segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Sant' Anna Dionísio: Leonardo Coimbra, uma "Vida Espiritual Intensa". Homenagem a dois elos da Tradição Espiritual Portuguesa.

Dalila Pereira da Costa, José Sant'Anna Dionísio e Pedro Teixeira da Mota, ao Sol, numa peregrinação à igreja românica de S. Cristóvão, em Rio Mau, com capitéis iniciáticos. Anos 80.

Sant'Anna Dionísio (1902-1991) foi um dos seres sábio e com mais idade que me acolheu com simpatia e disponibilidade e  me transmitiu em  diálogos algo da sua ligação à Tradição Espiritual Portuguesa, e assim me ensinou, impulsionou e advertiu. Apesar de bastante mais velho não deixou de se abrir a alguma da sabedoria espiritual, meditativa e oriental que eu desenvolvia nos nossos animados diálogos na década de oitenta em sua casa, onde frequentemente o visitava, desde 1983, pois dava aulas de Agni Raj Yoga no centro e restaurante Suribachi não muito longe e tinha bastante tempo entre as aulas matinais e as finais do dia.
Recuperar tais diálogos é quase impossível, ainda que seja possível que um
dia, em corpos espirituais possamos, ter acesso a todas as conversas que travámos e sentimos, se de facto uma parte de nós próprios consegue registar ou conservar tudo o que se passa em vida, ou mesmo se há um filme cósmico subtilmente correndo incessantemente...

Na actualidade, não sendo possível, só me resta pesquisar nos diários desses anos os registos, em geral breves dos nossos diálogos. Ou então socorrer-nos dos seus escritos que possamos conservar, dos livros com anotações, até de conversas, e vários deles com dedicatórias bem sugestivas, tal uma das primeiras, a das Obras Completas de Leonardo Coimbra, vol. I: «Ao seu bom amigo - recente mas, na realidade, e no melhor sentido filológico: - bom - Pedro (familiarmente Pedro Mota), discretamente portador de um verídico espírito religioso, ávido da sabedoria hindustânica e sequioso da meditação transcendente, na boa linha de Leonardo Coimbra, subscreve e dedica com plena confiança e Esperança, esta Obra bastante difícil mas tão rica e promissora, com um abraço de J. Sant'Anna Dionísio.» Porto, 14.III,1984.

Poderemos também socorrer-nos das suas colaborações em revistas e jornais, tanto mais que alguns dos temas ou acontecimentos neles tratados foram também dialogados, e diremos que almas pesquisadoras da sua vasta obra encontrarão muitos testos valiosos no Primeiro de Janeiro e no Diabo, além dos iniciais na Águia, onde foi um dos directores finais e talvez o causador do encerramento da revista, em 1932, ao expor desassombradamente num dos últimos números da Águia (sendo o posterior, já em polémica, apreendido) os plágios de Gustavo Cordeiro Ramos, um ministro e protegido de Salazar, admirador do trágico nacional-socialismo hitleriano.

A última série da Águia, a Vª, de1932, um dos últimos (três) números. Leonardo Coimbra está com a Sant'Anna Dionísio na direcção da inolvidável revista, apoiando-o no seu confronto com Cordeiro Ramos e o regime salazarista, que acontecera na IVª série, em 1928, e que levara ao encerramento temporário da revista, e em 1932, em parte, ao seu fim. O texto sobre Antero de Quental apoia ou testemunha tal linha de livre pensamento e verdade. Tanto Leonardo como Sant'Anna foram valiosos anterianos, na alma e pensamento e pelos livros que lhe dedicaram.    
Num dos nossos diálogos, José Sant'Anna Dionísio passou-me algumas cópias de publicações nos jornais,  tal uma de Julho de 1981, muito sugestivamente intitulado Vida Espiritual Intensa. Ora neste terceiro decénio do século XXI, com tanta espiritualidade e esoterismo em ampla comunicação e divulgação, alguns se rirão de tal título menosprezando o que de espiritual se poderia intensificar na época. Lembre-se contudo que a capacidade de leitura e reflexão de Leonardo Coimbra era extraordinária e muito abrangente e que tinha na sua biblioteca obras tanta sobre a Índia e os filósofos da Rússia como de psiquismo e espiritualismo.

                                                         

Que havia frequentes diálogos despertantes e levitantes de Leonardo com os seus alunos e discípulos nas mesas dos cafés ou nas aulas não há dúvidas, pois alguns narraram-no, mas meditações, orações, comunhões com a Natureza, devoção ao Divino foram por ele mais ensinadas (para além do que nos livros encerrou) e  justificarão o título de Vida Espiritual Intensa, ou o espiritual é mais abrangente e não de metodologias?
Vejamos então o
que nos dirá Sant'Anna Dionísio, no jornal Primeiro de Janeiro, de 6 de Julho de 1981, em relação ao genial pensador e pedagogo Leonardo Coimbra (1883-1936), de quem foi um esforçado e abnegado discípulo...

