sábado, 30 de setembro de 2023

Erasmo e a comunhão na missa, nas reuniões espirituais e nos grupos de resistência. Narrativas oficiais antigas e modernas, políticas, sanitárias e religiosas.

Erasmo num altar lisboeta...

O questionar as narrativas oficiais sempre foi apanágio dos que estudavam, investigavam, discerniam e apreendiam mais a Verdade que os seus contemporâneos, que se deixavam enrolar pelas aparências e manipulações, ou mesmo pressões, dos que queriam determinar e fixar o que era verdadeiro ou não, seja na religião seja na ciência, saúde, política, historiografia longa ou do quotidiano.

Se no séc. XXI as duas narrativas mais impostas (com sanções, censuras e bloqueios)  pela aliança de grupos de pressão (sobretudo indústrias farmacêuticas e dos armamentos, Fórum Económico Mundial e elite política financeira anglo-americana)  e órgãos de comunicação são as dos vírus e vacinas, e as do relato, caracterização e apoio ao conflito entre a Ucrânia-USA-NATO-UE e a Rússia, há muitas outras que subsistem, algumas com séculos, pois a História humana não deve existir sem as narrativas oficiais e, discordando delas, as heterodoxas, alternativas ou contra-oficiais (hoje frequentemente denominadas pelas primeiras como conspiracionistas), pois só com diferentes compreensões dos factos ou diferentes olhares interpretativos e críticos, é que ela (história e suas almas historiadoras) pode ser digna de si mesma, isto é, livre e dialogante na demanda da verdade.

Um dos terrenos mais fértil em narrativas oficiais foi o religioso, em alguns séculos fecundíssimo, nomeadamente no Cristianismo primordial e na altura do Renascimento e da Reforma, quando diferentes religiosos se digladiaram na compreensão da dogmática antiga e moderna graças a uma consciência psíquica menos limitada e aos novos conhecimentos críticos dos textos sagrados e da evolução dos dogmas e costumes na Igreja. O embate foi tão grande, ainda que também justificado por razões políticas, nacionais e económicas, que aconteceu mesmo a Reforma Protestante, cindindo-se a Igreja Católica e as várias igrejas protestantes.

Erasmo numa gravura que José V. de Pina Martins, seu estudioso e amigo, me ofereceu.
Um dos mais sábios seres da época, que participou em alguns debates e controvérsias, foi Erasmo de Roterdão (1466-1536) que paulatinamente foi-se afirmando como o grande conhecedor da sabedoria greco-romana ou pagã (condensada nas edições constantemente ampliadas dos Adágios), dos padres antigos da Igreja, das versões antigas do Novo Testamento e do que seria a mensagem de Jesus, que ele denominava philosophia christi, tendo escrito dezenas de obras e traduções, entre as quais uma pioneiríssima do Novo Testamento e que teve a ousadia de chamar-lhe Novo Instrumento (e que foi elogiada e patrocinada pelo Papa Leão X e muito atacada pelos teólogos mais sofistas e escolásticos), além de centenas de cartas em que ia expondo como via os acontecimentos, os problemas e os seres, derramando nelas  seu grande amor, sabedoria, lucidez e ironia, algo que epistolarmente entre nós, à nossa escala, Antero de Quental realizou...

Um sofista, ou escolástico caturra, num desenho de Holbein para o Elogio da Loucura,
Se foi sobretudo o Elogio da Loucura o que mais o imortalizou,  algumas das suas obras, porém, para além do sucesso da época, ainda hoje se leem com utilidade e gosto tais os Colóquios, os Adágios, o Modo de Orar a Deus (do qual publiquei uma tradução), as Paráfrases aos Evangelhos, ou os textos da sua polémica em defesa do livre arbítrio contra o determinismo ou fatalismo de Lutero. 
Frontispício gráalico de uma edição de Aldo Manuzio dos Adágios.
 Ora uma das polémicas que na época se ergueu e na qual Erasmo participou dizia respeito à Eucaristia, ou como se devia entender tal acto fulcral da missa. E resumidamente: na Eucaristia haveria simplesmente uma presença divina para quem a merecia ou, como se decretou a partir de 1531, havia uma transubstanciação, uma mudança miraculosa do pão e do vinho em corpo e sangue de Jesus Cristo, que se realizava automaticamente, independentemente do estado da alma do celebrante e dos participantes?

