domingo, 14 de maio de 2023

"Talhas, uma aldeia transmontana medieval", de João de Deus Rodrigues. O prefácio, por Pedro Teixeira da Mota.

 Tendo-me encontrado há  dias com João de Deus Rodrigues, amigo e escritor transmontano já com várias obras publicadas (e até prémio Nacional de Poesia Fernão de Magalhães Gonçalves em 2011), na calçada do Combro, em frente à Livraria Antiquária do Calhariz, onde muita vezes trabalhei (ou ainda ocasionalmente) na decifração de manuscritos ou na apreciação e descrição de livros estrangeiros ou mais invulgares,  estivemos a conversar, e com o José Manuel Rodrigues, transmontano e dono da livraria, outrora famosa pelos bons leilões, hoje sobrevivendo modestamente com um boletim trimestral e com as gravurinhas e desenhos que  vão vendendo aos turistas. E graças se dando pois, qualquer dia, para a Lisboa se tornar mesmo, merecida ou imerecidamente, apoiada ou não camarariamente, a cidade europeia com mais e melhores restaurantes e chefes, possivelmente  poucas das oito livrarias alfarrabistas existirão...  Soube porém na conversa que lhe foi diagnosticado um pequeno melanoma no nariz, a necessitar operação, aguardando que o Hospital Santa Maria lhe marque uma consulta. Se quiser recorrer a uma clínica privada os preços são altos.  Será talvez mais um caso para questionarmos se o dinheiro a rodos que a União Europeia recebe, cria e distribui para armamentos e vacinas (milhões a apodrecerem agora), ou aquele que o Estado português gasta mal em dezenas de instituições, parcerias público-privadas, obras, espectáculos, subsídios e fundações, não poderia ser aplicado melhor no apoio aos serviços hospitalares, centros de saúde e seus trabalhadores, e portanto fecundamente para bem estar dos cidadãos e da alma nacional? Será que assistimos ao crescimento do liberalismo selvagem, estilo norte-americano, e agora cada vez mais implementado na União Europeia por Macron (do Fórum Económico Mundial, com o seu infrahumanismo denominado transhumanismo), e outros, em que os serviços públicos vão sendo privatizados e encarecidos, ou será que felizmente além do super-lotado Hospital de Santa Maria, haverá ainda o muito estimado como salvífico Ega Moniz, ou outro? Fica o desabafo e os votos ou orações para que o João de Deus Rodrigues possa ser rapidamente operado e continuar a escrever livros e a manter a  sua convivência sã com a mulher, a filha Ana Sofia, reputada bióloga internacional, e os amigos e transmontanos. Segue, com leves modificações, o prefácio  (e ainda escrevi outros dois, tendo-o apresentado duas vezes na Casa de Trás-os-Montes), ao seu livro Talhas. Memórias de um aldeia medieval transmontana. 2005.
 
Badana do livro  Homenagem ao Rio Sabor, prémio nacional de poesia Fernão de Magalhães Gonçalves, em 2011, da editora Tartaruga, de Manuela Morais, que editou ainda as Histórias Maravilhosas da Terra Quente. 2007.