 Tendo em conta o ser, pensar e agir de Leonardo Coimbra, considera Sant'Anna Dionísio, a pacificação ou harmonização da meditação intensa, tácita, silenciosa com o humor cáustico convivente, que como dois polos o caracterizavam, não seria fácil dado que era ainda por cima um orador eloquente e frequentemente apaixonado, pelo que mesmo uma conversão religiosa (e que veio a suceder no fim da vida, após as mortes de familiares, por intercessão do Padre Cruz e para se casar e baptizar um novo filho), e que podemos desdramatizar tal como fraqueza (como alguns consideraram, pois sempre fora religioso e crístico), nunca silenciaria a sua demanda constante e independente da verdade.
E como exe
mplo dessa demanda heterodoxa, que se poderia mesmo apelidar de algo anarquista, "numa época em que oscilava entre as experiências metapsíquicas e a conversão religiosa ao indizível", conta-nos que um dia Leonardo,  com um pequeno círculo de estudantes, tentou  despertar ou ressuscitar um seu aluno acabado de morrer (Alberto Brás Vieira, por suicídio ou homicídio não se sabendo), em vão, e que disso guardaria doravante silêncio, embora n' A Luta Pela Imortalidade, 1918, descreva várias experiências metapsíquicas e transmita valiosos  intuições e conhecimentos.

Mas, pergunta Sant'Anna Dionísio, seria ele um provocador, um autor ininteligível,  lembrando os momentos culminantes da carreira meteórica e genial de Leonardo Coimbra: «desde aquela espécie de Sturn und Drang, [Tempestade e Ímpeto] que foi, entre nós, a época dos comícios de propaganda que precedeu a designada transmutação do regime político em Outubro de 1910, até à cruzada [pela revista e  movimento por ele co-fundados, em 1910 e em1912] da Renascença Portuguesa, e desde a abertura «escandalosa» da Faculdade de Letras do Porto [por ele fundada, de 1918 a 1928] e da questão ainda mais «escandalosa» do ensino religioso [que Leonardo Coimbra, como ministro da Instrução Pública, propusera] até ao discurso inaudito sobre A Rússia de hoje e o Homem de Sempre [1935, publicado depois em livro alargado], pairou sobre o autor do Criacionismo a opinião, surda ou clamante, ora vulgar ora doutoral, uma personalidade extremamente evasiva, num espírito espectacular e ininteligível».

Leonardo de Coimbra, na Av. dos Aliados, Porto, junto a um dos cafés de tertúlia, em 1932. Fotografia inserta por Sant'Anna Dionísio in Leonardo Coimbra. Contributo para o conhecimento da sua personalidade e seus problemas. Porto, Lello & Irmão, 1983.

Sant'Anna Dionísio rebaterá tal hipótese, que era erguida pelos seus adversários, pois embora sendo um pensador e orador temerário, foi-o com profundeza, originalidade e sinceridade, «filosofando como se vivesse num país de filósofos» e por isso fora invejado e criticado, até por Salazar, seis anos mais novo que ele, que, chamando-o, lhe teria dito:"que fizesse o possível para tornar o seu pensamento mais acessível", como nos narra em nota Sant'Anna Dionísio, baseado no testemunho do médico Ribeiro dos Santos.
E, discernindo
bem as características psíquicas de Leonardo Coimbra, observa luminosamente que «a sua obra de pensamento apresenta em altíssimo grau um estranho ar de elevação, de frescura, de poder sugestivo, e isso se deve ao desembaraço (íamos a dizer: ao tom allegro) que caracteriza cada página e cada palavra sua», algo que cremos corresponder   também à sua compleição atlética,   ao dinamismo, optimismo e comunhão levitante com a Natureza e com o Verbo, Palavra ou Sermo (como queria Erasmo) que dele fluía e arrebatava os convivas das tertúlias, ou os ouvintes das conferências, tendo o meu pai ainda o escutado e admirado. 

                                                               

"Cada ser fala de acordo com o tesouro e graal do seu coração" e o de Leonardo Coimbra era vasto e puro, forte e subtil, com vales e montanhas, sincrónico do ambiente do Marão, da serra da Lixa e das águas do Tâmega, um ser que dominava tanto as ciências matemáticas como as filosóficas e que, simultaneamente, de funda sensibilidade religiosa e poética, era atraído pelos conhecimentos metapsíquicos, espíritas, ocultistas, espirituais e numa base de universalidade, como alguns livros e revistas da sua biblioteca dispersada (tal como, trágica e silenciosamente, a de Sant'Anna Dionísio) confirmam.
Sant'Anna Dionísio concluirá considerando que «a recôndita unidade do seu pensamento e da sua vida, é ainda um fruto dessa profunda fecunda espontaneidade, que para tantos não passava de um vício incorrigível do velho Anarquista [já que na sua juventude o fora]. É caso para dizer: - Abençoado Anarquismo que permite a um homem realizar-se assim, de um modo tão belo e exuberante e ao mesmo tempo tão fiel a si mesmo.»

Saibamos ser livre e fiéis a nós próprios, bem como à Tradição Espiritual Portuguesa, da qual Leonardo Coimbra e Sant'Anna Dionísio foram elos luminosos,  e ainda aos mais altos potenciais de trabalhos e amizades, lutas, voos e desígnios que germinarem e ressoarem em nós.

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