terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Sebastião Tavares de Pinho, Aires Barbosa e André de Resende. "Humanismo em Portugal". Homenagem na sua morte.

Sebastião Tavares de Pinho, com quem conversara há quatro dias, 23-I-2020, no intervalo da  sessão ordinária da Academia das Ciências que comemorou o centenário do nascimento de José Vitorino de Pina Martins, morreu no dia seguinte, 24,  quando regressava a Coimbra. Uma tragédia...
                 Sebastião Tavares de Pinho e a mulher na homenagem a Pina Martins
Abalado ainda por tão desgraçado acontecimento mais não posso que alinhavar um queixume, relembrar os nossos poucos encontros à volta de Pina Martins e do Humanismo, em Lisboa e Coimbra, e recensear algo dos seus dois volumes do Humanismo em Portugal, que me ofereceu há anos com generosa dedicatória («Ao Dr. Pedro Teixeira da Mota, com amizade e alta estima intelectual e humana, oferece, Sebastião T. Pinho») e que são profundos e detalhados estudos sobre pré-humanismo e o Humanismo em Portugal, já que dominava plenamente o latim e o grego, traduzindo constantemente textos que se tornavam assim mais facilmente legíveis ou acessíveis.  
Como se lê na sua biografia da Universidade de Coimbra, foi «Bacharel em Estudos Clássicos em 1971, licenciado em Línguas e Literaturas Clássicas e Portuguesa em 1972, doutorado em Literatura Latina do Renascimento em 1983, e professor catedrático desde 1992, (...), leccionando as cadeiras de Civilização Grega, Língua e Literatura Latina Clássicas, e Latim e Literatura Latina Renascentistas».
Chamado agora subitamente aos mundos espirituais, crente na imortalidade espiritual, como afirmamos nesse diálogo último em que contrapusemos ao envelhecimento e degradação corporal a força do espírito imortal em nós, usando mesmo ele dar coesão,  certamente que estará já a despertar ou mesmo a dialogar com alguns dos autores que mais amou, trabalhou e divulgou. E foram muitos, não só os citados neste livro em dois tomos, como em outros, desde os professores conimbricenses do séc. XVI a Luís António Verney. 
No 1º volume, o primeiro capítulo é consagrado à Corte de Aviz e o Pré-Humanismo, destacando as traduções de D. Pedro e da Escola da Corte, e o bom conhecimento de alguns autores greco-romanos que já então havia, patente nas obras que D. Pedro e seu irmão o rei D. Duarte escreveram ou encomendaram, com vários extractos significativos  transcritos.
O terceiro  capítulo trata de André de Resende (1500-1573),  formado em Espanha, França e Lovaina, e com amplas viagens na Europa, transcrevendo e traduzindo as cartas de improviso trocadas com o  cardeal-infante D. Afonso (1509-1540), ao qual o poeta Jorge Coelho  vaticinou o papado, bem com o sermão pregado por André de Resende no Sínodo de Évora de 1534.
                             Uma das valiosas obras de André de Resende
O quarto capítulo é consagrado a Lopo Serrão, médico e poeta, e ao seu tratado De Senectude, Da Velhice, Lisboa, 1579,  que mostra «como a poesia latina podia estar ao serviço da medicina gerontológica e da filosofia moral».
É o segundo capítulo que vamos comentar, consagrado a Aires Barbosa, nascido em 1470, em Esgueira, Aveiro, que fez parte da sua carreira estudantil em Salamanca e Florença, aqui chegando a mestre de Artes, conhecendo Hermolau Barbaro e Pico della Mirandola, aprendendo Arte Poética, Literatura Grega e Retórica com Angelo Policiano.
