sábado, 25 de fevereiro de 2023

"Pascoaes, Cavaleiro do Graal", por Jacinto do Prado Coelho. Breve hermenêutica, por Pedro Teixeira da Mota. E com o seu último poema, Paz.

  Pascoaes, Cavaleiro do Graal por Jacinto do Prado Coelho.
Artigo na Revista Litoral, dirigida por Carlos Queirós, sobrinho de Ophelia, a namorada de Fernando Pessoa. Dado à luz no nº 5, de Dezembro de 1944.


O valioso ensaio de  Jacinto Prado Coelho (1920-1984), coroado por um título tão axial na tradição espiritual portuguesa, embora por vezes algo mitificante é, contudo, o fruto de uma admiração e mitificação naturais num jovem de 24 anos( e que viria a ser o editor da obra completa de Pascoaes editada pela livraria Bertrand), tanto mais que Teixeira Pascoaes (1877-1952) estava ainda vivo e os outros principais cavaleiros de demanda da sua geração literária, tais como Leonardo Coimbra (1883-1936) e Fernando Pessoa (1888-1935),  já tinham desencarnado (só restando Jaime Cortesão (1884-1960) e, de certo modo menor, António Sérgio (1883-1969)  e alguns da Seara Nova.                                                                             Nele destacaremos, no início, a valorização da forte capacidade de interioridade contemplativa de Pascoaes e da sua dedicação plena à Montanha (o santo Marão), eixo do mundo, e ao "Absoluto", para que estava fadado não só por ter nascido e viver junto ao Marão mas pela sua misantropia e genética, dura na sua face talhada no granito, deixando abrirem-se as pupilas para o milagre do que a sua imaginação consegue sentir ou descortinar no que vê e o rodeia, ou no que pensa, imagina, sonha e escreve. Há contudo algum exagero na capacidade de transcender o tempo, e viver no eterno, ainda que qualquer criador, e sobretudo mais isolado como viveu a partir de dada altura Pascoaes, domina bastante mais a variabilidade do tempo e o doma ou aprovisiona nas correntes caudalosas da sua criatividade. Também as aparições que, na sua consciência de escritor, se substituem às coisas e episódios não são ainda eternidade mas apenas presenças energéticas, astrais, anímicas, e por onde a sua imaginação e associações de pensamentos partem a grande velocidade. Igualmente falar-se no apego constante ao inefável parece exagerado, pois Teixeira Pascoaes não estaria assim tão  intimamente ligado  ao inefável (sobretudo nos seus níveis mais elevados), no seu afã de escritor, embora muito grande fosse a sua sensibilidade astral, telúrica, lusitana e apego à religião pagã e cristã dos nossos antepassados e forte ainda a consciência das limitações do pensamento e da palavra face ao subtil e ao espiritual; e nem precisamos de mencionar o Absoluto transcendente, mas que Prado Coelho nomeia e de certo modo Pascoaes também adopta, numa terminologia algo redutora face ao abismo pluridimensional que separa a consciência normal humana de tais níveis ou mesmo Primordialidade....


Destaque para esta afirmação muito profunda: "pensar o que pensamos ( e eu diria, intuímos, vemos), em silêncio e não o que dizemos em palavras imaginado que foi isso que foi pensado". Mas quem pensa, perguntaremos? Quem é o pensador vidente que vê antes de nomear e falar? Estaria Pascoaes  a chamar ou a referir o espírito ou o eu puro capaz de pela sua alta intenção e pura observação nem sequer necessitar de soletrar?  Jacinto do Prado Coelho vai mais na direcção de que há uma presença metafisica que perpassa em frémito pelos seus versos, e que seria o próprio Deus que o visitaria, como escreve, mas devemos questionar se é ele jovem ensaísta teórico lisboeta que lhe atribui tal graça ou se foi "a águia do Marão" que o disse, tanto mais que nos seus últimos textos um certo ateísmo, anarquismo e cristianismo se fundem na sua identidade confessada (leia-se a Minha Cartilha, no blogue já comentada, ou mesmo os seus Últimos Versos, já póstumos), em que se deixou provavelmente prender demasiado na concepção judaico-cristã de Deus, ainda que tingida por um paganismo poético, mas que não foi verdadeiramente ou fundamente  realizado seja na vera Divindade que alguns místicos conseguiram, seja no amor unitivo com a mulher, seja num panpsiquismo ou ainda numa clarividência dos Anjos e Deuses, como alguns filósofos e iniciados pré-cristãos alcançaram.