     «Nestes tempos de crescente seca e desertificação do interior é sempre bom que, por entre as brumas de passado, os gritos a rebate pela beleza e o valor da história das nossas aldeias se ergam refrescantes e gratos.
É o que nos oferece neste livro, numa linguagem simples e sem grandes erudições, o nosso amigo João de Deus Rodrigues, cooperante como eu na antiga Livraria Antiquária do Calhariz, em Lisboa, propriedade dum outro transmontano José Manuel Rodrigues, aí mesmo onde funcionou a famosa oficina Craesbeekiana no séc. XVI e XVII.
Não sendo um historiador, sem grandes capacidades para investigações mais exigentes ou dispendiosas, João de Deus procurou antes deixar vir ao de cima o que a sua alma continha de memórias, complementando-as com notas extraídas das obras dos grandes historiadores, enriquecendo ainda a monografia com poemas seus baseados nas vivências de infância, nas quais por vezes quase atinge aquele ritmo, sabor e ideologia do nosso cancioneiro tradicional.
Sim, porque João de Deus Rodrigues, apesar das sua limitações de estudos, conserva a alma de artista, nascida dos seus antepassados e do ambiente natural transmontano em que se embebeu desde que sua mãe, D. Ester Sobrêda Teiga, que uma fotografia da época nos mostra na sua beleza e nobreza, o gerou.
É este culto dos familiares e dos antepassados, que perdido em parte no atomismo das cidades, se conserva ainda quase como uma religião entre os nossos transmontanos e minhotos, para citar apenas as regiões em que por família e experiência melhor conheço, que se respira perfumadamente no livro.
A vida de Trás-os-Montes, das fragas e rios, da agricultura cerealífera, do linho e azeite, das artes e ofícios, tudo isso perpassa diante dos nosso olhar em momentos agradáveis e bem reconstituídos ou relembrados pelo autor, dando-nos ocasião de associá-los às memórias que, jazendo semi-adormecidas nas fímbrias da nossa alma e nas sinapses dos nossos neurónios, logo acordam e crescem, pelas comparações e analogias, as quais permitem ainda que o cérebro à medida que envelhece se mantenha em forma e não degenere, e ajudam-nos a formar o corpo espiritual, com que sobreviveremos à morte física.
Sim, como não relembrar outros sábios transmontanos, como os de Sirvozelo (ti Afonso, Domingos, Manuel Afonso), no Gerês (que conheci através do meu irmão Francisco, e que com eles se ligou indissoluvelmente), também possuidores desses saberes, forças adquiridas ao longo dos séculos no contacto com a natureza rica e difícil que os rodeava, apenas armados com a sua intuição, experiência e força de vontade mas que, acumulada ao longos dos séculos, qual a água de uma barragem, é capaz de se tornar luz mais quente que a eléctrica, e que aqui e acolá ainda embebe algum neto, ou gera diálogos com jovens não alienados pela sociedade superficial do consumo e nos quais a alma está ainda receptiva à sabedoria dos antigos.
Como não me lembrar das conversas com Sant’Anna Dionísio, o discípulo do prometaico Leonardo Coimbra, e que publicou na editora portuense Lello livros valiosos sobre Trás os Montes, o Minho, o Douro, além de ter sido o colaborador e continuador do pioneiro Guia de Portugal, de Raul Proença, ambos homens da Seara Nova? Ou dos encontros com as linhagens dos homens e mulheres das faldas do Marão, da Serra da Estrela, do Entre Douro e Minho, e de quem Miguel Torga foi ainda representante duplamente, assinalados no seu valor e destemor, homens duros como as fragas geladas, com a pele curtida pelas tarefas ao ar livre, mas com almas contendo tesouros imemoriais da sabedoria tradicional portuguesa?
Ora tudo isto renasce e se agiganta, se torna presença viva no coração, com uma história, uma recordação, uma poesia do João de Deus Rodrigues, que surge então quase como um mago, capaz de trazer ao de cima a vida que parecia estar já verdadeiramente sepultada e morta, num passado.
Não, desenganem-se, a invocação de S. Miguel não deixou ainda de vibrar algures na grande alma de Talhas, decerto invisivelmente, mas sem dúvida clamando hoje, como sempre, “Quem como Deus?”, e estimulando os habitantes de Talhas a erguerem-se acima dos medos e de subserviências, e a terem nas suas almas a invocação de Deus, a fonte mais profunda de amor e de verdade, e a vontade de lutarem pela preservação dos seus valores, exteriores e interiores.
Não, desenganem-se, de Luciano Amadeu Teiga, o avô do autor e seu primeiro iniciador, nunca mais se poderá dizer que está morto, pois da leitura destas páginas, e sobretudo dos poemas, nos quais nos surge como o mestre do jovenzinho curioso e inocente, ambos maravilhados perante a grandeza e os mistérios deste universo, ele ressurge. E, auxiliados pela bela fotografia da família, o que pode obstar a que entremos em relação espiritual com ele, onde quer que esteja nas muitas mansões ou talhas (divisões, níveis) do reino de Deus?