Em 1495 regressa à Península Ibérica e será professor em Salamanca até 1523, leccionando latim e grego e editando aí várias obras em prosa de teor didáctico e pedagógico, filológico, sobretudo. Quando regressa a Portugal é mestre na corte, dos irmãos de D. João III, até 1530, quando se recolhe a terra natal, Esgueira. Em 1536 publica nos prelos do mosteiro dos cónegos regrantes de Santa Cruz em Coimbra a sua obra mais famosa Antimoria, «o seu poema de maior fôlego, escrito contra a ironias de Erasmo expostas no «Elogio da Loucura» (o Encomium Moriae) - precisamente no ano da morte do humanista flamengo, em 1536.  
                                      Sancte Erasmus, ora pro nobis...
Marcel Bataillon, nos Études sur l' Humanisme au Portugal, 1974, também considera Antimoria "uma condenação deferente mas decidida da livre sátira de Erasmo", mas já  a José V. de Pina Martins, em Aspectos do Erasmismo de André de Resende, Lisboa, 1969, defende a hipótese de ter sido uma crítica não contra os fins prosseguidos por Erasmo, mas apenas quanto aos meios irónicos usados e que perturbavam a crença dos fiéis na Santa Igreja. E acrescenta: «trata-se de uma posição táctica, só formalmente anti-erasmiana, pois, de facto, defendem-se ideias e afirmam-se propósitos susceptíveis de serem entendidos e até integrados numa perspectiva teológica de cunho erasmista». 
  O Antimoria continha 50 epigramas em apêndice,  uns auto-biográficos mas a maior parte deles satíricos e didácticos, como nos explica Sebastião Tavares de Pinho:  
«Este combate humanístico registado na poesia de Barbosa abria-se em múltiplas frentes e revestia-se de vários aspectos: contra a preponderância dos juristas e canonistas, que depreciavam o estudo científico das línguas clássicas e cuja incultura e deturpação do próprio sentido das leis e da justiça Barbosa condenava (Epigramas 14, 15, 26, 27 e 48); contra os que desprezavam a função do «gramático» e contra a querela gramatical que por vezes se gerava em torno de matérias por vezes insignificantes (Epigramas 12, 28, 29 e 34), contra a ciência de lombada de certos pseudo-bibliófilos, contra a soberba dos autodidactas, a crendice dos astrólogos e os inimigos de Cícero (Epigramas 19, 24, 37 e 48)».
                            Antimoria eiusdem nonnnulla Epigramata, 1536.
A propósito de questão de  Aires Barbosa ter escrito  um livro de Retórica ou apenas alguns exórdios, Sebastião Tavares de Pinho oferece-nos explicações valiosas e práticas: «de todos os componentes de um estrutura oratória - exordium, narratio, probatio, refutatio e peroratio, para usarmos, por exemplo, a divisão adoptada por Quintiliano, - o exórdio (ou «princípio» ou «proémio», conforme as variações ou preferências de autores antigos) é aquele que nunca falta, dada a indispensável função que nela exerce de apontar e definir a finalidade do discurso, de criar no ouvinte as melhores condições de receptividade e, em última instância, quando tais funções pudessem ser supridas pelos outros segmentos oratórios, para, como diz Aristóteles (Retórica, 1416a), pelo menos servir de ornamento, pois, se um discurso não tem exórdio, dá ares de improvisado», e apresenta-se como um corpo sem cabeça, para usarmos a imagem do Fedro (264a) de Platão (...)
