quarta-feira, 3 de maio de 2023

Uma carta do Irmão Lourenço, teósofo e da escola Arcana: vida e ensinamentos. Os livros da FEEU e do dr. Treiger em Portugal. Uma sua carta.

O ambiente e fraternidade no começo da República no Arsenal da Marinha.
 O irmão Lourenço, como era conhecido o engenheiro eletrónico Manuel Lourenço, foi um membro destacado do espiritualismo português desde os anos vinte e trinta, já que tendo trabalhado nas Oficinas do Arsenal da Marinha, ao Terreiro do Paço, encontrou lá uma iniciação não só operária e fraterna, pelo que era um simpatizante do partido Comunista, e só bastante mais tarde - numa vida esforçada - se tornando engenheiro, mas também a iniciação espiritual por parte de José Racalho que foi um ocultista e teósofo espanhol, bom conferencista, que o acompanhou e estimulou, dotado de certos poderes psíquicos, como Irmão Lourenço me narrou algumas vezes, nomeadamente o sair em corpo subtil para ajudar pessoas que, tendo morrido, precisavam de ser mais despertas e clarificadas ou esclarecidas, ou libertas de apego aos ambientes a que estavam demasiado ligadas
Maria O'Neill, a 2ª mãe do Irmão Lourenço, já que não tenho fotografia dele.
                                     
