sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Humanismo, Irenismo e universalismo no Renascimento e nos Humanistas Portugueses. No centenário do nascimento do prof. Pina Martins.

Com o Humanismo, nos séc. XV e XVI, houve em verdade um renascer civilizacional, graças à antiga sabedoria greco-latina ter sido reaprendida e aprofundada nos seus melhores aspectos, tendendo a afirmar a dignidade humana, o seu livre arbítrio e a cognoscibilidade e aplicabilidade, pelo estudo das Belas Letras, do bem, do belo, do verdadeiro e do Divino no ser humano e na sociedade. A De hominis dignitate, Oração ou Elogio da Dignidade Humana, de Giovanni Pico della Mirandola, unindo as mais diferentes tradições filosóficas e religiosas na exaltação do ser humano como unificador do micro e do macrocosmos, é como que a declaração programática e evangélica do Renascimento.
                                    
                            Giovanni Pico della Mirandola, na biblioteca do prof. Pina Martins.
Operava-se um retorno às fontes do pensamento Ocidental mas também do Oriental, já que a ideia de uma continuada tradição religiosa, de uma Filosofia Perene, presente em todos os povos e nos seus livros, de que Hermes Trimesgisto era a figura semi-mítica arquétipa, foi aceite e demandada por alguns dos maiores humanistas, sobretudo os do sul da Europa, como Marsilio Ficino, Pico della Mirandola, Francesco Patrizi, Eugubino Steuco, etc.
A Villa Caregi, cedida pelos Médici, a Marsilio Ficino e onde se reunia a Academia Platónica.
    A Academia Platónica florentina, e restam-nos algumas descrições por Marsilio Ficino e outros, foi nesse aspecto exemplar e fecundante pois dela participaram em diálogos e celebrações cordiais e luminosas, homens de filosofia, ciência, arquitectura, poesia, pintura, política, que irradiaram depois teórica e praticamente para a civilização Europeia e Cristã, enquanto que Portugal começava a sua metódica colaboração ou contribuição ao nível das ciências da navegação que iria congraçar tão distantes povos e lugares, unindo mais directamente o Ocidente e o Oriente, embora nem sempre irenaicamente, isto é, pacificamente.
Isto aliás foi então tema de controvérsias ou dúvidas, pois se já  os grandes humanistas europeus eram claramente pela resolução do conflitos pela razão e o diálogo e não pela força bruta, e o próprio Erasmo criticava a política de monopólio das especiarias que D. João III lançava,  já os humanistas portugueses se viam confrontados com a ideia de guerra santa, ou que fosse defensiva, contra os inimigos da fé e da expansão em que Portugal estava envolvido.
Erasmo de Roterdão, a voz da consciência da Europa humanista e irenaica
Se hoje em dia por um lado a globalização do conhecimento e dos contactos entre os povos é vertiginosamente maior, com constantes descobertas e relacionamentos na mesma comum religiosidade e filosofia humana, já os ideais éticos e de conhecimento puro e fraterno, irinaico mesmo, ou seja pacífico, do Humanismo do Renascimento tornaram-se menos estruturantes e decisivos numa civilização moderna demasiada dependente dum sistema económico financeiro ao serviço pragmatizado de uns poucos, politizada inferiormente e violentamente, regida por algumas elites dominantes extremamente conservadoras das suas posições e altamente repressivas e manipuladoras dos outros em especial dos que os desmascaram ou contestam, apoiadas nas descobertas e aplicações de ciência e da tecnologia e com muito poucas considerações éticas, estéticas, religiosas e espirituais, antes tudo violentando numa hybris ou arrogância desmesurada, que tem o seu acume no imperialismo norte-americano e todas as guerras que tem suscitado. O contrário do ideal renascentista e já afirmado nos pitagóricos, do "nada em excesso", ou do adágio erasmiano de que "a guerra só é agradável a quem não a experimentou".
As cartas de homens obscuros, lançadas por Van Hutten e outros, ironicamente e com grande suceso, contra a repressão do pensamento e livre expressão
Sendo as fontes do conhecimento na época do Renascimento ao princípio os escassos manuscritos e depois a crescente impressão e acessibilidade do livro, tais demandas e realizações de conhecimentos e valores tiveram nos seres bilingues e trilingues ou mais, os que deram melhores frutos comparativos, na época sobretudo na leitura dos textos antigos de latim e do grego, ou ainda do árabe, hebraico, caldaico e persa, para se estudarem e publicarem melhor textos religiosos e filosóficos (basicamente, por um lado a Bíblia e os primeiros padres da Igreja, por outro os ditos autores pagãos, seja de literatura na sua elegância, seja na filosofia e espiritualidade), funcionando o latim e o grego como as línguas francas do conhecimento, da investigação, da retórica, embora lentamente nos séculos XVII e XVIII começassem a ser abandonados pelas línguas nacionais, que foram assim fortificando-se para poderem abandonar as matrizes antigas e começarem a gerar comunicações novas com as ressonâncias anímicas mais susceptíveis de serem compreendidas por todas.
 Hoje em dia, embora haja muitos investigadores dominando tais línguas e outras e partilhando os seus conhecimentos em publicações internacionais e em redes alargadas da web, a grande maioria da população sofre uma certa manipulação e massificação proveniente das fontes já distorcidas e obscurecedoras de informação anglo-saxónicas e uma consequente perda das possibilidades de aprofundamento fraterno das múltiplas notícias, sabedorias, criatividades e propostas de outros países e idiomas culturais que não sejam os nacionais, frequentemente de fraca qualidade, ou alguns poucos de outro países que se destacaram por grandes sucessos e saem da zona obscura e marginalizada do mundo não submetido ao império norte-americano.
A essência humanista, a dignidade do homem, a sua universalidade, a sua autodeterminação, ainda que nos nossos dias continuem teorizadas e até por muitos filósofos e grupos cultuadas, encontra contudo por parte das classes dominantes mundiais muita recusa, menosprezo ou mesmo repressão e opressão.
Marsilio Ficino, Giovanni Pico della Mirandola e Angelo Polizano num fresco florentino.
O ideal da República das Letras, pacífica, culta e prospera, sonhado por Marsilio Ficino, Pico della Mirandola, Erasmo, Lefevre d'Étaples, Froben e outros, utopizado por Thomas More, Francis Bacon, Campanela, Valentim Andrea e outros, com alguns reis ou príncipes receptivos, se volta e meia se reanima em alguma assembleia política, em algum congresso mundial, em algum colóquio mais internacional, em algum livro como a Utopia III de Pina Martins, logo se esfuma perante a titânica luta dos Estados pelos bens dos outros, destacando-se nisto o imperialismo norte-americano e dos seus aliados contra os que não se sujeitam a ele. 
    Jacques Lefèvre d'Étaples, impulsionador do livre exame das Escrituras, animador do cenáculo de Meaux, tradutor dos Evangelhos e de textos patrísticos, comentando-os...
Uma parte substancial dos recursos ou dinheiros aplicados à demanda e partilha de conhecimento humano acaba por servir para uma competição imensa e frequentemente violenta entre os Estados e os povos, as melhores inteligências sendo compradas internacionalmente para em Universidades ou centros de investigação servirem para perpetuar domínios injustos e para serem utilizadas para descobrir como fazer o mal, ou fortificar as capacidades letais de domínio internacional ou opressão policial e militar.
                                                 
