Dalila Pereira da Costa, José Sant'Anna Dionísio e Pedro Teixeira da Mota, ao Sol, numa peregrinação à igreja românica de S. Cristóvão, em Rio Mau, com capitéis iniciáticos. Anos 80. |
Sant'Anna Dionísio (1902-1991) foi um
dos seres sábio e com mais idade que me acolheu com simpatia e disponibilidade e me
transmitiu em diálogos algo da sua ligação à Tradição Espiritual Portuguesa, e assim me ensinou, impulsionou e advertiu. Apesar de bastante mais velho
não deixou de se abrir a alguma da sabedoria espiritual, meditativa
e oriental que eu desenvolvia nos nossos animados diálogos na década
de oitenta em sua
casa, onde frequentemente o visitava, desde 1983, pois dava aulas de Agni Raj Yoga no centro e restaurante Suribachi não
muito longe e tinha bastante tempo entre as aulas matinais e as finais do dia.
Recuperar tais diálogos é quase impossível, ainda que seja possível que um dia, em corpos
espirituais possamos, ter acesso a todas as conversas que travámos e sentimos,
se de facto uma parte de nós próprios consegue registar ou conservar tudo o que
se passa em vida, ou mesmo se há um filme cósmico subtilmente correndo incessantemente...
Na actualidade, não sendo possível, só me resta pesquisar nos diários desses anos os registos, em geral breves dos nossos diálogos. Ou então socorrer-nos dos seus escritos que possamos conservar, dos livros com anotações, até de conversas, e vários deles com dedicatórias bem sugestivas, tal uma das primeiras, a das Obras Completas de Leonardo Coimbra, vol. I: «Ao seu bom amigo - recente mas, na realidade, e no melhor sentido filológico: - bom - Pedro (familiarmente Pedro Mota), discretamente portador de um verídico espírito religioso, ávido da sabedoria hindustânica e sequioso da meditação transcendente, na boa linha de Leonardo Coimbra, subscreve e dedica com plena confiança e Esperança, esta Obra bastante difícil mas tão rica e promissora, com um abraço de J. Sant'Anna Dionísio.» Porto, 14.III,1984.
Poderemos também socorrer-nos das suas colaborações em revistas e jornais, tanto mais que alguns dos temas ou acontecimentos neles tratados foram também dialogados, e diremos que almas pesquisadoras da sua vasta obra encontrarão muitos testos valiosos no Primeiro de Janeiro e no Diabo, além dos iniciais na Águia, onde foi um dos directores finais e talvez o causador do encerramento da revista, em 1932, ao expor desassombradamente num dos últimos números da Águia (sendo o posterior, já em polémica, apreendido) os plágios de Gustavo Cordeiro Ramos, um ministro e protegido de Salazar, admirador do trágico nacional-socialismo hitleriano.
Que havia frequentes diálogos despertantes e levitantes de Leonardo com os seus alunos e discípulos nas mesas dos cafés ou nas aulas não há dúvidas, pois alguns narraram-no, mas meditações, orações,
comunhões com a Natureza, devoção ao
Divino foram por ele mais ensinadas (para além do que nos livros encerrou) e justificarão o título de Vida Espiritual Intensa, ou o espiritual é mais abrangente e não de metodologias?
Vejamos então o que nos dirá Sant'Anna Dionísio, no jornal Primeiro de Janeiro, de 6 de Julho de 1981, em relação ao genial pensador e pedagogo Leonardo Coimbra (1883-1936), de quem foi um esforçado e abnegado discípulo...
E como exemplo dessa demanda heterodoxa, que se poderia mesmo apelidar de algo anarquista, "numa época em que oscilava entre as experiências metapsíquicas e a conversão religiosa ao indizível", conta-nos que um dia Leonardo, com um pequeno círculo de estudantes, tentou despertar ou ressuscitar um seu aluno acabado de morrer (Alberto Brás Vieira, por suicídio ou homicídio não se sabendo), em vão, e que disso guardaria doravante silêncio, embora n' A Luta Pela Imortalidade, 1918, descreva várias experiências metapsíquicas e transmita valiosos intuições e conhecimentos.