A aparição de Deus a Teixeira de Pascoaes, afirmada por ele, é explicitada por Jacinto do Prado Coelho, como sendo a Unidade da alma do Mundo ou, acrescentaremos, o Logos spermatikoi, a Inteligência infundida, o que não é bem a Divindade, seja transcendente nem imanente, mas apenas a sua vida ou a sua ordem implícita ou se quisermos inteligência subjacente. E que se revelará depois na poesia, e como Logos, platónico e ao qual o Pascoaes naturalista fugia,  dá e informa a alma e o sentido das relações energéticas de tudo...
Do que Prado Coelho foi escolhendo de citações na obra de Pascoaes vemos que é angelizado forçada e algo incorrectamente com a ideia que os mortos vivem a vida pura de lembrança, ou seja, nós é que os imortalizaríamos pela lembrança (e donde a saudade), quando na realidade eles próprios essa memória-lembrança possuem e se podem deter nela por muito tempo e por diversas razões operativas e metamorfoseantes, e quando estão mais activos no além, por já terem despertado em vida para a sua identidade espiritual...
Neste valioso ensaio de Jacinto Prado Coelho,  podemos ver já na página seguinte a desmistificação que fez anteriormente, ao reconhecer quão ilusória e frágil é a poesia (meramente) imaginativa e quimérica, que se ilude frequentemente nas fantasias que imagina ou desenvolve, por mais nocturnas que sejam, pois não ela está assente numa visão interna ou subtil da realidade, num desabrochar equilibrado e consciente dos seus sentidos espirituais...
Esta terceira página, muito rica de caracterizações, tem contudo alguns erros, decorrentes por Jacinto Prado Coelho pouco conhecer dos mundos subtis e espirituais, ou ainda da existência da clarividência, ou mesmo o que é o caminho místico, pois ainda que tenha lido algo não tem experiência de tal e não consegue discernir com claridade se o que Pascoaes escreve ou descreve é realidade interior e verdadeira.
A imaginação, em Pascoaes, desperta, cria fantasias ou como Prado Coelho escreve, gera "um mundo quimérico de sombras impalpáveis", mas que o poeta no seu êxtase abraçaria e beijaria, para depois, passada tal excitação, se reencontrar de novo na miséria humana, algo que Pascoaes aceitaria humildemente, qual prelúdio da noite escura dos místicos, exemplarmente referida por S. João da Cruz. Ora o conhecimento astral, tão visível na penetração gnósica de Pascoaes, é fatalmente impreciso e ainda mais quando é bem maior a imaginação criativa do que a clarividência objectiva. E poderíamos certamente questionar-nos e tentar investigar com que vivências espirituais ou unitivas mais poderosas, e logo algo inefáveis, foi Pascoaes presenteado ou agraciado, ou se antes ele não se terá presenteado imaginativamente, como muitos poetas o fazem?  Cremos que certamente terá tido alguns momentos bem iluminativos seja na comunhão com a Natureza, numa interiorização rflexiva e meditativa, e em diálogos com amigos espirituais mais afins, tal Leonardo Coimbra e outros, como Sant'Anna Dionísio registou numa visita que fez a Gatão, e transcrevi para um artigo do blogue.
É bem discutível a oposição que Jacinto Prado Coelho estabelece entre S. João da Cruz, eminente teólogo e na demanda de uma regra, e  o poeta lírico sem gnose ou doutrina que balbucia cantos, já que S. João da Cruz embora tendo certamente que regrar-se a si e à sua confessada S. Teresa de Ávila, sobretudo pelos perigos inquisitoriais, mesmo assim demandava o graal do amor e do conhecimento e não a regra. Quanto a Pascoaes, apesar de livre pensador, anarquista e comunista em certos níveis e sem limites na sua imaginação, tinha muito boas leituras de teologia e história do cristianismo e alguma gnose esotérica (Rudolf Steiner, Edouard Schuré e o Phileas Lesbegue (1869-1958) e portanto não balbuciava liricamente, embora certamente exagerasse nas suas capacidades identificativas ou identitárias, ou na suas realizações interiores, natural num poeta telúrico, dedicadíssimo a uma escrita torrencial e aberto ao Infinito, ou ao mítico Absoluto.
Jacinto do Prado Coelho discerne todavia que noutros cantos se encontra em Teixeira de Pascoaes uma capacidade de, na noite e no silêncio da abóbada celeste contemplada, conseguir ir mais longe que as trevas e ver a luz (até a incriada, como o poeta pensa) e sentir a Divindade, algo que certamente Pascoaes terá realizado, seja na linha de um panpsiquismo, como Miguel de Unamuno quis, ou numa linha mais católica de pureza, esperança, alegria e moral, como Jacinto do Prado Coelho aponta, certamente algo condicionado pela mentalidade predominante na época. Tal paganismo era natural, enquanto alma vivendo na natureza, gentleman vivendo no campo e bastante comungante com a riqueza e o mistério dos seres que o rodeavam, emanados da subtil Divindade, que ele  demandou embora não tanto realizou intimamente, pois a sua melhor  teorização da religião, da religação a Deus, é sobretudo poética e panteísta, lusitana e saudosista. E nesta comunhão do corpo místico da Tradição espiritual portuguesa saudamos tanto Joaquim Teixeira Pascoaes, como Jacinto Prado Coelho, e relembraremos que na morte de Pascoaes, Jacinto, no número especial que os Cadernos de Poesia lhe dedicaram, escreveu e bem que: «quando Pascoaes, no seu caixão de verde pinho, foi descansar no cemitério rústico, libertou-se e ressuscitou, deixando este palco de personagens grotescas, obrigadas a serem o que não são. O corpo mal arrefeceu e já o Poeta se volveu num Mito. "A lembrança duma criatura é de natureza divina; as coisas que a sugerem são altares, aonde a Imagem está presente, mas invisível"»,  citação esta de Teixeira de Pascoaes que, numa rápida hermenêutica nossa, aponta para uma memória akásica ou astral de tudo, contendo todas as imagens do que se passou em qualquer lugar, ou então para a possibilidade de certos locais que nos lembram alguém permitirem evocar mais facilmente a sua alma, ou imagem dela, na nossa visão interior...
 
