quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Diálogos com José V. de Pina Martins em Sintra, em 1996: Erasmo, Lefèvre d' Étaples, Bataillon, Asensio e Margolin.

Transcrição de partes de um diálogo com o prof. José V. de Pina Martins, registadas no livro que me ofereceu  então, com alguns acrescentos de agora entre colchetes:
             José de Pina Martins a ler,  numa das vezes que me visitou, na década de 90.
Às 11:35 do dia 6.X.1996, estava à porta da sua casa [na rua marquês de Fronteira, nº4, em Lisboa] para o trazer, com sua mulher Primula, para um passeio por Sintra. Fomos então até Monserrate, apreciando a bela natureza do Outono serrano no caminho ondulante nas tonalidades mágicas de luz e verde. [Entramos no parque, fomos até ao palacete, detivemo-nos na espécie de varanda sobre o pequeno monte onde se ergue o palacete e aí desfrutámos da paisagem e do arvoredo]. Com sua mulher Primula falou-se do espinho na carne, referido por S. Paulo nas suas Epístolas, apontando-lhe eu para o aspecto sexual, o que ela nunca pensara, admitindo antes referir-se a qualquer doença.
O professor Pina Martins referiu um belo poema sobre o plátano redigido por um humanista português, Estácio de Sá e, lembrando-se da tapada de Amares, de Sá de Miranda [onde estivera em peregrinação pelas terras de Basto uma semana no Verão de 1971 com Eugenio Asensio, e mais tarde outra], transmitiu a frase correcta deste «maior humanista português» sobre os escravos:«Espíritos vindos do céu lançados na praça publica», [citação que mais de uma vez proferia em defesa da dignidade e fraternidade humana].
             Francisco Sá de Miranda (1481-1548), o poeta filósofo das terras de Basto, numa gravura de Martins da Costa, e a sua assinatura autógrafa.
Durante esta viagem a Sintra frequentemente lembrou-se do seu grande companheiro Eugenio Asensio, «o único que tinha para falar destas coisas»  e que vezes sem conta foi seu acompanhante em palestras peripatéticas pelas paisagens que atravessávamos da serra e do mar, [pois ambos partilhavam o mesmo amor pela sabedoria, os humanistas e os livros]. Dizia-se Asensio um aristotélico, um homem que apreciava a boa comida e vida, enquanto que Pina Martins seria mais platónico [ou seja, menos materialista e realista e mais dado à ascese, à contemplação, ao idealismo dos mundos e ideias subtis e espirituais].
Entre as obras que Asensio publicou importantes [tais como relativas a Portugal, até então perdidas, Do Príncipe Claudiano de Baltasar Dias, o Desengano dos Perdidos, de D. Gaspar de Leão, e a Eufrosina, de Jorge Ferreira de Vasconcelos] uma foi a raríssima edição espanhola [Sevilha, 1519] do Sermão do Menino Jesus, de Erasmo, que era recitado na noite do Natal, depois de ter sido decorado, por uma criança, pois pensavam que assim poderia penetrar mais nos auditores [ou mesmo, atrair mais bênçãos ou graça eficaz do mundo angélico ou divino, direi eu.]
Das relações de Erasmo com Lefèvre d'Étaples [1455-1536, notável humanista, trilingue e pietista, pioneiro da pré-reforma francesa, pois estivera em 1492 em Itália com Pico della Mirandola, Marsilio Ficino e Ermolau Barbaro ] conta como houve confrontos fortes, sobretudo sobre certas passagens das epístolas de S. Paulo, nomeadamente a Ep. aos Hebreus, cujas interpretações não coincidiam. Já com Lutero ainda mais forte foi tanto a discussão como o triunfo de Erasmo. 
[Neste último caso focando-se na defesa do livre arbítrio humano, contra o determinismo fatalista de Lutero. Quanto a Jacques Lefèvre d'Étaples relembre-se que foi o 1º tradutor em francês do Novo Testamento, 1523 (condenada por uma comissão Inquisitorial em 22.VIII.1525; e que utilizara a versão de Erasmo), e do Antigo Testamento, 1528, e por isso foi muito atacado, nomeadamente pelo famoso "sicopante sorbónico", Nöel Béda, que durante anos  "rosnara" contra Erasmo (sobretudo por ridicularizar a escolástica, não respeitar a versão da Vulgata e querer que as Escrituras chegassem a todos e mesmo nas línguas vulgares), valendo a protecção que o Papa Leão X, um humanista, que fora condiscípulo do nosso Aires Barbosa, lhe deu].
       1ª pág. da edição de 1519 da versão grega e latina do Novo Testamento, de Erasmo.
Com efeito, Erasmo, nas anotações à sua versão do Novo Testamento, na versão inicial, de 1515, intitulado mesmo arrojadamente Novum Instrumentum, explicava as divergências em relação à versão comentada de S. Paulo, de Lefèvre d'Étaples, de 1513, nomeadamente no passo da Ep. aos Hebreus, II, 7º onde ele lia que "Cristo tinha sido feito menos que Deus", enquanto Erasmo preferia o "menos que Anjo", pois estes seriam impassíveis e Jesus sentira e sofrera; e que descera a uma posição ínfima, qual pequeno verme, havendo ainda alguns pontos melindrosos na assunção de Jesus ser plenamente Deus.
Lefèvre achava tal liberdade de linguagem e de busca interpretativa perigosa e contra-atacou com certa indignação tanto mais que Erasmo considerava que a Epístola aos Hebreus nem sequer seria de S. Paulo e não fora redigida em hebraico. Erasmo replicou-lhe com grande sabedoria e até ironia. Houve neste debate algo do confronto entre um ser mais independente na sua racionalidade e crente na existência da alma e do espírito humano contra a mera fé salvífica nas Escrituras (e sua leitura) e o menosprezo do valor ser humano, o que tanto caracterizará Lutero e os protestantes.
Da Hierarquia Celestial, do pseudo-Dionísio, comentada por Lefèvre d'Étaples
 Também houve  desacordo em relação à existência de Dionísio Areopagita, discípulo de S. Paulo, arcebispo em Paris, o fundador da divisão clássica da hierarquia angélica no Cristianismo, obra editada e comentada por Lefèvre D'Étaples e que Erasmo considerava um pseudo-discípulo, sendo a sua visão dos Anjos, podemos nós hoje dizer, meramente teórica e baseada no neoplatonismo de Proclus (412-485), com a sua teologia platónica, e os seu vários níveis da Realidade, emanados desde o Um inefável.] 
Almoçamos comida vegetariana depois de uma breve oração, proferida primeiro por Primula, de agradecimento a Deus e de lembrança dos pobres; e outra dele, de mãos dadas os quatro [Maria, estava também]. Curtos momentos para o que poderia erguer-se como coluna de Amor entre a Terra e o Céu, mas que, nos momentos de silêncio numa das faldas ocidentais da serra (onde nos encontrávamos, embora dentro de uma casa alugada onde vivíamos], se pode de certo modo mais facilmente realizar-se. E até já antes quando contemplávamos os glóbulos [ou partículas] de prana [do sânscrito, energia vital] junto ao convento dos Capuchos, [tal ligação se sentira.]
Falámos da teoria do androginato, contando ele algumas partes do Banquete, de Platão, [que especulam pioneiramente sobre tal primordial mistério] e Primula ouviu mais atenta às minhas explicações sobre o que significava "tornar-nos crianças", nas quais citei mesmo o Evangelho de S. Tomé, concordando na sua ideia de confiança de uns para com os outros, e realcei a ideia de intuição [ou seja, que se formos transparentes e puros, pouco carregados de má informação ou desinformação, e se meditarmos com regularidade, podemos captar mais a verdade dos factos ou o interior dos seres...]
Já no regresso, perto de Lisboa, acerca do livro de António Damásio, O Erro de Descartes, criticou tais fanfarronadas  improcedentes, embora reconhecesse que cientificamente até já Pascal provara alguns erros nas obras de Descartes, mas o princípio cogito, ergo sum (penso, logo existo ou sou) mantinha-se [válido.]
 
