Fernão Mendes Pinto (1513-1583) escreveu uma obra que atravessará os tempos como o melhor testemunho presencial dos portugueses no Oriente no tempo dos descobrimentos, já que, partindo de Lisboa em 1538 e regressando em 1558, passou por mil aventuras descritas magistralmente na Peregrinação, publicadas já só postumamente em 1641, com revisão e prováveis censuras de Francisco de Andrade e do padre Francisco Lucena, este quem biografará Francisco Xavier sem nunca ter saído de Lisboa e haurindo muito da Peregrinação.
Refere a famosa conversão de Fernão (por este mesmo bem descrita), como ele sentiu necessidade de aderir a uma via mais religiosa e entrar na milícia da Companhia de Jesus, onde esteve dois anos e a qual deu muito dinheiro, mas que depois resolveu voltar ao seu estado leigo e livre, o que ao longo do tempo a maioria dos historiadores jesuítas não perdoou. Mas como poderia um aventureiro, um cavaleiro do amor daquele quilate de sensibilidade, curiosidade e coragem, que gostava de ver teatro, pescar, caçar e admirar os templos e santuários japoneses deixar-se modelar por muito tempo pelos estatutos apertados da Companhia, talvez sentindo também desafinidades com alguns missionários de temperamentos mais extremistas e destruidores da variedade religiosa do género humano, tão patente no Japão?
A parte mais valiosa do capítulo interelaciona-se com essa universalidade religiosa latente, visceral ou implícita de Fernão Mendes Pinto (em cima numa sua hipotética imagem na igreja da Misericórdia, de Almada, onde faleceu) e, embora a obra dele possa não ser "exacta muitas vezes isso não implica que falte à verdade essencial das coisas", Armando Martins Janeira discorda, e com razão, do conhecido estudioso ou especialista de Fernão Mendes Pinto, George le Gentil que pusera em causa as narrações de disputas teológicas, algo que contudo veio a ser confirmado por outras fontes, e em especial a História de Japão de Luís Fróis, o insuspeitado missionário jesuíta e companheiro de S. Francisco Xavier. Oiçamos então Armando Martins Janeira:
«George le Gentil concebe "dúvidas sobre o relato das discussões de Xavier com os bonzos". Ora a verdade é que a discussão de Xavier com o bonzo Furucandono é o mais verosímil e hábil relato de uma discussão que é possível ter existido entre um missionário do carácter de Xavier e um monge budista. Todos os argumentos fundamentais que os budistas opunham aos cristãos são ali invocados: o argumento da reincarnação, baseada no budismo; porque negava o cristianismo alma aos animais?; porque não previu Deus, ao criar os anjos, a rebelião e a queda de Lúcifer, e, se a previu e é infinita a sua misericórdia, porque não a evitou, poupando tanto mal aos homens? porque não enviou Deus, ao mundo Cristo, seu filho, antes de Adão ser tratado pela serpente? Não falta mesmo a observação de que a pronúncia da palavra «Deus» em japonês soa como «Dai so», «grande mentira».
Ora de facto algumas destas questões eram complexas para Francisco Xavier responder, atado que estava a uma série de tradições, narrativas ou personagens do Antigo Testamento, tal o Génesis, a Serpente, Lúcifer, que na realidade são explicações míticas, susceptíveis de várias hermenêuticas simbólicas. Por outro lado algumas questões dos monges assentam numa oposição à concepção de Deus do Catolicismo que, entroncada no Jehova tribal e violento, fatalmente teria muita limitações, a que se acrescentaram as dos cristãos dos primeiros tempos que fizeram do mestre Jesus, Deus e reservaram só para ele, ou para os que que acreditavam nele ou na religião cristã, a única via de salvação de toda a Humanidade, mesmo para as almas do longínquo e extremo Oriente. E todos os que teriam vivido antes da vinda dos missionários estariam no Inferno, algo que até não incomodava muito o santo apóstolo do Oriente.
E continua «Quem haja lido os documentos da época e conheça o budismo sabe que estas eram as principais objecções postas aos missionários e às quais o budismo dá resposta mais satisfatória [em alguns casos...] do que a dada então por S. Francisco Xavier - que, segundo Mendes Pinto, respondia apenas que tais perguntas eram inspiradas pelo Demónio. E a bem da inteligência de Mendes Pinto se deve sublinhas que ele não parece convencido das razões dadas pelo santo para responder a "umas razões tão agudas"».
