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| Diana, luz na noite, inspiração na poesia, qual Florência de Morais... |
O jornal Heraldo,
de Pangim, noticiando em 1926 a morte, já em Lisboa, de Higino
da Costa Paulino (nascido a 27/10/1868): «Homem aprimorado, artista de
raça, foi entre nós sempre valioso o seu concurso em todas as festas de
arte. Poeta e comediógrafo, era um ensaiador admirável (...)
Que
encantadoras noites se passavam em casa de Costa Paulino, onde a
poetisa Florência de Morais, Visconde de Castelões e Fernando Leal se
juntavam a "virtuoses" como a snra. D. Helena da Cunha Pereira e outras
damas e cavalheiros, pondo em tudo uma tal nota de arte que eram noites
de sublime prazer intelectual!»...
Higino da Costa Paulino, anfitrião e dinamizador das tertúlias literárias em Nova Goa.
Ora se Higino Costa Paulino e Fernando Leal (grande amigo de Antero de Quental) têm sido divulgados por mim e o 1º Visconde [Álvaro] de Castelões é bastante conhecido, notável engenheiro portuense (onde nasceu em 1859 e morreu em1953), tendo estado de 1891 a 1899 na Índia portuguesa, como director do caminho de ferro de Mormugão, e como poeta, já de Florência de Morais a informação conhecida é muito escassa: editou dois livros: Vagas (Versos Camoneanos), Viseu, na Tipografia da Folha, em 1901, que adquirimos recentemente ao amigo Miguel Carneiro, da livraria Moreira da Costa, no Porto; e Vozes da Índia, impresso em Nova Goa, pela Casa Luso-Francesa, em 1907. E prefaciou ainda um de Anna Ayala e Adolfo Costa, De Mãos Dadas, com a mesma data de 1907, em Nova Goa. Das colaborações literárias sabemos apenas na revista de arte e critica, Ave-Azul, publicada entre 1899 e 1900 em Viseu (e dela ainda esperamos transcrever algo), dirigida pelo inspirado e dinâmico casal Carlos de Lemos e Beatriz Pereira, precisamente a amiga sábia (que na revista, escreve um poema Psyche sob uma epígrafe da tradição Órfica) a quem dedica, com humildade, certamente um traço valioso de Florência, Vagas (Versos Camoneanos): «À minha carinhosa amiga D. Beatriz Pinheiro. Modesta homenagem à sua bondade e ao seu talento -.»
Referências a Florência de Morais há ainda de um
dos filhos de Higino da Costa Paulino e de Maria Helena Noronha, o capitão António Noronha, no seu
livro Relembrando Goa: «Morávamos então numa velha e grande casa
apalaçada do engenheiro Assa Castelo Branco, que foi casa solarenga, nos
antigos tempos, dos Távoras, e onde hoje, dizem, foi construído o belo
Hotel Mandóvi. Deram-se lá belas festas, «serões» e bailes que
marcaram na sociedade de Goa desse tempo. Recitava-se, cantava-se,
tocava-se e bailava-se também animadamente. Recitavam-se versos dos
poetas Osório de Castro, Álvaro de Castelões, Fernando Leal e da poetisa
Florência de Morais. E também do meu pai, que «dizia»
maravilhosamente».
E, mais à frente no livro, sentindo a nostalgia em Lisboa desses
tempos do fim da presença cultural e convivial portuguesa na Índia, refere-a de novo: «E outros pensamentos surgiam agora como
dobres a finados.... como aqueles queixumes, ditos em versos por homens
bons e sábios da portuguesíssima têmpera que eu muito admirava e que se
reuniam de quando em quando em casa de meus pais, em amenos serões, tais
como o velho Barão de Combarjua, tão acertado no seu dizer, o literato
Visconde de Bucelas, o escritor e historiador Frederico de Ayala, os
poetas Fernando Leal e Alberto Osório de Castro, Dr. Fragoso, tão
original na suas teorias e meu pai [Higino da Costa Paulino]... e mais
tarde, o romântico e célebre Visconde de Castelões, Álvaro de Castelões,
que provocou o falado "Ultimato", a poetisa Florência de Morais... e
neles, nesses versos, traduziram a mágoa que lhes ia na alma por todo
aquele abandono para o qual não viam remédio, nem esperança...».
É pouco para reconstruirmos um pouco que seja da personalidade e da criatividade de Florência de Morais. Contudo, na Ave-Azul, nº 5, uma revista literária e de crítica rica, abrangente, muito bem dirigida e alimentada por dois poetas e escritores de valor, Carlos de Lemos e Beatriz Pinheiro, com boa colaboração: os lusófilos em Itália e na Europa, Antero de Quental (póstumo, mas até porque Carlos de Lemos era um anteriano, pois recebera uma bela e profunda carta de Antero em Fevereiro de 1888 elogiando a sua poesia e iniciando-a na missão de poeta), Joaquim de Araújo, Eugénio de Castro, Fausto Guedes Teixeira, Camilo Pessanha, João Lúcio, Lopes Vieira, Philéas Lebesgue, Maria Veleda, Alice Pestana, Magalhães Lima, Adolfo e Severo Severo, etc, etc, encontramos mais dados.
De facto, na tão valiosa revista Ave-Azul, muito apoiante da Liga da Paz, e do movimento de emancipação da Mulher (com críticas fortes ao Padre Sena de Freitas e mesmo a Maria Amália Vaz de Carvalho), conseguimos descobrir o seu apelido completo Florência Pereira de Morais, pois Beatriz Pinheiro anuncia e partilha no nº5 as primeiras colaborações de Amélia Jany e de Florência de Morais, desta um poema Vesperal, escrito em Vila Real na noite de Natal de 1898 e duma grande riqueza de cores, imagens e sensações, provavelmente germinação de algum pôr do sol que avistaria de Vila Real onde morava.
Fotografia do poema Vesperal, obtida da revista Ave-Azul digitalizada na Hemeroteca.
Também na 2ª série, nº 3, de Março de 1900, outro belo poema, invocador dos poderes da Lua, intitulado Vigília, pleno da sua empatia com a Natureza, grande amor e compaixão. E no nº 10-11, um muito extenso poema Breviário d'Amor, de Maio de 1900, como os outros escrito em Vila Real e com a mesma tónica de grande espiritualidade e amor, embora neste os versos reflictam já um amor intenso recíproco e em esperanças luminosas desabrochando. Oiçamo-la, apenas nas duas quadras iniciais, cantar tão belamente a esperança do Amor, num poema que mereceria ser todo transcrito por alma devota:
Onde dorme a sorrir a Felicidade;
Donde se avista o mundo todo em globo
aborto em santa espiritualidade.
Para concluir, no nº 12 da Ave-Azul, quando finda a magnífica aventura editorial, Carlos Lemos e Beatriz Pinheiro elogiam e agradecem a plêiade de colaboradores, destacam as pugnas pelos ideais da paz, da emancipação de mulher e da fraternidade e espiritualidade verdadeiras, não se esquecem de nomeá-la: «Diminuta, como era natural num país onde as damas por via de regra não se entregam ao cultivo de letras, a colaboração feminina, diminuta muito embora, foi honrosíssima, e para termos ensejo de a declarar, lhe guardamos para o fim a referência. Abrilhantaram as páginas na nossa revista: - em prosa: D. Ana de Castro Osório e a Dra. Sofia da Silva - em verso: D. Teresa Luso e D. Florência de Morais; - em prosa e verso: Maria Veleda» e, claro, Beatriz Pinheiro, com dezenas e dezenas de páginas valiosas.
Que o seu nome completo era Florência Júlia descobrimos pelas genealogias online e que foi casada com Augusto Pereira de Morais, 1º barão de Gouvinhas, certamente o inspirador ou co-autor do Breviário d'Amor. E através dum seu sobrinho neto, José Alberto Morais de Almeida, que ainda a conheceu, que ela era filha do Visconde de Morais e morrera entre 1949 e 1950. E que recebia inspirações de noite, transcrevendo-as então à luz do candeeiro de azeite para que não se esfumassem. Também a notável escritora duriense Dalila Pereira da Costa me confessou fazer algo do género na calada noite, sob diminuta luz pois era onírica e de planos subtis a inspiração.
Resta-nos agora lê-la no seu livro Vagas (Versos Camoneanos), onde nos damos conta que lera e meditara bem Camões mas também muito outros poetas, nem que fosse só pela valiosa revista Ave-Azul notando-se na sua personalidade amorosa e compassiva o idealismo tanto perene como o contemporâneo de Antero de Quental e a luta contra o Ultimato do imperialismo inglês e o desalento disso gerado, em Antero de Quental, por exemplo, talvez uma das causas do seu suicídio já que muito se empenhara na malograda Liga Patriótica do Norte. No que Florência Pereira de Morais nos confessa e poetiza, provavelmente nos seus vinte e cinco anos, sentimos a sua alma algo sofrida em ressonância com Portugal, consciente da dificuldade da plenitudes mas firme no amor da Pátria-Mátria e do Bem e aspirando a mais Luz e Amor, clamando mesmo pela Iniciação da pomba ou do Espírito santo.
Transcrevemos sete sonetos dos vinte cinco que deu então à luz em Vagas e que passados mais de cem anos voltam merecidamente a permitir o singramento dos fiéis do Amor da Tradição Espiritual Portugal a que ela pertenceu e que em Camões teve um dos seus maiores mestres, e com quem Florência Júlia se inspirou e se iniciou.
Oiçamo-la com a alma bem atenta e o graal do coração receptivo, pois a correnteza iniciática da poesia que se derrama ondulantemente, é um elo, um farol da Tradição a chamar-nos, a impulsionar-nos:
e grande e inatingível do Poeta,
