segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Diálogos com o prof. Pina Martins enquanto catalogava a sua Biblioteca. 2ª transcrição, do Diário de 2001-2002.

  Do meu Diário de 2001-2002 eis a segunda transcrição respeitantes aos diálogos com José V. de Pina Martins enquanto fazia uma catalogação rápida da sua Biblioteca de Estudos Humanísticos.
«10-11-01. Catalogações na biblioteca do prof. Pina Martins, três horas e meia. Explicou-me mais localizações temática e de autores, com algumas hesitações pela sua deficiente visão actual.
Explicou as características de alguns autores que eu desconhecia ou pouco sabia, tal como o De ragguagli di Parnaso, de Traiano Boccalini (1556-1613), que tem em grande estima, tanto mais que há um manuscrito do séc. XVII português dumas cortes de Apolo passadas em Sintra e que foram influenciadas por essa obra tanto satírca como espiritual, que eu já sabia que teria sido lida por Valentim Andreia (1586-1654) e os seus manifestos Rosa Cruz e a sua utópica Reipublicae Christianopolitanae descriptio (1619). Houve uma tradução no séc. XVII espanhola. Aprecia bem este autor de certo modo utópico, tanto mais que na sua obra põe Thomas More a jurar que a forma de acabarem as heresias era o rei de Castela não sair do seu reino, pois Boccalini era anti-castelhano.
                                       
              O olhar para toda a eternidade de Thomas More, émulo de Pico della Mirandola
Comentou uma edição de Petrarca em francês, Mon Secret, autor que ela aprecia muito considerando-o primeiro humanista, e do qual tem uma edição muito rara de Siena, 1515, Il Secreto e, lamentando-me eu que não houvesse traduções para português referiu que no séc. XVI o frade anónimo que compôs a obra religiosa mística Horto do Esposo (que eu já lera partes, na reedição no séc. XX, por Augusto Magne), traduziu muitas páginas do Tratado da vida solitária de Petraca, incluindo-as discretamente no interior dessa obra mística. Quem trabalhou nela foi o padre Mário Martins, amigo de José Pina Martins e da Dalila Pereira da Costa que já mo fez conhecer na residência e biblioteca dos Jesuítas, à Lapa, e com quem dialoguei amistosamente.
Contou-me um dos seus melhores negócios quando comprou uma grande gravura de Portugal a um livreiro italiano por 200 mil e em Portugal trocou-a ao Américo F. Marques, por 5 contos de livros antigos, dos quais um o "Crenus" [?] muito valioso nos USA, uma edição dos Retóricos gregos, Aldina, isto é do impressor Aldo Manucio, e outras obras. O "Cresus" [?] vendeu logo ao livreiro Tavares de Carvalho, que se iniciava então, pela quantia que lhe custou comprar um carro Peugeot.
                                  
A marca tipográfica aldina: Festina Lenta, Apressa-te lentamente, dito clássico que foi bem explicado por Erasmo.
A impressão aldina levou-a para Itália e perguntou ao livreiro que lhe vendera a gravura se a tinha. Ele concordou que era muito rara, e consultando a bibliografia mais o confirmou , admitindo que poderia valer uns 4 ou 5 milhões de liras. Pina Martins mostrou-lhe então a obra e disse-lhe que a propunha trocar e apenas por meio-milhão de liras em livros de bibliografia. «- Oh, ainda assim é muito», mas depois resolveu aceitar, tanto mais que Pina argumentara que pelos menos ele conseguiria vender os Retóricos gregos por um milhão ou dois. Assim pode escolher vários livros bons de bibliografia que mandou para Portugal e que estão alguns em cima duma estante que me indica. Perguntando-lhe eu, se ele conseguira fazer circular o livro, responde-me que sim, o livreiro vendera logo depois a edição aldina...
Há saída mostrou-me uma das estantes onde está mais a secção bibliográfica, que eu pouco tenho nem sei muito. E disse-me: «-É a primeira pessoa que está a conhecer os segredos desta casa. Até agora ninguém os sabia». Eu corrigi para biblioteca, mas ele respondeu ainda como casa.
 
