Nos anos de 2001 e 2002 cataloguei abreviadamente a Biblioteca de Pina Martins a seu pedido e em geral duas vezes por semana ia a sua casa ou subia directamente para o andar da biblioteca e durante cerca de 3 ou 4 horas desempenhava-me dessa tarefa, com ele a trabalhar na sala ao lado, ou então conversando simultaneamente com ele sobre os livros que descrevia. Como mantenho a escrita de diário desde os meus 19 ou 20 anos, frequentemente ao chegar a casa transcrevia da memória cordial alguns aspectos mais valiosos ou curiosos. E partilho agora o primeiro neste dia 18 do XI de 2020, dia em que comemoramos exactamente o 100º aniversário desta grande alma que entre nós passou como José Vitorino de Pina Martins, na fotografia já nos seus últimos tempos terrenos, sob as bênçãos de Santo Erasmo. Muita gratidão por tantos belos momentos passados em convívio bibliófilo, humanista e espiritual. Muita Luz, Amor e Presença Divina nele...
Este é um dos primeiros registos: terça-feira, 6 do XI de 2001, catalogação das 15:15 às 18:45.
Este sábio [Pina Martins] contou-me como tendo sete anos foi levado pelo prior da sua freguesia a visitar o senhor lente e padre António Garcia Ribeiro Vasconcelos, que morava perto da sua casa natal. Lá foram pelos montes e ele recebeu-os afavelmente, tendo uma luneta astronómica apontada para além dos montes. O prior perguntou-lhe se gostava então de contemplar as estrelas, respondendo ele que sim, mas que também observava outras coisas, entre as quais umas muito curiosas, sobretudo aos fins de semana, entre os milheirais.
Gravura do famoso e belo livro Sonho de Polifilo
Não chegou a Bispo, porque as más línguas queixavam-se ou denunciaram-no mesmo como tendo não só uma governanta mas duas, ao que ele respondera que eram maldades pois elas eram irmãs.
Escreveu uma gramática que se vendia para todos os seminários, liceus e escolas, mas como a Livraria Bertrand não escrevia a data da impressão na gramática latina, uma vez ao fim de alguns anos veio a Lisboa para ver se recebia algum dinheiro. Levaram-no a um armazém mostrando-lhe centenas de exemplares, das muitas edições que faziam sem declarar e assim não lhe pagavam porque não se vendiam. Abandonou a escrita...
E esta história nasceu de eu estar a catalogar uma antologia literária italiana, também não datada, e que fica como “s/d,” na ficha de catalogação...
Não chegou a Bispo, porque as más línguas queixavam-se ou denunciaram-no mesmo como tendo não só uma governanta mas duas, ao que ele respondera que eram maldades pois elas eram irmãs.
Escreveu uma gramática que se vendia para todos os seminários, liceus e escolas, mas como a Livraria Bertrand não escrevia a data da impressão na gramática latina, uma vez ao fim de alguns anos veio a Lisboa para ver se recebia algum dinheiro. Levaram-no a um armazém mostrando-lhe centenas de exemplares, das muitas edições que faziam sem declarar e assim não lhe pagavam porque não se vendiam. Abandonou a escrita...
E esta história nasceu de eu estar a catalogar uma antologia literária italiana, também não datada, e que fica como “s/d,” na ficha de catalogação...
Quando cheguei na estante ao livro de Robert Klein, Le Procés de Savonarola, Pina Martins mostrou-se indignado pela comparação feita por este autor protestante de Savonarola com Calvino, considerando um livro pouco científico. Preferia claramente o dominicano italiano ao reformista e embora Savonarola pregasse fortemente contra a sensualidade e as vaidades, não chegou a ser responsável pela execução de condenados por razões religiosas, tal como foi Calvino, antes sendo ele próprio queimado vivo.
Já quanto a livros críticos contou a história do livreiro italiano Doti, que uma vez ao passar uma bela rapariga italiana disse-lhe: “aquilo é que era um incunábulo”, replicando-lhe Pina Martins que ele Doti não sabia o que era um incunábulo, um livro do princípio da tipografia, pois o que ele estava a gostar era uma edição crítica, pois de facto esta estava muito bem apresentada e melhorada. Eu contestei dizendo que a jovem seria antes comparável a uma boa edição moderna ou até luxuosa.