A bela homenagem do embaixador e universalista Armando Martins Janeira neste seu livro Figuras do Silêncio a Fernão Mendes Pinto e à sua Peregrinação, é justificada pois «transparece em todo o livro uma grande simpatia pelos países onde anda, a curiosidade e o gosto de descrever costumes exóticos, empregar frases de estranhas línguas, aventurar-se a experiências raras. A linguagem florida e verbosa dos diálogos em que intervêm orientais ou de cartas e mensagens a estes atribuídas mostram a profunda influência asiática que Mendes Pinto sofreu». E acrescenta algumas apreciações dele sobre o Japão: «gente muito hospitaleira» e «naturalmente muito bem inclinada e conversadora». «São mais ambiciosos de honra do que todas as outras nações do mundo». «É a nação mais sujeita à razão que todas as outras». E que Fernão Mendes Pinto gostava de «ver os templos dos seus pagodes, que eram de muita majestade e riqueza».
Sem dúvida Fernão Mendes Pinto, que fez quatro viagens a Kiushu, e «numa delas, como embaixador do vice-rei da Índia, entregou a carta que deste levava ao dáimio do Bungo» entre os ocidentais, «é o primeiro escritor japonizante», e é com razão que hoje em dia ainda é celebrado anualmente com bastante amor na ilha de Tanegashima com um original matsuri, ou procissão-cortejo namban, isto é, dos bárbaros do sul, que parte dum templo xintoísta, já que levam «aos ombros o grande andor xintoísta - omikoshi-» como bem relata e ilustra neste seu tão valioso livro Figuras de Silêncio. A Tradição Cultural Portuguesa no Japão de hoje. Anote-se que em 1988, Avelino Rodrigues, Leong Ka Tai e Gonçalo César de Sá deram à luz pelo Instituto Cultural de Macau, um grande e belo livro Tanesgashima, a ilha da espingarda portuguesa, com a seguinte dedicatória: «Ao POVO DE TANEGASHIM, que se revê na história do primeiro encontro da Europa com o "País do Sol Nascente", e a MARTINS JANEIRA, que descobriu Portugal no Japão, os autores dedicam esta memória.»
De facto, por duas vezes participou em tal matsuri e cortejo namban que se realiza na cidade de Nishimo Omote, e em que se homenageia particularmente Fernão Mendes Pinto, Almirante e com sua amada Wasaka, mas é no 6º capítulo consagrado a Tanegashima, A pequena ilha japonesa onde os «bárbaros» portugueses aportaram a primeira vez que partilha de modo belo as intuições sentidas diante do oceano por onde chegaram pela 1ª vez os portugueses em 1543, e ao mesmo tempo que no «Templo xintoísta, ao fundo, o Espelho sagrado reflectia o Sol, de que é símbolo, trazendo a presença da Divina Amaterasu, que um dia foi invocar, ao nascer do Sol [tal como eu...], no cimo do sagrado monte Fuji, em preito ao povo japonês, do qual é benévola protectora. Contemplando aquele símbolo dos homens do mar [o monumento aos Navegadores de Portugal, da autoria de António Duarte], senti, pela primeira vez, tão distintamente como se sente o palpitar do coração, que a alma se me iluminava e me erguia à grandeza de um momento raro [o que no Japão se designa por ichi-go ichi-e].
E, diante daquela multidão de japoneses, comecei vibrante, a dizer, em português, o meu discurso: "Aqui, em frente ao mar antigo, quiseste erguer um monumento à coragem. Aos homens de coragem que há mais de quatro séculos, cortando o mar desconhecido, aqui vieram só pela aventura humana de encontrar-vos. Não vinham apenas de estranha e longínqua terra, vinham de outra civilização - confiados na amizade dos novos homens que procuravam - trazer-vos a cultura da Europa.
O homem nasceu para ousar: "viver não é necessário, é necessário navegar", era a sua divisa. Arrojados criadores de novo entendimento entre os homens foram os navegadores que esta pedra lusa simboliza. E audazes foram os japoneses, que, a alma ao Oriente fie, inspirados na civilização do Ocidente, criaram um grande país e estão a continuar o caminho da nova civilização universal que o Ocidente e o Oriente abraça.
Assim nós, homens do Presente, encontramos o sentido da vida dos homens do Passado, naquela comunhão de espíritos de que têm nascido as grandes obras que o tempo guarda.
Em nome de Portugal, entrego à ilha de Tanegashima este monumento - não só para que ele fique a testemunha a amizade do Passado, mas para que ele dê corpo a um grande sonho de beleza e fraternidade, e o leve, como uma semente, aos homens [e mulheres] do Futuro.»
E aqui e agora estamos nós hoje, gratamente, nesta "comunhão de espíritos de que têm nascido as grandes obras que o tempo guarda"...
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