Para Erasmo nada disso era automático, pois dependia de cada pessoa a possibilidade de ela se elevar do mero fenómeno físico à comunhão na sua alma e coração com Jesus e a Divindade. Por isso foi acusado por alguns de negar a transubstanciação, acusação de que ele se defendeu sem contudo aderir ao termo e ao conceito plenamente.

Erasmo chamara à missa synaxis (e nisto foi criticado, segundo o slogan dos mais reacionários: Erasmo, amigo de novidades)  uma palavra vindo do grego e que significava concentração, assembleia ou reunião, festa religiosa, união, e que foi utilizada por autores cristãos dos primeiros tempo para designar ora as reuniões de orações e acções de graças, ora aquelas em que se celebrava a eucaristia e que se vieram a tornar a missa.

Ao realçar tal palavra Erasmo valorizava o aspecto interior de concentração da alma piedosa ou devota em relação da Deus, e seria esse aspirar moral e interior de revestir-se de Cristo, de realizar a philosophia christi, a filosofia de Cristo, tal como ele designava o ensinamento de Jesus, que permitiria a comunhão com o Espírito.

O valor da Eucaristia era espiritual e consistia num morrer, tal como sucedera a Jesus, para o ego e seus defeito e paixões, e um renascer moral, ético, de piedade e de religação harmoniosa com os outros, com o mestre e a Divindade, e que se gerava através da conversão das potências da alma, e da aspiração e arrebatamento para o invisível, o espiritual, o eterno.

Havia uma consciência do corpo místico da Igreja forte em Erasmo nomeadamente na oração e na Missa, pois nela os laços de amor fraterno com os participantes e do amor devocional para com Deus eram intensificados. E era por isso que embora usando também o termo eucaristia preferiu várias vezes usar o de synaxis, já que através deste termo ela realçava a tradição grega que via na celebração religiosa uma conciliatio e communio entre os membros do corpo místico de Cristo, ou da Igreja. 

Erasmo era algo crítico quanto a inovações que não lhe pareciam verdadeiramente conformes a  tradição e assim considerava que era mais na adoração em silencio que nos podíamos avizinhar da Divindade do que por grandes cantos exteriorizantes, em vozes estridentes ou melificas, e musicas ou danças. E considerava mesmo a sucessão ritual da missa como sem grande importância, e valorizava mais cinco palavras ditas do coração e para edificação que dez mil superficiais.

Esta profundidade do sentido da missa de Erasmo continua a ser pouco seguida pelos responsáveis das celebrações religiosas que optam por condescender com a barulholatria que reina hoje em quase toda a parte, enquanto as pessoas ficam mais presas à exterioridade do rito do que à ressurreição de Cristo, do Logos, do Amor Sabedoria  em nós, que esta a ser representada e evocada. E é pena pois perde-sem assim os momentos em que a a renovação dos fiéis podia ser intensificada numa religação ao mundo espiritual e divino.

Com efeito para os autores ou primeiros padres gregos, tal Gregório de Niza, e na linha deles, Erasmo, o que caracterizava a comunhão era a conciliação ou intensificação da amizade entre os participantes e a comunhão com a Divindade ou com o seu Logos, Cristo, Palavra de Amor Sabedoria e que gerava efeitos beatíficos, ou mesmo extáticos ou "instáticos" em alguns mais místicos, no fundo sentir mais o amor, alegria e fraternidade emanados da fonte Divina.

Estes ensinamentos se na época se dirigiam especificamente para as reuniões de cristãos, nada os interdita de serem estendidos a outros  grupos ou assembleias de seres unidos na busca da verdade e do bem (e na resistência mais coesa ao mal das manipulações e opressões),  podendo por isso concluir-se que muitas reuniões de outras redes, associações, religiões e espiritualidades lucrariam com os conceitos tradicionais gregos desenvolvidos por Erasmo, de que as reuniões ou ritos dependem ou brilham pela intensificação de laços de amizade entre os seus participantes e pelos laços de aspiração, adoração e comunhão das bênçãos espirituais e divinas, quaisquer que sejam as designações e localizações que sentimos ou lhes atribuímos, desde o Bem e a Verdade, ao Logos, aos mestres fundadores das religiões, à Divindade, ao Absoluto... 

Possamos pois nós na esteira de Erasmo, a quem saudamos com muito amor, constantemente conciliar-nos fraternalmente e persistentemente comungar mais do espírito, do Logos Amor-Sabedoria, e da Divindade, no que merecermos...

Que a lucidez e a sabedoria, a independência e a coragem de Erasmo estejam connosco!

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