 A ciência que se desenvolveu no Renascimento tardio ou no segundo Renascimento, e fez tantas descobertas importantes, desde as dos portugueses às de Leonardo da Vinci, acabaria por vir a tornar-se uma ciência progressivamente despida do enquadramento humanista, perdendo-se o ser humano como o centro de todos os valores e fins, embora sem dúvida uma maior consciência da dignidade de todos os seres vivos, nomeadamente dos direitos dos animais tenha crescido bastante.
S. Thomas More, num santinho oferecido pelo abade Germain Marc'hadour, grande moreano amigo de Pina Martins.
Assim as utopias iniciadas por Thomas More, e logo seguidas por Campanela, Bacon e outros, com alguns líderes mundiais a tentarem realizar algo desse bem para muitos, e nem referiremos os sonhos do reino do Espírito Santo ou as mitificações do V Império português, acabaram por soçobrar quanto à aplicabilidade no decorrer dos tempos, chegando ao séc. XXI quase esmagadas pela elefantíase da civilização norte-americana e do sistema oligárquico mundial, enquanto na Europa o sonho duma União Europeia humanista se tornou uma desilusão total, sobretudo na cena internacional, vendida a grandes interesses de países ou corporações, e pouco se esforçando por fomentar e proporcionar harmonia, ecologia, justiça, felicidade, evolução e aperfeiçoamento...
O Irenismo ou Pacifismo dos Humanistas deve então ser realçado fortemente, nomeadamente nos nossos dias de ameaças de novas grande guerras, lembrando tanto a Utopia de Thomas More e o adágio Dulce bellum inexpertis,
por Erasmo desenvolvido magistralmente e vivido exemplarmente, propondo sempre o diálogo e as negociações para os conflitos seja religiosos seja políticos, como também todos os outros, tais como o nosso Damião de Goes, que quiseram e lutaram por sociedades mais educadas e livres, vivendo em respeito, paz e diálogo, deixando assim ideias, métodos, sacrifícios e exemplos futurantes, bem necessários hoje (VIII-2022) quando vemos milhares de livros da Santa Rússia a serem queimados...