Dentro das suas principais funções, que o Estagirita [Aristóteles] compara às da proposição nos poemas homéricos e do prólogo na dramaturgia, o exórdio deve ser, segundo o mesmo autor, uma mostra, uma espécie de «exposição de mercado» de todo o tema da oração, de modo a fornecer ao ouvinte, desde o início, o seu fio condutor (1415a). Para Cícero, todo o proémio ou princípio está estreitamente conexo com o resto do discurso, não como um simples prelúdio musical que nada tenha a ver com o resto da peça, mas como um membro intimamente ligado ao seu corpo, e deverá conter como que em germe a causa inteira de que se vai tratar, facilitando o acesso ao seu desenvolvimento seguinte (Acerca do Orador, II,80,325). É sempre bom lembrar que a etimologia de exordium, da mesma raiz do verbo ordior - cujo sentido próprio é o de montar uma teia (donde, o português «urdir») -, tal como da palavra ordo, que significa «o arranjo dos fios ao começar da tecelagem» ou urdidura, assenta na mesma metáfora fabro-têxtil de textus. Ora, para que um tecido fabril saia perfeito, é necessário que ele parta de uma urdidura bem feita. Do exordium, do começo da composição de um texto oratório, depende, pois, o desenvolvimento acabado do discurso inteiro. É por isso que os princípios de retórica lhe deram particular importância. Como diz ainda o Arpinate [Cícero], (idem, II, 78, 315), é o exórdio que, por assim dizer, fornece a ideia do resto do discurso e lhe serve de recomendação; deve, pois, encantar e atrair imediatamente o auditório.
                                          Cícero: ora e labora...
É esta a segunda e especialíssima função do proémio: a de captar a benevolência, manter a atenção e gerar a docilidade do ouvinte. Todos os teóricos, desde os antigos aos modernos, insistem nesta ideia fundamental. Aristóteles, por exemplo, ensina como tal objectivo se pode conseguir: apresentar motivos de interesse de quem ouve, evocar matéria que lhe diga pessoalmente respeito, incluir factos que provoquem surpresa e agrado. (1415a-b). A Retórica a Herénio (I,4. e 6), que dedica várias páginas ao exórdio, começa por defini-lo como o princípio da oração por meio do qual o espírito do ouvinte ou do juiz se dispõe e prepara para ouvir» e mais adiante afirma: «O Exórdio consiste em tornarmos, desde o começo, o espírito do ouvinte apto a escutar-nos. Ele tem a finalidade de podermos manter os auditores atentos de dóceis e de captar a sua boa vontade». Cícero reitera as mesmas ideias no De Oratore, lembrando embora que a preocupação de prender o auditório deve manter-se também ao longo de todo o discurso.» 
Ficamos assim com uma boa visão da arte de começar bem um discurso....
 O 2º volume estuda no 1º capítulo a poesia, a epistolografia e o Humanismo do bispo D. Jerónimo Osório (na imagem), e do seu sobrinho Dr. Jerónimo Osório,  em cerca de 190 p. No 2º capítulo os padres José de Anchieta, Francisco Xavier, Manuel da Nóbrega e António Vieira, e no 3º capítulo leva o título de Humanismo e Helenismo no Colégio das Artes, onde inclui a literatura inédita dos séculos XVI e XVII existentes nos arquivos da Biblioteca de Coimbra respeitantes a oratória, teatro, poesia e filosofia. 
Sebastião Tavares de Pinho  era o coordenador científico do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, animando um grupo de cerca de 20 latinistas que têm vindo a  publicar muitos dos inéditos referidos.
Possam o seu exemplo e alma continuarem vivos e frutíferos em vários dos seus amigos ou discípulos....
Concluamos com um dos seus labores, um extracto do sermão de 1534 de André de Resende, acerca de união mística, pessoal ou comunitária: «Tal união não deve ser entendida como se fosse na essência ou por meio de uma similitude omnímoda, pois esta só é comum à santíssima Trindade; mas verifica-se uma determinada semelhança e participação na natureza divina, através da conformação da nossa mente com a vontade de Deus, do mesmo modo que Lucas afirma no primeiro capítulo dos Actos, que «A multidão dos crentes tinha um só coração e uma só alma».
Consigamos nós, a sós, a dois ou em grupo chegar a tal unificação das nossas forças psíquicas em abertura ou sintonia com a vontade ou amor ou bênção do Ser Divino. 
Possa Sebastião Pinho estar na luz e na comunhão dos santos humanistas...
                               Te Deum Laudamus, pintura de Bô Yin Râ

Sem comentários: