Erasmo, mestre sempre actual e amigo e inspirador perene....
Pequena homenagem e evocação neste seu dia de anos, pois nasceu perto
de Roterdão em 28 de Outubro (dia de S. Erasmo), de 1466 a 1469,
lembrando ainda o Prof. José Vitorino de Pina Martins, um erasmiano,
amigo e sábio humanista, com quem muito convivi sob as asas espirituais
de Pico della Mirandola e Marsilio Ficino, Thomas More e Erasmo... Muita
luz e amor divinos neles e que as bênçãos divinas cheguem a todos
nós...
A
expressão mestre é porém complexa, pois se no Oriente o “guru” tem um
sentido claro de dispersador das trevas, ou ainda de ser pesado em
termos de conhecimento e sabedoria, o magister latino (provindo do magis,
mais), significando o que dirige, ensina, comanda, preside, acabou por
receber na época significação menosprezadora por causa do vazio ou então
a rigidez dogmática que por vezes encerrava, ou se ocultava, sob as
pomposas vestes, títulos e posições. Assim os magisters nostris,
e em Erasmo em especial os da universidade da Sorbonne que tanto o atacaram, por ele denominados os teólogos sorbónicos e que, nas defesas por Erasmo dos ataques que lhe fizeram são
ridicularizados. Mas também ele próprio se tornou um
mestre para milhares e milhares de seres, pois se compulsarmos as três mil duzentas
e tal cartas que se conhecem da correspondência de Erasmo (cerca de 2000 escritas por ele) veremos que muitos se dirigiam a ele nesses
termos ou com imensa respeito ou mesmo devoção e desde reis a barqueiros...
E de facto Erasmo foi um mestre ou guru, no bom sentido de ter peso ou gravidade de sabedoria
e simultaneamente de ser clarificador, expulsando trevas de ignorância
e de fanatismo, e impulsionador de qualidades luminosas nos que o liam
ou ouviam, por várias razões das quais passo a enumerar algumas:
Mestre
viajante, de trabalhos editoriais e de grandes sucessos, de polémicas e
intervenções delicadas (já que foi constantemente atacado como causador de dúvidas, tal para S. Inácio de Loiola, ou mesmo herético), pioneiro do amor aos estudos das belas letras
ou da cultura greco-latina, da poesia e eloquência à retórica e à
gramática, mestre na pedagogia, desde a higiene à dietética, das crianças aos que se preparavam na
arte de bem morrer, mestre no acesso das mulheres ao estudo, à
educação e ao casamento livre e profundo, mestre enquanto dominava o latim e o grego e os partilhava,
mestre na firmeza da sua posição por si mesmo, não se deixando
influenciar demasiado pelas pressões viessem de quem viessem. E escrevi o
“demasiado” porque, por exemplo, acabou por ter de retirar algo da sua ousadia, tal a designação inicial de Novo Instrumentum, para a primeira edição da sua tradução original do Novo Testamento,
que ainda assim depois prosseguiu em novas impressões anotadas, e que o
próprio Papa Leão X aprovou, protegendo-o de sorbónicos e zelotas. Onde
teve de recuar também foi na sua crítica ao coma joanino, uma
interpolação do Espírito Santo tardia no Evangelho de S. João I . 5:7. e que introduzira " Porque três são os que testemunham no céu, o Pai, o Filho e do Espírito Santo", e que no seu Novo Testamento
retirara, mas que foi forçado na sua 4ª edição a repor. Era assim
também um mestre de paciência humilde, ainda que se defendesse, face aos
indoutos e falsários...
Mestre da união da sabedoria dos antigos povos e civilizações com as fontes autênticas do Cristianismo, os Evangelhos
e os escritos dos primeiros Padres da Igreja que ele traduzira,
purificara, comentara e editara, valorizando bastante Orígenes, Basílio,
Ambrósio e Jerónimo.
Mestre da crítica e da ironia, bem desenvolvida no Julio Exclusus (uma crítica ao violento Papa Júlio III e que publicou e manteve anónima), nos Colóquios e sobretudo na sua obra prima o Elogio da Loucura,
mestre da cultura europeia letrada (que está ficar cada vez mais
desfigurada, desenraizada e superficializada), mestre de príncipes,
mestre dos cristãos (frase de um correspondente em Espanha), mestre da
concórdia, mestre da paz (na altura designada por irene, do grego), ou irenismo - pacifismo, do qual é um exemplo a sua obra Consulta acerca da utilidade da guerra aos turcos, hoje em dia tão necessária face ao imperialismo destrutivo do petrodólar e seus coligados.
Neste
sentido, irenaico, escreveu: «O importante, onde se deve aplicar toda a
nossa energia, é a curar a nossa alma das paixões: Inveja, ódio,
orgulho, avareza, concupiscência. Se não tenho o coração puro, não verei
a Deus. Se não perdoar ao meu irmão, Deus não me perdoará... S.
Agostinho encontrou um ou outro caso onde não se reprova a guerra: mas
toda a filosofia de Cristo a condena. Os apóstolos reprovam-na
sempre, e os doutores santos que a admitiram em certos casos, em quantos
outros não a condenam? Porquê procurarmos à custa duma passagem
evangélica o com que autorizar os nossos vícios?»
Mestre de uma reforma pacífica, pelo auto-conhecimento e aperfeiçoamento dos cristãos, nomeadamente com o seu best-seller O Manual do Cavaleiro Cristão, para o que escreveu ainda o seu Modo de Orar a Deus (que traduzi com Álvaro Mendes, e comentei, nas Publicações Maitreya, em 2008), e, pese a sua erudição e racionalidade, mestre de mística, esta considerada como o sumo Bem a ser procurado e que nos aponta sobretudo no Elogio da Loucura, na loucura dos amantes ou na intensificação do amor nos místicos, ou na de Jesus pela humanidade.
A sua modernidade está bem visível na profunda auto-consciência crítica (até a ironizar consigo próprio no Elogio da Loucura ou no Ciceroniano),
na percepção da relatividade das coisas e da própria verdade, e da
fragilidade do conhecimento humano, nomeadamente nos aspectos religiosos
(“anotação ridícula", "lapso miserável", "engano”, surgem nas notas que
fez ao Novo Testamento, em relação às interpretações que S.
Tomás de Aquino fizera), donde uma reserva ou mesmo negação do valor e
eficácia de autoridades fracas, superstições, rituais, dogmas,
fanatismos e seitas.
Mestre
na valorização da transformação interior, da metanóia a partir da
experiência espiritual e da vivência das doutrinas e ensinamentos. E na
valorização da convicção pessoal obtida por esforço ou studium,
nomeadamente dos textos mais sagrados para se transformar a mente e o
coração e assim podermos comungar melhor no corpo místico de Igreja e da Humanidade, formada dos seres piedosos e dos anjos, dirá...
A
actualidade das visões e posições de Erasmo em termos de política pode
ser realçada talvez para castigarmos rindo dos reis, governantes ou
banqueiros modernos que nus sempre estão e vão e despojam a muitos:
adágio A Mortuo I, IX. 12 : «Não há pacto nem limite, cada dia
eles inventam novas formas de impostos, e o que quer que tenha sido
introduzido para satisfazer uma necessidade momentânea retém-no muito
agressivamente.”
A afirmação de Erasmo
como mestre espiritual da Europa, da Cristandade e da Humanidade pode ser sumarizada em sete
razões principais:
Porque demonstrou que a educação, o studium, o diálogo, o amor, a ligação espiritual, a concórdia e a paz são a
base das civilizações e da humanidade. E que os humanistas estavam a
ser e podiam ser os fermentos de tal, nos locais de ensino, nas cortes e
nas sodalidades e república literária que constituíam.