Recebeu também bastante apoio geral e espiritual, de quem dizia que fora a sua segunda mãe,  Maria O'Neill, 1873-1932 e que nascera de um nobre irlandês e de uma filha de um general, e que veio a ser a avó do famoso poeta Alexandre O'Neil,   e que foi uma escritora bastante precoce, uma feminista, jornalista, pedagoga, autora de muitos livros para crianças, teósofa e, nos últimos anos, sobretudo empenhando-se na causa espírita, tendo colaborado em numerosas publicações e organizações tanto cívicas com espiritualistas.
O irmão Lourenço foi membro da Sociedade Teosófica e o introdutor nela, creio, dos ensinamentos de Alice A. Bailey e da Escola Arcana fundada por ela, sendo o responsável de reuniões às quintas-feiras e aos Sábados à tarde, na cave da Rua Passos Manuel, nas quais ainda participei algumas vezes.  De facto, a 1ª tradução em Portugal de um livro de Alice A. Bailey foi o 1º volume do Tratado dos Sete Raios: Psicologia Esotérica, que ele editou ainda à sua custa, embora a sua tradução enfermasse de vários erros derivados de ter traduzido da tradução em francês, língua que não dominava. Conheci-o nessa altura, por indicação do meu pai, que era também engenheiro civil e militar, e ainda fiz circular vários exemplares da obra. 
Acabei por ser eu a avançar na tradução o 2º volume, A Astrologia Esotérica, já directamente do inglês, e a carta que transcrevo em seguida fala nisso, tendo sido publicada  mais tarde no Brasil, pela Fundação Educacional e Editorial Universalista, FEEU, colaboradora e distribuidora da Fundação Cultural Avatar, esta fundada em 1973 e dedicada aos ensinamentos espirituais de vários autores, e primacialmente do casal russo Nicholas e Helena Roerich e o seu Agni Yoga (pelo contactos de Jayme Trager, Vladimir e Tamara Bodegar e Sina G. Fosdick), de Alice A. Bailey e de Inayat Khan, e que na altura, além dos editados pela Editora Pensamento, eram dos poucos com mais qualidade acessíveis aos leitores de língua portuguesa. Conservo algumas cartas, embora já de 1984, do dr. Jayme Traiger, filho de russos emigrados para o Brasil, médico, depois homeopata e depois psiquiatra, e fundador e director da Fundação Cultural o Avatar bem como dos seus Boletins de Estudos de Ciência Espiritual O Avatar,  estes com as habituais exposições didácticas espirituais por vezes algo superficiais e muito tingidos pelas ilusões da entrada e grandes transformações espiritualizantes da Nova Era de Aquário, que aliás tanto Nicholas Roerich e Alice A. Bailey parecem ter também optimisticamente admitido ou sonhado.
O Irmão Lourenço, já na altura viúvo mas com uma filha, recebeu-me várias vezes na sua casa, em geral aos Domingos de manhã, num bairrozinho típico atrás da igreja de praça de Londres em Lisboa,  dando-me uma certa iniciação forte no caminho do não-egoísmo e humildade, e ainda na meditação  e na mentalidade de serviço, já que ele era de facto uma pessoa com uma sensibilidade imensa contra o egoísmo, a ganância e as injustiças e muito aberto à consciência e vivência fraterna entre os seres. Fiz chegar até ele algumas pessoas para sentirem e receberem o seu entusiasmo esotérico e fraterno, por vezes meditando-se e sentindo-se bons resultados intuitivos da nossa dimensão espiritual ou mesmo dos seres e ligações invisíveis que nos abençoam. Foi o caso do meu irmão Luís, ou mais tarde de Maria, como registei em diários.
Estava ligado a outras personalidades da época que se movimentavam no meio sobretudo teosófico e espiritual português, ainda que tivesse por vezes  discussões fortes com outros membros  mais fortes na afirmação das ideias das suas personalidades-individualidade, ou então menos receptivos aos ensinamentos de Alice A. Bailey, ou que ela terá recebido do denominado mestre Tibetano, ou Djwal Kull, e que de facto são frequentemente tão respeitantes a dimensões tão elevadas e distantes do nosso plano físico que são completamente improváveis, fora da vivência pessoal de cada um, e logo relativas para os outros.
Das pessoas suas amigas convivi mais com Marcelle Costa Pina, ligada ao ensinamento da Cosmogonia d'Urância e à revista Ondes Vives de Jean Claude Salemy, que eu ainda contactei em França; e com Mário Pinto, que fundara a revista Infante Mensageiro, policopiada, no Porto, onde ainda colaborei num dos últimos números já que nos anos 80 e começo de 90 aí habitei e ensinei meditação, Yoga  e caminho espiritual. O coronel Rocha de Abreu, era outro amigo (e peço desculpa dos que não nomeei), mas só me encontrei umas duas ou vezes com ele e não sei se terei anotado algo do diálogo, embora tenha uns pequenos cartões com ensinamentos, meditações, orações que ele distribuía também no seu afã de espiritualizar o meio português
Após muitos anos de trabalho abnegado, o irmão Lourenço deixou a Terra ao ser atropelado por um carro,quando seguia com uma das suas fiéis participantes no ramo teosófico, a Josefina (muita luz e amor , para os dois) e como nada encontramos na web que fale dele, e merecia-o pela sua vida tão abnegada e entusiástica pela causa espiritual e fraterna, e porque foi um dos meus primeiros instrutores ou, se quisermos, discípulos dos Mestres, eis um pequeno contributo, a que espero juntar outro.
A carta é valiosa na auto-caracterização de si próprio, mostra as tendências um pouco exclusivistas de alguns grupos esotéricos, no caso a Eubiose, de Sintra, e da Escola Arcana, em Geneve, algo que eu senti também pouco depois desta carta quando os conheci num dos seus encontros-conferências anuais, como ele menciona, desiludindo-me de tal via e partindo inesperadamente para a Índia à boleia em busca da tradição espiritual e yoguica viva e não de intelectualizações e construções quase incomprováveis e algo elitistas.
«Lisboa, 8/III/ 1977