 Nestes tempos de tantos conflitos e pandemias, vacinas e novas ordens mundiais opressivas, fiquemo-nos com o último poema do seu livro Últimos versos, datado de Agosto de 1952, pouco conhecido e tão actual: 
                                                  PAZ
«Como ao terror do Inferno 
Sucedeu
O horror do Nada!
A inquietação moderna,
A antevisão
Da cósmica catástrofe
Prometida
Por sábios e teólogos
Apocalípticos.
Divino Orfeu, vem tu salvar-nos.
Tange, de novo, a lira!
Amansa as feras.
Que o teu cantar volatilize
A estátua em bronze do deus Marte!
E esculpa, em oiro amanhcente,
Sobre o mais alto
Pincaro do mundo
O Anjo simbólico [ou real]
Da Paz.»
 

2 comentários:

Maria de Fátima Silva disse...

Pedro, pelo que me foi dito, Pascoaes, vinha várias vezes visitar Anrique Paço D`Arcos a Lisboa. Poderemos pensar que não só vinha visitar o amigo como sentiria alguma necessidade de se embrenhar de vez em quando nos movimentos da cidade? e depois voltar para o seu casulo na montanha?

Belíssimo texto, Pedro. Muitas graças.

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Sim, Fátima, ele vinha voltamente a Lisboa provavelmente nesse sentido de visitar e dialogar com amigos e discernir melhor o que se passava a vários níveis. Graças!