quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Erasmo, mestre do passado, exemplo do presente e impulsionador do futuro. E com frases ou ditos bem inspiradores...

        Erasmo, mestre sempre actual e amigo e inspirador perene....

   Pequena homenagem e evocação neste seu dia de anos, pois nasceu perto de Roterdão em 28 de Outubro (dia de S. Erasmo), de 1466 a  1469, lembrando ainda o Prof. José Vitorino de Pina Martins, um erasmiano, amigo e sábio humanista, com quem muito convivi sob as asas espirituais de Pico della Mirandola e Marsilio Ficino, Thomas More e Erasmo... Muita luz e amor divinos neles e que as bênçãos divinas cheguem a todos nós...
                                    
  A expressão mestre é porém complexa, pois se no Oriente o “guru” tem um sentido claro de dispersador das trevas, ou ainda de ser pesado em termos de conhecimento e sabedoria, o magister latino (provindo do magis, mais), significando o que dirige, ensina, comanda, preside, acabou por receber na época significação menosprezadora por causa do vazio ou então a rigidez dogmática que por vezes encerrava, ou se ocultava, sob as pomposas vestes, títulos e posições. Assim os magisters nostris, e em Erasmo em especial os da universidade da  Sorbonne que tanto o atacaram, por ele denominados os teólogos sorbónicos e que, nas defesas por Erasmo dos ataques que lhe fizeram são ridicularizados. Mas também ele próprio se tornou um mestre para milhares e milhares de seres, pois se compulsarmos as três mil duzentas e tal cartas que se conhecem da correspondência de Erasmo (cerca de 2000 escritas por ele) veremos que muitos se dirigiam a ele nesses termos ou com imensa respeito ou mesmo devoção e desde reis a barqueiros...
E de facto Erasmo foi um mestre ou guru, no bom sentido de ter peso ou gravidade de sabedoria e simultaneamente de ser  clarificador, expulsando trevas de ignorância e de fanatismo, e impulsionador de qualidades luminosas nos que o liam ou ouviam, por várias razões das quais passo a enumerar algumas:
Mestre viajante, de trabalhos editoriais e de grandes sucessos, de polémicas e intervenções delicadas (já que foi constantemente atacado como causador de dúvidas, tal para S. Inácio de Loiola, ou mesmo herético), pioneiro do amor aos estudos das belas letras ou da cultura greco-latina, da poesia e eloquência à retórica e à gramática, mestre na pedagogia, desde a higiene à dietética, das crianças aos que se preparavam na arte de bem morrer, mestre no acesso das mulheres ao estudo, à educação e ao casamento livre e profundo, mestre enquanto dominava o latim e o grego e os partilhava,  mestre na firmeza da sua posição por si mesmo, não se deixando influenciar demasiado pelas pressões viessem de quem viessem. E escrevi o “demasiado” porque, por exemplo, acabou por ter de retirar algo da sua ousadia, tal a designação inicial de Novo Instrumentum, para a  primeira edição da sua tradução original do Novo Testamento, que ainda assim depois prosseguiu em novas impressões anotadas, e que o próprio Papa Leão X aprovou, protegendo-o de sorbónicos e zelotas. Onde teve de recuar também foi na sua crítica ao coma joanino, uma interpolação do Espírito Santo tardia no Evangelho de S. João I . 5:7. e que  introduzira  " Porque três são os que testemunham no céu, o Pai, o Filho e do Espírito Santo", e que no seu Novo Testamento retirara, mas que foi forçado na sua 4ª edição a repor. Era assim também um mestre de paciência humilde, ainda que se defendesse, face aos indoutos e falsários...
                     