Mas, pergunta Sant'Anna Dionísio, seria ele um provocador, um autor ininteligível, lembrando os momentos culminantes da carreira meteórica e genial de Leonardo Coimbra: «desde aquela espécie de Sturn und Drang, [Tempestade e Ímpeto] que foi, entre nós, a época dos comícios de propaganda que precedeu a designada transmutação do regime político em Outubro de 1910, até à cruzada [pela revista e movimento por ele co-fundados, em 1910 e em1912] da Renascença Portuguesa, e desde a abertura «escandalosa» da Faculdade de Letras do Porto [por ele fundada, de 1918 a 1928] e da questão ainda mais «escandalosa» do ensino religioso [que Leonardo Coimbra, como ministro da Instrução Pública, propusera] até ao discurso inaudito sobre A Rússia de hoje e o Homem de Sempre [1935, publicado depois em livro alargado], pairou sobre o autor do Criacionismo a opinião, surda ou clamante, ora vulgar ora doutoral, uma personalidade extremamente evasiva, num espírito espectacular e ininteligível».
Sant'Anna Dionísio rebaterá tal hipótese, que era erguida pelos seus adversários, pois
embora sendo um pensador e orador temerário, foi-o com profundeza,
originalidade e sinceridade, «filosofando como se vivesse num país de
filósofos» e por isso fora invejado e criticado, até por Salazar, seis anos mais novo que ele, que, chamando-o, lhe teria dito:"que fizesse o possível para tornar o seu pensamento mais acessível", como nos narra em nota Sant'Anna Dionísio, baseado no testemunho do médico Ribeiro dos Santos.
E, discernindo bem as
características psíquicas de Leonardo Coimbra, observa luminosamente que «a sua obra
de pensamento apresenta em altíssimo grau um estranho ar de
elevação, de frescura, de poder sugestivo, e isso se deve ao
desembaraço (íamos a dizer: ao tom allegro) que caracteriza
cada página e cada palavra sua», algo que cremos corresponder também à sua compleição atlética, ao dinamismo, optimismo e comunhão
levitante com a Natureza e com o Verbo, Palavra ou Sermo (como queria Erasmo) que dele fluía e arrebatava os
convivas das tertúlias, ou os ouvintes das conferências, tendo o meu pai ainda o escutado e admirado.
"Cada ser fala de acordo
com o tesouro e graal do seu coração" e o de Leonardo Coimbra era vasto e puro, forte e subtil,
com vales e montanhas, sincrónico do ambiente do Marão, da serra da Lixa e das águas do Tâmega, um ser que
dominava tanto as ciências matemáticas como as filosóficas e que, simultaneamente, de
funda sensibilidade religiosa e poética, era atraído pelos
conhecimentos metapsíquicos, espíritas, ocultistas, espirituais e
numa base de universalidade, como alguns livros e revistas da sua biblioteca dispersada (tal como, trágica e silenciosamente, a de Sant'Anna Dionísio) confirmam.
Sant'Anna Dionísio concluirá considerando que «a recôndita unidade do seu pensamento e da sua
vida, é ainda um fruto dessa profunda fecunda espontaneidade, que
para tantos não passava de um vício incorrigível do velho
Anarquista [já que na sua juventude o fora]. É caso para dizer:
- Abençoado Anarquismo que permite a um homem realizar-se assim, de um
modo tão belo e exuberante e ao mesmo tempo tão fiel a si mesmo.»
Saibamos ser livre e fiéis a nós próprios, bem como à Tradição Espiritual Portuguesa, da qual Leonardo Coimbra e Sant'Anna Dionísio foram elos luminosos, e ainda aos mais altos potenciais de trabalhos e amizades, lutas, voos e desígnios que germinarem e ressoarem em nós.
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