 Referi-lhe alguns dos platonistas ingleses [do séc. XVII, em especial de Cambridge, que li mais, tais como Henry More e Ralp Cudworth, grande conhecedores da sabedoria antiga e das dimensões subtis que subjazem a triplicidade corpo, alma e espírito, e logo anti-mecanicistas e espiritualistas] e defendi a primazia do ser e do ver espiritual sobre o pensar, julgo eu com concordância dele [mas certamente não de António Damásio que creio continuar a não reconhecer um eu espiritual, um centelha imortal no ser humano, considerando tal noção subjectiva do eu como uma mera manifestação de coerência inter-relativa de zonas cerebrais e sinapses, tal como me respondeu há já alguns anos numa conferência pública em Sintra nas duas perguntas que lhe fiz...].
Blaise Pascal (1623-1662) vivera só até aos 39 anos e a autópsia revelou que era quase milagre ter vivido tantos anos com um corpo tão doente. Daí a minha resistência ao pensamento tão angustiado, conflituoso e jansenista de Pascal (filósofo  cristão que Pina Martins gostou muito na sua juventude, publicando algumas obras sobre ele, sob o pseudónimo Duarte Montalegre, com que aliás assinou os seus livros de poesia...] 
[Relembro ainda que] aceitou a ideia de se editar Erasmo em português e referiu que  tinha já uma grande parte de uma obra [...] traduzida. Lembrou a defesa que Erasmo fez de Reuchlin e como conseguira que os dominicanos [mais extremistas] do Papado não fossem avante na destruição dos manuscritos pagãos [e hebraicos]. [Esta situação e defesa de Reuchlin teve o seu momento mais alto quando ele morreu em 1522, pois Erasmo consagrou-lhe logo um dos seus famosos Colóquios, A Visão, ou Entrada no Céu de Johann Reuchlin Capnion.]
Marcel Bataillon e Pina Marins. Com Eugenio Assensio, dialogaram muito, entre 1972 e 1977.
Contou ainda como conhecera pela primeira vez [um dos melhores conhecedores de Erasmo e do erasmismo] Marcel Bataillon [1895-1977, quando era estudante, em 1946, na Faculdade de Letras em Coimbra], puxado [no corredor para a sala da palestra] pelo [sábio professor] Joaquim de Carvalho [1892-1958, "uma espécie de Marcel Bataillon português"], que queria arranjar pelos menos uns vinte alunos que o ouvissem, e como Bataillon, vestido de cores escuras, lhe tinha parecido um eclesiástico a falar sobre as epístolas de S. Paulo [uma das obras  por Erasmo parafraseadas, ou seja, comentadas e partilhadas para muitos em toda a Europa, a par da sua versão anotada do Novo Testamento (200 edições no séc. XVI, desde a edição princeps em 1516), no seu afã de apresentar o que ele chamava a philosophia christi, o amor da sabedoria que unge, o amor de Deus e do próximo, em bom senso, não-violência e piedade, livre de superstições, ritos e observâncias, tal como o mestre Jesus vivera e exemplificara].
Já Jean-Claude Margolin [1923-2013, outro grande especialista de Erasmo, senão mesmo o maior, com vasta e valiosa obra publicada], quando veio a Portugal ficou muito satisfeito por ver imensos alunos com um ou outro dos seus livros nas mãos.»
                           