Mestre da união da sabedoria dos antigos povos e civilizações com as fontes autênticas do Cristianismo, os Evangelhos e os escritos dos primeiros Padres da Igreja que ele traduzira, purificara, comentara e editara, valorizando bastante Orígenes, Basílio, Ambrósio e Jerónimo.
Mestre da crítica e da ironia, bem desenvolvida no Julio Exclusus (uma crítica ao violento Papa Júlio III e que publicou e manteve anónima), nos Colóquios e sobretudo na sua obra prima o Elogio da Loucura, mestre da cultura europeia letrada (que está ficar cada vez mais desfigurada, desenraizada e superficializada), mestre de príncipes, mestre dos cristãos (frase de um correspondente em Espanha), mestre da concórdia, mestre da paz (na altura designada por irene, do grego), ou irenismo - pacifismo, do qual é um exemplo a sua obra Consulta acerca da utilidade da guerra aos turcos, hoje em dia tão necessária face ao imperialismo destrutivo do petrodólar e seus coligados.
Neste sentido, irenaico, escreveu: «O importante, onde se deve aplicar toda a nossa energia, é a curar a nossa alma das paixões: Inveja, ódio, orgulho, avareza, concupiscência. Se não tenho o coração puro, não verei a Deus. Se não perdoar ao meu irmão, Deus não me perdoará... S. Agostinho encontrou um ou outro caso onde não se reprova a guerra: mas toda a filosofia de Cristo a condena. Os apóstolos reprovam-na sempre, e os doutores santos que a admitiram em certos casos, em quantos outros não a condenam? Porquê procurarmos à custa duma passagem evangélica o com que autorizar os nossos vícios?»
Mestre de uma reforma pacífica, pelo auto-conhecimento e aperfeiçoamento dos cristãos, nomeadamente com o seu best-seller O Manual do Cavaleiro Cristão, para o que escreveu ainda o seu Modo de Orar a Deus (que traduzi com Álvaro Mendes, e comentei, nas Publicações Maitreya, em 2008),  e, pese a sua erudição e racionalidade, mestre de mística, esta considerada como o sumo Bem a ser procurado e que nos aponta sobretudo no Elogio da Loucura, na loucura dos amantes ou na intensificação do amor nos místicos, ou na de Jesus pela humanidade.
A sua modernidade está bem visível na profunda auto-consciência crítica (até a ironizar consigo próprio no Elogio da Loucura ou no Ciceroniano), na percepção da relatividade das coisas e da própria verdade, e da fragilidade do conhecimento humano, nomeadamente nos aspectos religiosos (“anotação ridícula", "lapso miserável", "engano”, surgem nas notas que fez ao Novo Testamento, em relação às interpretações que S. Tomás de Aquino fizera), donde uma reserva ou mesmo negação do valor e eficácia de autoridades fracas, superstições, rituais, dogmas, fanatismos e seitas.
Mestre na valorização da transformação interior, da metanóia a partir da experiência espiritual e da vivência das doutrinas e ensinamentos. E na valorização da convicção pessoal obtida por esforço ou studium, nomeadamente dos textos mais sagrados para se transformar a mente e o coração e assim podermos comungar melhor no corpo místico de Igreja e da Humanidade, formada dos seres piedosos e dos anjos, dirá...
A actualidade das visões e posições de Erasmo em termos de política pode ser realçada talvez para castigarmos rindo  dos reis, governantes ou banqueiros modernos que nus sempre estão e vão e despojam a muitos: adágio A Mortuo I, IX. 12 : «Não há pacto nem limite, cada dia eles inventam novas formas de impostos, e o que quer que tenha sido introduzido para satisfazer uma necessidade momentânea retém-no muito agressivamente.”
 A afirmação de Erasmo como mestre espiritual da Europa, da Cristandade e da Humanidade pode ser sumarizada em sete razões principais:

Porque demonstrou  que a educação, o studium, o diálogo, o amor, a ligação espiritual, a concórdia e a paz são a base das civilizações e da humanidade. E que os humanistas estavam a ser e podiam ser os  fermentos de tal, nos locais de ensino, nas cortes e nas sodalidades e república literária que constituíam.