                                                 Meu caro e bom Amigo e Irmão           Pedro Teixeira da Mota
Desejo-lhe boa saúde e a continuação de tão boas condições que vem mostrando em serviço prestado e que tem projectado prosseguir em escala crescente.
- Embora só tenho lido a sua carta que acompanhava o trabalho [de tradução do Trtatado dos Sete Raios, 2º Vol.)que o seu amigo foi portador, nem por isso deixamos de falar da Teosofia e afins, tendo-me ele prometido assistir ao Ramo das 5ªs fªs, pois pareceu interessado pelos nossos assuntos.
Quanto à rapaziada de Sintra tudo continua na mesma toada, i.é., eu com o meu entusiasmo, mesmo que amanhã desapareçam. Abrem-se pouco e sei ter reaparecido o Snr. que em Sintra dirigia os trabalhos lá e que foram censurados de terem aparecido na Sociedade Teosófica, dizendo que a Teosofia estava ultrapassada. É caso para dizermos – qual Teosofia?
Eu não ataco ninguém e muito menos que saiam de onde estão. O meu labor é e terá de ser construtivo e não tenho pretensões, senão com o devido cuidado de procurar (quanto me for possível) desfazer uma ou outra teia de aranha, mas nunca, de modo nenhum afastar alguém de onde esteja. Diligencio, quanto posso ser impessoal, eclético e sempre (aí - sim ponho ênfase), de agir com desapego, dada a necessidade para uma faceta a construir no meu carácter e muito precisa para o meu caminho.
- O que lhe passou pela cabeça quanto à revisão da parte não revista por si do 2º volume dos Sete Raios também me passou pela minha, mas não tinha a coragem para lhe pedir tanto, depois da dura prova da sua paciência e perda do tempo, a seguir ao trabalho que tem vindo a prestar. Claro que para mim e sobretudo para os futuros leitores da obra isso vinha maravilhosamente, mas para aliviá-la de tão grande frete pensava em falarmos ao seu irmão Luís para dividirem entre os dois esse trabalho. Estariam de acordo? [Acabei por ser eu a fazê-lo, enquanto ele preferiu traduzir a Bhagavad Gita da versão francesa de Sri Aurobindo, inédita.]
- Sobre os seus projectos na galeria Orpheu parece-me óptimo empreendimento da sua parte, pelo mostrar, além de dinamismo, grande esforço de serviço para que se conheça o que é necessário que seja conhecido – o mundo espiritual.
Quanto à participação bem sabe que os meus recursos literários são bem parcos, sobretudo para um público com elementos exigentes com bastante poder crítico, embora outra parte mais aberta às necessidades espirituais esteja apta a ouvir-nos. Contudo, não me furto a qualquer simpósio informal. É assunto para tratarmos frente a frente.
Sobre os triângulos [constituição de grupos de três pessoas e que meditam em sincronia] tenho material mas em linguagem para alunos da Arcane School. São folhas em separata que talvez se pudesse aproveitar.
A morada donde parte todo o material dos triângulos que funciona como departmento da Escola, é: World Goodwill, 18 Fincley Road, Hampstead, London, N. W. 3.
Gostaria de conhecer o que a Arcane School lhe respondeu, pois ela é um pouco exclusivista. Sobre tudo isto era admirável uma ida a Geneve por ocasião das conferências de que já faláramos em tudo isso e que talvez já púdessemos levar o trabalho concluído porque é uma fieira [termo técnico de construção, viga] imposta por eles.
- Depois de passar este fim de semana com o Dr. [Jayme]Treiger, procurarei meio de virmos a contactar mais detalhadamente, para aclarar alguns destes pontos.
- Sobre o livro que acabou de ler Cartas sobre Meditação Ocultista de A. A. Bailey, não consta estar editado em português, mas creio que os brasileiros pensam na sua tradução. É assunto para concretizar com o Dr. Treiger. [Acabei por traduzir apenas o livro Do Intelecto à Intuição, menos o capítulo final...]. Como saberá pelo seu irmão Luís, o Snr. chega a Lisboa no sábado de manhã (10:00.) e parte para Londres domingo pelas 16:00. Está firmemente ligado à Fundação FEUS [que se tornaria fundação Avatar, anos mais tarde) que publicou os livros já cá chegados e que conhece de A. A. Bailey., seu irmão irá apresentar-lhe a proposta da mesma Fundação publicar o livro [Bhagavad Gita] que ele traduziu já grande parte. 
Por hoje sem outro assunto abraça-o o amigo e irmão muito fraternalmente,
                                 M. Lourenço. »

"Peço que dê ciência de tudo isso ao nosso querido Irmão Lourenço... Lux! Amor!" 

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