 e 1474, e publicada em 1482, e de que há hoje boas traduções francesa e inglesa. Nela tenta demonstrar ou provar que a alma intelectiva é imortal e indivisível, e que chegamos a ela pelo desenvolvimento das virtudes especulativas, as quais se baseiam no intelecto e sua claridade, e das virtudes morais (tais a prudência, a justiça, a coragem e a temperança) assentes na vontade e sua utilização-controle do apetite-desejo pela sintonização com a razão ou ainda pela atração para o Bem, o qual é em si e na sua fonte a Divindade...
Há algumas biografias boas, tanto modernas, como a
de Raymond Marcel, Paris, 1958, ou antigas como a de Giovanni de Corsi (1472-1547), publicada em 1560. Ora Giovani Corsi
foi discípulo de Francisco Cattani da Diaceto (1466-1522), o qual foi
por sua vez um discípulo de Ficino, tendo em relação a ele
aflorado um dos aspectos mais sagrados do magistério platónico e
neo-platónico, e no fundo perene, a possibilidade de osmose ou mesmo plena absorção
anímica do mestre ou guia, o qual faz de nosso anjo,
já que este, estando nos planos espirituais, não é tão facilmente visto, acolhido ou
escutado. Disse-o no prefácio do seu De Pulchro: "Tudo o que nós
somos, se somos alguma coisa, devemo-lo a Ficino. Marsilio, portanto,
como nosso daimon ou génio familiar, fala sobre o belo através da nossa boca, o
que é conforme à Academia". E que deseja portanto "revelar de um modo
apropriado tudo o que alma fecunda de Ficino fizera germinar na sua".
Outro
traço característico da época que Giovanni Corsi nos relata é que Marsilio Ficino
reunia-se e dialogava diariamente com um grupo de amigos, quais discípulos, tais como
Giovanni Canaci, B. Ricasolani e B. Rucelais, além dos de outros grupos e os da Academia Platónica de Careggi, a qual mesmo, apesar do extraordinário valor dos seus complatonici, como Lorenzo de Medici, Angelo Poliziano, Cristoforo Landino, Pico della Mirandola, Francisco Bandino, Giovanni Cavalcanti, fora atacada por alguns mais invejosos ou irónicos, tal Luigi Pulci.
Anos mais tarde Corsi lamentar-se-á da queda da Florença considerando-a que, graças principalmente a Marsilio Ficino, ela fora como uma nova Atenas.
Ora quando Marsilio Ficino morre aos 66 anos, de cólicas, como afirma Corsi, deixa os
seus livros, cartas (por ele já preparadas para a edição desde 1470) e a propriedade de Careggi ao seu afilhado e filho do seu
irmão Querubino, e será ele o editor das cartas, em 1495, as quais, tais como as nossas de Antero de Quental, se tornarão a principal
fonte para o vermos, sentirmos, acolhermos enquanto pessoa genial dialogante e íntima, convivial, ensinante e exaltante, mas também sofrendo e transparecendo as vicissitudes da vida.
Busto de Marsilio Ficino, por Andreia Ferruci, de 1521, na catedral de S. Maria del Fiore, Florença, |
Nessa correspondência como mestre espiritual Marsilio Ficino derrama muito amor e sabedoria para a maioria dos seus correspondentes, numa maior escala amatória que, por exemplo, Erasmo, que contudo escreveu mais cartas, cerca de 2.000 em várias usando as mesmas expressões de amor empregadas por Ficino para os seus amigos e que para algumas pessoas seriam estranhas, mas que eram naturais em almas de grande amor e sabedoria...
Temos ao longo dos anos escrito e publicado sobre Marsilio Ficino e a sua vida e obra, com tradução de excertos e cartas. Nestas comemorações do seus 590 anos de nascimento, partilharemos alguns ensinamentos espirituais a partir da sua correspondência epistolar em latim, conforme a edição parisiense de 1641, e a tradução inglesa de 1988:
I - Sobre o valor do silêncio, da concentração e interiorização das energias, tão necessários nos tempos actuais dos telemóveis e das redes sociais, dos encontros e congressos, dirá numa carta a Antonio Hyuano, aludindo ao carácter ígneo do amor e da palavra eficaz :
«Aprendi a dizer com brevidade, mas não aprendi a amar brevemente; quanto o nosso sermo (verbo-palavra) é apertado, tanto mais o afecto é amplo. Quanto a chama é menos espargida, frequentemente preserva-se mais ardentemente».
II - Numa carta a Giovanni Cavalcanti aludirá à necessidade de sermos coerentes, íntegros e não fingidos, hipócritas, superficiais:
«Nunca procuro persuadir os outros com o que não estou eu próprio já antes persuadido. É dever do sacerdote (ou pessoa religiosa) nada dizer que não seja considerado como conduzindo à piedade. De igual modo a profissão do filósofo é agir tal e qual diz, falar como pensa e sentir-compreender tanto o sentir como a mente.»
III - Acerca da ligação à Divindade, e à estabilidade na Unidade, escreveu com grande sabedoria na carta intitulada Nullum in malis refugium est, nisi ad summum bonum, Nenhum refugio há nos males a não ser o sumo bem.
«Talvez seja útil, se queremos alcançar o que procuramos, fugirmos para o que nunca foge para parte alguma, que está presente em toda a parte em cada coisa singular? Então que não nos movamos para toda a parte, nem sejamos distraídos por muitas coisas, mas permaneçamos quanto possamos na Unidade, já que nos encontramos na unidade eterna e na eternidade una, não através do movimento e da multiplicidade, mas por estarmos parados e em união. (...)
Se Deus é o próprio bem, amemos a sua luz do bem, e seu amor da luz do bem, ó amigos; peço-vos que amemos antes de tudo o mais o bem luminoso que é tanto luz como benignidade. Pois então não amaremos apenas o nosso Deus, pois fruiremos amando-o, pois Deus em si mesmo é Amor, o amor em si é Deus.
Portanto primeiro e antes que tudo vamos preservar nele, sem cujo calor nada se mantém quente. Para que possamos refulgir na sua benigna luz, sem cujo esplendor nada brilha.
Vinde, amigos. Assentemos no que nunca retrocede e permaneçamos. Sirvamos o Senhor único de todos, que não serve ninguém, para que não sirvamos o que quer que seja, mas tudo dominemos. Fruamos, gozemos nele se podermos, e nós podemos se nós queremos, pois através da vontade há o fruir e o fruir está na vontade. Deliciemo-nos, ou alegremo-nos, digo eu, naquilo só que enche o infinito; só então seremos completamente enchidos, só então poderemos alegrar-nos ou rejubilarmos completa e verdadeiramente. Pois onde o bem abunda, sem defeito, aí a delícia é experimentada sem dor, e em toda a parte sente-se a alegria até à sua plenitude».
[Ainda acrescentarei um pouco.... Acrescentos foram mais no interior do texto]
De Bô Yin Râ. Lux in tenebris... |
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