Do catálogo que chegou anunciando próxima feira do livro antigo em Madrid reparou num livro que o interessaria, o de Pedro Ciruelo, sobre matemática, e explicou uma das razões do seu interesse: um dia seu grande amigo e investigador Eugenio Asensio dissera-lhe que Pedro Ciruelo escrevera que as três coisas mais importantes ou fantásticas da sua época eram o descobrimento dos caracteres móveis, o descobrimento do Novo Mundo e Giovanni Pico della Mirandola.
Já quanto a livros críticos contou a história do livreiro italiano Doti, que uma vez ao passar uma bela rapariga italiana disse-lhe: “aquilo é que era um incunábulo”, replicando-lhe Pina Martins que ele Doti não sabia o que era um incunábulo, um livro do princípio da tipografia, pois o que ele estava a gostar era uma edição crítica, pois de facto esta estava muito bem apresentada e melhorada. Eu contestei dizendo que a jovem seria antes comparável a uma boa edição moderna ou até luxuosa.
Do catálogo que chegou anunciando próxima feira do livro antigo em Madrid reparou num livro que o interessaria, o de Pedro Ciruelo, sobre matemática, e explicou uma das razões do seu interesse: um dia seu grande amigo e investigador Eugenio Asensio dissera-lhe que Pedro Ciruelo escrevera que as três coisas mais importantes ou fantásticas da sua época eram o descobrimento dos caracteres móveis, o descobrimento do Novo Mundo e Giovanni Pico della Mirandola.
Referiu ainda do Ribeiro Vasconcelos, que conta, na sua Utopia III, que a Bocara é a Buraca perto de Lisboa, local onde Pina Martins se encontrou depois de 1974 com o Cardeal Cerejeira, que este lhe contara como Garcia Ribeiro Vasconcelos era homem algo dado as dignidades e que um dia lhe viera provar que havia possibilidade de se reavivarem os arcediagos de Penela e de outra terra, que conviriam a ele e ao Cerejeira e que este se rira e dissera-lhe não percebo nada disso mas, se quiser, que seja. E assim foi Garcia Ribeiro nomeado arcediago, pois tinha também o porte e os gestos adequados.
Os momentos mais sábios deste encontro de hoje foram os consagrados ao Pico della Mirandola e a Savonarola. Este último conservaria mesmo no fim da sua vida o estudo intelectual e filosófico, e não estava só numa franciscanismo e radicalismo ascético cristão, como eu admitira. E se Savonarola dissera uns dias depois de Pico morrer praticamente nos seus braços dizendo que ele era o homem mais extraordinário da época, mas que não estava no Céu, pois assim lho dissera Deus, estando apenas no Purgatório, porque não seguira a sua vocação, esta afirmação (e se quisermos intuição) de Savonarola resultava do facto de Giovanni Pico se ter recusado sempre a entrar na ordem dominicana, preferindo manter-se um intrépido cavaleiro do amor, da filosofia perene, da ligação interior a Deus, pensei eu...
E quando Pina Martins realçou a importância da obra de Pico della Mirandola e dos seus efeitos ao longo dos séculos, rebatendo a minha ideia que a sua morte precoce também contribuíra para essa atracção que gerou em tanta gente, pôs a questão do quanto poderia ele ter produzido senão morresse apenas com 30 anos mas com 70 ou mais...
Eu disse-lhe então que se calhar a sua morte justificava-se porque ele atingira o essencial, o auto-conhecimento espiritual e a ligação com Deus e ainda que nós gostássemos que ele escrevesse, comparasse e investigasse muito mais, isso era o mais importante e por consequência já não precisava de estar na terra e tinha sido arrebatado ao convívio humano. Não valorizamos tanto esta ligação ou religação, mas é bem possível que ela seja o mais importante e quem o conseguiu pode partir do corpo humano animal para o mundo espiritual e divino com o mais importante cumprido.
Marsilio Ficino, Pico della Mirandola e Angelo Poliziano
Discutimos ainda se há penas de condenação ou danação eterna, o que Pico, na época e na linha de Orígenes, recusou, sendo tal tese ou proposição considerada herética. Eu preferi admitir que haja certas pessoas que pela sua oposição e rejeição de Deus e do bem, e depois fazendo tanto mal ou tornando-se tão más e cheias de ódio, se possam auto-destruir enquanto almas individualizadas, regressando o seu espírito ao Espírito original total, mas Pina Martins acha que o Deus de Amor não pode destruir o que criou imortal, replicando eu que não é Ele que destrói, mas sim as próprias pessoas que se destroem assim como quem põe a mão no fogo se queima.
O Y pitagórico: a cada momento sabermos escolher que fogo, que amor, que caminho esplende em nós... |
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