Porque
mostrou que há
um trabalho criativo e persistente fazer-se sobre os instintos e os
desejos, a palavra e a escrita, a mente e a alma na base do estudo e do
amor. E assim conseguiu equilibrar as suas necessidades afectivas e as
de recolhimento e solidão, derramando-se em mil cartas...
Porque
foi bastante
crítico dos egos e dos hábitos, dos preconceitos e da sede do poder,
das falsas autoridades e opressões da liberdade, não recuando face às
polémicas que lhe lançaram, antes desenvolvendo uma metodologia moderna
de mostrar as fragilidades das opiniões, qualificações e motivações dos
outros e, apoiando-se em provas e em citações de autoridades
indiscutíveis, e de apresentar os seus argumentos e conclusões
convincentemente.
Porque
valorizou muito uma
piedade docta e o amor ao próximo, no que chamava a filosofia de Cristo,
sem dúvida o seu mestre principal, embora também tivesse valorizado
Aldo Manutio, Jean Vitrier e outros. Esta aceitação do mestre não
implica repudiar o génio próprio ou individualidade, o qual deve estar
ao serviço criativo da Humanidade, da sabedoria e da Divindade.
Porque valorizou bastante o
sermo, a palavra, o logos, a conversa, a sinceridade, e o seu uso nas
orações, escrevendo mesmo algumas que deixou para a posterioridade, a par do seu entendimento do Modo de orar a Deus.
Porque
foi um mestre da
meditação e da oração, do controle dos pensamentos e do ego e admitiu
que a unificação interior espiritual e a união proporcionada ou
adequada com Deus são potenciais de todo o ser humano e que os estados de graça, de
êxtase, rapto, bem-aventurança ou expansão de consciência podem
acontecer a qualquer momento para quem avança e aspira correcta e
esforçadamente no Caminho diário. Concluamos com alguns dos seus ditos magistrais e que nos ajudam a controlar, harmonizar e espiritualizar a nossa vida e alma:
«A luz da fé agudiza o
olhar espiritual e permite-lhe de distinguir mais coisas que não
podem os olhos do corpo.» De Concordia.
«Eles têm o Espírito
Santo nos lábios, mas um espírito muito diferente nos seus
corações. Capita
argumentorum contra morosos quosdam ad indoctos
«Têm mais as Musas e as Graças no peito que nos
quadros, mais nos costumes que nas paredes». Carta
a John Botzhein.
«Põe diante dos olhos o Anjo custódio teu, que é
assíduo espectador de tudo o que fazes e pensas». Enchiridion
«O olho da fé é verdadeiramente
simples e como de pomba e contempla reverentemente Deus, o que Ele
quis que conhecêssemos e não perscruta curioso aquilo que le quis
tapado, até que cheguemos aquele teatro celeste em que Ele próprio
e claramente permite ser contemplado completamente pelos nossos
olhos mais purgados ou purificados.» De fide et symbolo
Ego aliam artem notoriam scientiarum non novi quam curam amorem et assiduitatem" Colóquios. Concio sive Menardus. «Eu
não conheço outra arte mágica das ciências que a aplicação, o amor e a assiduidade.»
«Aquele
que ama com intensidade ou transporte não vive, para assim dizer, em si, vive no
objecto do seu amor e, quanto mais de si mesmo se separa para se
identificar com o objecto amado, mais perfeita é a sua ventura ou felicidade». Elogio da Loucura.
Traduções de uma das suas mais belas frases ou mantras:
Ego mundi civis esse cupio, communis omnium vel peregrinus magis.
«Eu
desejo ser chamado um cidadão do mundo, um amigo de todas as nações
do Universo.», trad. de Albert Maison.
«Eu desejo ser cidadão do mundo, pertencendo a todos ou mesmo mais peregrino.», trad. de Pedro Teixeira da Mota.
Sancte Erasmo, ora pro nobis… Sancte Erasmo, ora cum nobis
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