Instrutivo exemplo então para todos nós, a gratidão que escorre pelos lameiros deste livro e que alimenta os leitores como a desejada água a erva que os beiços doces das vacas de olhos inocentes continuam hoje como antigamente a comer.
Sim, é um toque a rebate aquele que João de Deus Rodrigues, qual criança empoleirada na torre, que como ele assinala está dedicada a Nossa Senhora, Nossa Dama, Alma Mundo, Princípio Feminino Divino, Santa Sophia, desfere tocando os sinos, não para umas das festas que tão saborosamente reconstitui, mas na urgência de que as pessoas lúcida e objectivamente vejam quais são necessidades mais prementes da sobrevivência humana e cultural das aldeias, e juntem esforços tanto para projectos comuns, como para que muito do dinheiro da União Europia não seja só comido pelas grandes estradas e pelas obras dos partidos políticos, e chegue a elas, nem que seja como numa noite de Inverno um fiozinho de azeite, que é luz e calor, alimento e amor.
Sim, o autor apela a que saibamos atirar para as casas um dos outros umas penicadas de nozes e figos, que saibamos subir ao mastro ensebado e partilhar o bacalhau, que saibamos ir trabalhar cooperativamente nas épocas das grandes lides agrícolas, ou nas obras de interesse comum da aldeia, da região. 
Que mais realçar na obra de João de Deus Rodrigues, ele que até agora trabalhava criativamente mais com a pintura, oferecendo-nos algumas exposições das suas obras, sempre de temática rural?
As descrições do ambiente e vida transmontana, e que até aos anos 60 ainda tinha muito de medieval, com as suas diferentes tarefas agrícolas e profissões típicas, valores, devoções (entre as quais se destacam as do Nosso Senhor dos Desamparados, como que acusando o poder central do desamparo), orações, costumes, folguedos, serões, etc. Tudo isto ergue-se em páginas por vezes capazes de nos tocar emotivamente, servindo para os mais jovens e as gerações futuras de Talhas, de Morais, de Izeda, saberem o valor das suas raízes, os veios que sustentaram uma vida dura mas integra e pura, com tantas tradições e laços à natureza e que, embora sepultados debaixo da vida consumista e americanizada que a televisão e a vida moderna despejam diariamente sobre todos, poderão outra vez vir ao de cima e de novo sustentar e alegrar as pessoas.
Sim, por toda a parte, começa a assistir-se já a uma revalorização do património ambiental, artesanal e cultural, e certamente que os habitantes de Talhas, descendentes daqueles que em tantas festas e costumes se uniam, saberão descobrir o que não se pode perder, lembrando eu, por exemplo, as festas do Espírito Santo, certamente um dos veios mais importantes da Tradição espiritual portuguesa, e que realizadas em Talhas no cimo dum monte apontam para essa Montanha Primordial, morada dos deuses, ou dos mestres e santos, ou seja, daqueles que da lei da morte se libertaram, daqueles que são portadores do cálice do Bem Comum, do santo Graal, da ligação ao Espírito e a Deus, e que constituem o corpo místico de Cristo e cujas bênçãos são a corrente do Espírito Santo, esta corrente que nos atrai e liga amorosamente e sabiamente. E que fazemos votos seja invocada e comungada para sempre nas festas do Espírito Santo, certamente na origem acompanhadas por momentos de encontros humanos livres e solidários e de um bodo gratuito e colectivo, de que já só restava recentemente o bacalhau e a aguardente da subida ao poste.
Como director do muito antigo e verdadeiro Almanaque Borda d’Água (donde fui despedido bastante ingratamente após três anos em que melhorei muito a iconologia, conteúdo e vendas) escolhi para 2006, o ano do centenário do nascimento de Agostinho da Silva, doze quadras suas para os doze meses e signos, interligando assim indissoluvelmente um mestre do Portugal do Espírito Santo com um almanaque que é [ou foi] um veio arquétipo da sua gente e saber.
Porque lembrar-me de Agostinho da Silva ao concluir este prefácio? Não só pela linha ou inspiração de Espírito Santo mas porque foi outro amante, como João de Deus Rodrigues, do mundo rural, ele que afirmou mesmo «o interesse fundamental que eu tenho no tal culto popular do Espírito Santo, de que sempre falo, é que ele é o projecto do povo português».
Que este livro de Talhas, com as suas valiosas histórias, poesias e memórias possa ser bem acolhido no interior das almas e aí floresça e frutifique para a eternidade, fortalecendo, pela memória, o amor e a vontade, os corpos espirituais dos mortos e vivos, que de algum modo entram ou entrarão (ao lerem-no) neste livro, destas aldeias de Talhas, Morais, Izeda e outras transmontanas, salpicos na terra do leito infinito da Via Láctea, e que, consciencializado e nele entrado, se revela como a Vida que é também Verdade e Caminho, e na qual somos todos peregrinos, irmãos e irmãs, filhos do mesmo Pai e Mãe Divino.

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