Porque mostrou que há um trabalho criativo e persistente fazer-se sobre os instintos e os desejos, a palavra e a escrita, a mente e a alma na base do estudo e do amor. E assim conseguiu equilibrar as suas necessidades afectivas e as de recolhimento e solidão, derramando-se em mil cartas...

Porque foi bastante crítico dos egos e dos hábitos,  dos preconceitos e da sede do poder, das falsas autoridades e opressões da liberdade, não recuando face às polémicas que lhe lançaram, antes desenvolvendo uma metodologia moderna de mostrar as fragilidades das opiniões, qualificações e motivações dos outros e, apoiando-se em provas e em citações de autoridades indiscutíveis, e de apresentar os seus argumentos e conclusões convincentemente.

Porque valorizou muito uma piedade docta e o amor ao próximo, no que chamava a filosofia de Cristo, sem dúvida o seu mestre principal, embora também tivesse valorizado Aldo Manutio, Jean Vitrier e outros. Esta aceitação do mestre  não implica repudiar o  génio próprio ou individualidade, o qual deve estar ao serviço criativo da Humanidade, da sabedoria e da Divindade.

Porque valorizou bastante o sermo, a palavra, o logos, a conversa, a sinceridade, e o seu uso nas orações, escrevendo mesmo algumas que deixou para a posterioridade, a par do seu entendimento do Modo de orar a Deus.


Porque foi um mestre da meditação e da oração, do controle dos pensamentos e do ego e admitiu que a unificação interior espiritual e  a união proporcionada ou adequada com Deus são potenciais de todo o ser humano e que os estados de graça, de  êxtase, rapto, bem-aventurança ou expansão de consciência podem acontecer a qualquer momento para quem avança e aspira correcta e esforçadamente no Caminho diário.

Concluamos com alguns dos seus ditos magistrais e que nos ajudam a controlar, harmonizar e espiritualizar a nossa vida e alma: 

«A luz da fé agudiza o olhar espiritual e permite-lhe de distinguir mais coisas que não podem os olhos do corpo.» De Concordia.

  «Eles têm o Espírito Santo nos lábios, mas um espírito muito diferente nos seus corações. Capita argumentorum contra morosos quosdam ad indoctos

«Têm mais as Musas e as Graças no peito que nos quadros, mais nos costumes que nas paredes». Carta a John Botzhein.

 «Põe  diante dos olhos o Anjo custódio teu, que é assíduo espectador de tudo o que fazes e pensas». Enchiridion

«O olho da fé é verdadeiramente simples e como de pomba e contempla reverentemente Deus, o que Ele quis que conhecêssemos e não perscruta curioso aquilo que le quis tapado, até que cheguemos aquele teatro celeste em que Ele próprio e claramente permite ser contemplado completamente pelos nossos olhos mais purgados ou purificados.» De fide et symbolo

    Ego aliam artem notoriam scientiarum non novi quam curam amorem et assiduitatem" Colóquios. Concio sive Menardus. «Eu não conheço outra arte  mágica das ciências que a aplicação, o amor e a assiduidade.»  

 «Aquele que ama com intensidade ou transporte não vive, para assim dizer, em si, vive no objecto do seu amor e, quanto mais de si mesmo se separa para se identificar com o objecto amado, mais perfeita é a sua ventura ou felicidade». Elogio da Loucura.

 Traduções de uma das suas mais belas frases ou mantras:

Ego mundi civis esse cupio, communis omnium vel peregrinus magis.

 «Eu desejo ser chamado um cidadão do mundo, um amigo de todas as nações do Universo.», trad. de Albert Maison.

 «Eu desejo ser cidadão do mundo, pertencendo a todos ou mesmo mais peregrino.», trad. de Pedro Teixeira da Mota. 


Sancte Erasmo, ora pro nobis… Sancte Erasmo, ora cum nobis

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