                               Assinatura de Damião de Goes, um santo mártir nosso...
José V. de Pina Martins, de quem comemoramos o centenário do nascimento neste ano de 2020, foi um grande investigador, expositor e representante do Humanismo e do irenismo nos nossos dias, conseguindo até face a alguns ataques e bloqueios  sofridos em instituições a que presidiu, como me narrou, manter a sua dignidade e calma, preferindo o caminho irenista do diálogo ou mesmo da aceitação sacrificial. 
Pina Martins, com as vestes de doutorado na Sorbonne parisiense, junto a Giovanni Pico della Mirandola.
    No ano de 1986, no Colóquio Sobre Portugal e a Paz, efectuado em Lisboa na Academia das Ciências, a que tantas vezes presidiu inexcedivelmente,  José V. de Pina Martins proferiu uma notável conferência, intitulada o Conceito de Paz nos Humanistas Portugueses, na qual, mostrando como Petrarca, Lorenzo Valla, Marsilio Ficino e Pico della Mirandola foram plenamente irenistas, verberando a violência que rebaixava os seres humanos a sub-animais, já que os animais não tinham nem as vaidades nem os ódios humanos, fora com Erasmo que tal irenismo atingira o seu ponto máximo e a sua formulação mais precisa, baseada nos ensinamentos de Jesus Cristo nos Evangelhos, na patrística (particularmente  S. Agostinho), em fontes pagãs ou clássicas, e nos humanistas seus predecessores, e ainda no bom senso, escrevendo as suas cartas e adágios que se tornaram grande sucessos em toda a Cristandade, nomeadamente pedindo aos que queriam converter os turcos que se convertessem primeiro, e que dele  fortificara-se tal pacifismo em admiradores, discípulos ou confabuladores, como o catalão Luis Vives ou o nosso Damião de Goes,  exercendo-se ainda, embora mais condicionada pela missão expansiva conflituosa portuguesa,  em João de Barros, André de Resende e um pouco em Jerónimo Osório.
Ao finalizar, "em conclusão", em seis parágrafos tal valiosa conferência, começa assim:«O Humanismo renascentista, pelo que diz respeito ao seu programa ético e político, é pacífico e irénico. Os grandes humanistas de Petrarca a Erasmo, de Marsilio Ficino a Vives, de Giovanni Pico della Mirandola a Guillaume Budé, preconizam a paz como um imperativo fundamental para que, na sociedade, os homens possam encontrar, tanto quanto possível, a felicidade na sua dimensão de bem estar individual e comunitário, condições aptas à obtenção de bens materiais e espirituais. O estabelecimento de leis justas que regulem as relações entre os membros da mesma comunidade, a harmonia entre as diferentes comunidades ou Estados, tudo isso é indispensável para que a paz possa florescer e frutificar, cornucópia da abundância para todos homens, para me expressar com uma imagem erasmiana. Os humanistas portugueses estão, a esse respeito, de acordo com os humanistas europeus.
Não obstante, os humanistas portugueses compreenderam a situação histórica de Portugal na sua especificidade sobretudo em relação à expansão islâmica e não hesitaram por isso mesmo, cada um à sua maneira, exaltar empresas que, se interpretadas á luz de uma concepção moderna - o que o historiador digno deste nome não pode nem deve fazer -, não deixarão de parecer belicosas, mas que, à sua forma mentis [mentalidade], plasmada por um Humanismo europeu que não havia obliterado a sua fidelidade a uma vocação nacional, surgia numa perspectiva historicamente explicável. E isto mau-grado o seu irenismo e o seu ecumenismo, aberto não raro ao diálogo, até com as mais discutidas  figuras da Reforma, tal o exemplo de Damião de Góis.».
Damião de Goes, sem dúvida o português mais erasmista e em especial irenista, pelo seus diálogos com os humanistas católicos e protestantes já em plena Reforma mas abertos  à paz, pela sua defesa dos Lapões serem ensinados e não forçados a converterem-se, e pela valorização do cristianismo etíope dos Prestes João e de uma religião de coração e não de ritos, preceitos, intermediários e superstições. 
                        O sábio Damião de Goes, grande amigo e discípulo de Erasmo.
  Tal como Desiderio Erasmo  dissera a propósito de ser lícita a guerra ou conversão dos Turcos, na versão de Pina Martins exarada na sua importante obra Sobre o Conceito do Humanismo (p. 246) e citada nesta conferência no Colóquio sobre Portugal e a Paz: «Erasmo observa que só com as armas cristãs os cristãos poderão submeter os Turcos, e essas armas são uma vida pura, o desejo de bem fazer aos inimigos, a paciência perante as ofensas, o desprezo do dinheiro e da glória». 
Possamos nós estar mais em paz e transparência à nossa consciência e essência espiritual, abertos lúcida e amorosamente aos outros, aos mestres e anjos e ao Ser Divino, e assim Portugal ser mais um pais irenista, ecológico, de diálogo ecuménico e fraterno, e não seguidor ou acólito de imperialistas mas sim universalista. 
            A marca ou empresa, bem ascensional e espiritual, do sábio e prolífero impressor humanista Ioannes Froben, grande amigo de Erasmo.

Sem comentários: