domingo, 8 de outubro de 2023

Da constelação da Virgem, dos Anjos femininos, Daena, Houris, o sexo dos Anjos e a inefabilidade deles.

Nas gravuras, por vezes coloridas, dos Atlas antigos com as constelações dos Céus, as representações de Anjos, mais especificamente no signo da Virgem, surgiram por vezes com grande beleza e logo capacidade de nos inspirarem. Tentemos contemplá-las mais demoradamente e logo apontar-lhes o telescópio do olho espiritual. Assim talvez em algumas noites as e os vejamos nos céus estrelados, exteriores e interiores....
                                      
Eis uma, proveniente do Urania Mirror, o Espelho de Urânia, realizado por Richard Rouse Bloxam para publicação num baralho de cartas por Samuel Leigh of the Strand, em Londres, em 1824.
Outra gravura da constelação Virgem também bela:
De John Flamsteed, circa 1723, para o Atlas Coelestis
Estas representações angélicas femininas agradavam facilmente pois, embora figurando simplesmente a constelação da Virgem, com atributos ligados a Gaia e ao tempo das colheitas ou, quem sabe, a Perséfone com a espiga de trigo dos mistérios de Eleusis, e ao representarem-na feminina e com asas, estabeleciam uma ponte com o mundo angélico e compensavam o excesso de representações masculinas dos Anjos. Todavia, mesmo em alguns Atlas, a constelação da Virgem podia aparecer como masculina, qual Arcanjo: 
 Ora os Anjos são contudo basicamente seres espirituais e de certo modo acima da polarização sexual, assexuados (se é que esta designação lhes é aceitável) e, numa visão ainda dualista, logo algo andróginos, masculinos e femininos,  voluntariamente podendo escolher o aspecto com que se querem manifestar, embora na história do Cristianismo sejam sempre anjos homens, e apenas em alguns artistas podemos ver tais espíritos celestiais representados enquanto seres femininos. 
E contudo nas religiões antigas houve anjos femininos bem importantes, nomeadamente na Persa ou Iraniana, pois cada ser humano tinha a sua daena, que o recebia na ponte ou transição para o além e que se mostrava bela ou terrível conforme a vida e actos. No seu nível mais elevado Daena era a Ordem justa e harmoniosa.
                                                                 
         Uma representação, nos Sogdian, da Daēnā, do séc. X, nas ricas grutas Mogao, China.
Na Babilónia cada pessoa tinha um génio bom masculino Udug, que avançava à sua frente, e um feminino, Lama, que está ou ia atrás dela. Também na Grécia houve várias entidades adoradas como deusas e que eram de certo modo seres angélicos femininos, tais Sophrosine, Nike, Nemesis, e dos deuses e deusas alguns eram bem próximos dos Anjos, tal o Hermes das asas nos pés e no elmo (um pré-S. Miguel), para além do daimon ou agathos interior de cada ser, dado no nascimento e que o acompanhava e inspirava, como foi o caso de Sócrates, tão citado e estudado por Plutarco, Apuleio, Porfírio e outros sábios da Antiguidade, daimons segundo Platão, no Banquete, considerados por Diotima, a mestra, no diálogo, de Sócrates, como mensageiros que religam os seres humanos, e as suas necessidades e merecimentos,  aos planos ou níveis da Divindade.
Eugéne Delacroix. 1838. Na biblioteca do palácio Bourbon, Paris
Também no Islão, a houris do Paraíso celestial, prometida aos crentes num entendimento literal, sendo seres femininos, na realidade das suras do Alcorão são apenas seres belos, puros ou virgens, dados como companheiros aos que se portaram bem na vida,  e logo necessariamente não só a homens,  havendo portanto tanto houris femininas como masculinos, entendimento nos nossos dias crescente entre os teólogos islâmicos às voltas com a hermenêutica corânica para o séc. XXI. Certamente que o sentido real  da promessa é as pessoas justas encontrarem no além seres afins com quem podem estar em amor e que terão nisso prazer que compensa os duros mas fugazes anos de esforços e sofrimentos na Terra. Mas anote-se que  aos Anjos propriamente ditos o Corão e a teologia posterior atribuem-lhes 2, 3 ou 4 asas e que, conforme os planos ou níveis do universo, os anjos surgem como homens, crianças, houris e com formas de animais, variando o número que cada ser tem ou pode ter à sua volta.
As Houris no Paraíso, segundo Muhammad Rafi Khân, mss de 1808, do Cachemira.
A famosa expressão perder o tempo a "discutir o sexo dos Anjos", que  face a desafios prementes é correcta,   tem também servido para desvalorizar o que por vezes não é assim tanto bizarria ou bizantinice, apesar das centenas de anos que foram passando desde a formulação de tal expressão permanece ainda hoje qual esfinge pela subtileza do mundo angélico, apesar de haver  tanta superficialidade de livros e instruções sobre os espíritos celestiais, da qual a maior é a tabela do nome dos Anjos para cada dia do ano que alguns autores de moda ou sucesso teimam em enfiar como uma carapuça na cabecinha de muita alma crente e ingénua, entre os quais se destacaram Haziel, e outros autores e autoras, nacionais e estrangeiros, e que  tiveram no século XIX, nos considerados grandes ocultistas e cabalistas, muito mistificadores, como Lazare Lenin, Eliphas Levi e Papus, os seus antecessores... 
Na doutrina angélica mais assumida da Igreja, a contida na Suma Teológica de S. Tomás de Aquino, e que se apresenta contrária às de Orígenes, S. Bernardo e vários Franciscanos, os Anjos são entidades intelectuais, incorpóreas e imateriais, e que apenas  podem assumir ou tomar emprestado corpos materiais e visíveis (ainda que não sendo contidos neles), concessão esta de S. Tomás de Aquino que permite explicar as pretensas visões ou aparecimentos físicos de seres angélicos na Bíblia. Mas para ele não há corporalidade nem sexualidade nem amor natural no Anjo, apenas amor intelectual, caridade, piedade.
Para conhecer o seu Anjo cada pessoa tem de o invocar em actos e práticas religiosas e espirituais e logo podê-lo merecer sentir e até ver, seja quanto a pessoa entra na sua interioridade meditativa mais profunda ou perseverada e  ele se manifesta, seja ainda ao perseverar na ligação a ele, e assim poder receber intuições, sinais e mensagens ao acordar, ao caminhar, ao contemplar, mas sempre numa subtileza e quase inefabilidade que se coaduna bem com o elevado estado angélico de consciência e de ligação à Divindade....

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