Aqui termina o registo muito abreviado de umas horas dialogantes com José V. de Pina Martins e sua mulher, e em que participei eu e a escritora Maria, com quem vivia então e que ficou escrito na página branca inicial do livro que Pina Martins me oferecera nesse mesmo dia, com a simpática dedicatória: «Ao Dr. Pedro Teixeira da Mota, espírito sensível às revelações (...) oferece "Eugenio Asensio Doutor honoris causa pela Universidade de Lisboa" - opúsculo em que se presta homenagem sincera a um outro grande espírito que já contempla directamente a presença divina. Com um abraço do seu muito amigo gratíssimo, José V. de Pina Martins, 6.X.96»

Última fotografia do notável humanista Sebastião Tavares de Pinho e sua mulher, numa homenagem em Lisboa, no centenário do nascimento de Pina Martins, no dia 23.I.2020. Luz e Amor para a sua alma!
 Possa esta comunidade ou corpo místico de sábios ou grandes almas, da qual invocamos  Erasmo, Lefèvre d'Étaples, Marcel Bataillon, Joaquim de Carvalho, Eugenio Asensio, Pina Martins, Jean-Claude Margolin e agora Sebastião Tavares de Pinho, inspirar-nos no ora et labora, no studium, acima de todas as correntes manipuladoras, conflituosas e desanimadoras que tanto destroem as melhores possibilidades dos seres e dos eco-sistemas, religando-nos mais à Divindade e à sua Unidade e fraternidade...
Hagia Sophia, ora in gloria pro nobis!

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