Fotografia inédita da sala ocidental, com Pico della Mirandola.
Saudei o Pico della Mirandola diante da bela pintura antiga, bem como os autores, livros e a sabedoria da sala, por vezes, quando levava ou trazia das estante os livros que ia catalogando, inclinando-me, com gratidão no coração...
Vou em 263 livros catalogados, tendo trabalhado 13 horas e meia, quase vinte livros descritos por hora, média de um por três minutos, e às vezes custa-me não poder estar a observar pessoalmente o livro, sobretudo quando não o conhecendo e sentindo que ele é bom não descubro logo o modo de o valorizar como mais interessante neste ou naquele aspecto, e a merecer eventualmente tomar nota e investigar.
Também me custa catalogar os grandes livros de homenagem a algum autor ou acontecimento histórico, com contributos de várias pessoas conhecidas e desconhecidas, os quais vejo no índice rapidamente sem dar para perceber bem o que vale mais neles, excepto quando algum é mesmo muito significativo. Mesmo assim nestes livros colectivos, tenho anotado de modo geral os que sendo do Renascimento, em contraposição aos medievais, têm mais artigos com valor para mim e os meus estudos.
I Trionfi, de Petrarca. O carro da Fama.
 Segunda 12-11-01.
Trabalhei das 15h às 18 30  catalogando cerca de 90 livros, alguns mesmo bons, tais os de Francesco Petrarca e de Giannozzo Manetti. Trocou comigo os Trionfi de Petrarca, numa edição facsimilada, por uma edição pequena do séc. XIX do Garcilaso de la Vega que  eu trouxera de Madrid há dias.
Um dos exemplares quinhentistas de Petrarca. com uma bela encadernação seiscentista, recebeu do Américo F. Marques,  da rua do Alecrim, na  tal troca pela gravura do livreiro italiano. 
 Contou como o seu grande amigo Eugenio Asensio dizia que comia os livros pois tinha que ir vendendo alguns para sobreviver e assim uma vez juntou uns doze livros óptimos que queria vender por 3500 contos. O livreiro António Tavares de Carvalho só deu 3 mil mas já Ernesto Martins, da Biblarte, em frente ao jardim de Alcântara, consultado aceitou a proposta. Pina Martins vira entre os doze  um de Petrarca que lhe interessava, mas Ernesto Martins apesar de saber que era dos menos valiosos atreveu-se implacavelmente a pedir 700 contos, tendo-os ainda há pouco comprado graças ao Pina Martins que lhe tinha arranjado o negócio.
Avisou-me que quanto ao Toni Tavares de Carvalho, sobretudo, mas também a uma das pessoas do Manuscrito Histórico, tem que se ter muito cuidado com o que se diz senão no outro dia toda a gente sabe. Uma vez mostrou a Tavares de Carvalho um livro  que comprara há uns anos ao livreiro Leo Olschki, especialista do Renascimento, por certo preço. Tavares de Carvalho, que tinha o mesmo livro, atreveu-se a escrever ao Leo Olschki dizendo que tinha o mesmo livro  que Olschki vendera a Pina Martins há uns anos pelo tal preço e que estava disposto a vendê-lo pelo mesmo, o que Pina Martins achou algo deselegante.
Beijei e toquei na testa com dois dos livros mais interessante e sábios, o de Gionnozzo Manetti, e um de Petrarca, e é mesmo bom ao catalogar ir avançando pelo meio de obras tão boas e, ao manuseá-las e conhecê-las um pouco, ir perdendo o desejo ou a necessidade de os possuirmos...
Dia[?]... Mais uma manhã de trabalho, mas apenas de 2 horas, e viemos  para a Baixa Chiado de metropolitano. Perfiz as 22 horas de trabalho e disse-me que o facto de lhe estar a catalogar a biblioteca merecia uma condecoração, replicando-lhe eu que era suficiente a sabedoria que eu podia sentir no peito apenas ao contactar o que está por detrás e dentro destes livros. Beijei um e toquei na cabeça com outro que senti mais valiosos espiritualmente.
Damião de Goes, erasmiano e pioneiro defensor dos direitos humanos.
Hoje,  Quinta-feira, foram apenas 2:15 de trabalho. Algum diálogo sobre o texto do Benefício de Cristo, de Lorenzo Valla (1407-1457), um dos primeiros textos do humanismo crítico da versão oficial do começo de Cristianismo e sobre Damião de Goes, a quem Erasmo depois de o receber por umas semanas em casa, recomendara ir aperfeiçoar o seu latim em Pádua, o que ele cumpriu e com resultados satisfatórios. 
Em relação à morte misteriosa de Damião de Goes, em 30 de Janeiro de 1574, mal acabara de sair da longa prisão inquisitorial, não pensa que tenha sido assassinado, mas terá tombado sob a lareira. A mim custa-me a crer tal, e acho que podem ter-lhe batido e empurrado já que ele não era persona grata seja à casa de Bragança, seja aos jesuítas e familiares do Santo Oficio mais fanáticos. D. João III protegera-o enquanto esteve vivo, mas no tempo da regência da sua mulher a rainha D. Catarina fora perseguido ferozmente pela Inquisição, sobretudo pelo jesuíta Simão Rodrigues, que o denunciou por mais de uma vez ao longo de anos.
Marcel Battailon e Pina Martins, em Paris.
Hoje dia 30 de Janeiro cataloguei quatro horas e conversou-se intermitentemente com intensidade. A propósito do livro de Raymond Cantel, Prophétisme et Messianisme dans l'Oeuvre d´António Vieira, disse que ele era uma pessoa séria e que fora um trabalho de doutoramento bom, a que assistira. Presidia o Marcel Bataillon e participava também Haubron ou Aubrion (?), pessoa pouco séria, ainda que inteligente e esperta, mas pouco trabalhadora, o qual começou a criticar fortemente a obra do P. António Vieira considerando-o muito inferior aos pregadores franceses da época, argumentando ainda com outras críticas ao que Raymond Cantel procurava resp0nder com humildade. I. Revah [outro investigador da história e da Inquisição portuguesa], que assistia no público ria-se criticamente em relação às estupidezes que iam sendo ditas dando mesmo nas vistas, pelo que Marcel Bataillon, que tinha sido quem introduzira I. S. Revah na Sorbonne, teve mesmo de lhe fazer sinal com o dedo sobre os lábios. Finda a sua fala Aubrion (?) e toda a gente fica estarrecida com a demolição do medíocre P. António Vieira, mas eis que Marcel Bataillon toma a palavra e diz que António Vieira foi o melhor orador da Europa naquela época, arrasando as críticas de Aubrion (?), que assim emudeceu.
Pina Martins elogiou Ludovico Antonio Muratori, um humilde bibliotecário que no entanto Newton levara para sócio da mais importante academia científica inglesa, pelos seus grandes conhecimentos e qualidade. Usava o pseudónimo Lamindius Pritanius.
Damião de Goes, numa gravura antiga, tida como fidedigna.
Conheceu o historiador Mário Sampaio Ribeiro que era excessivamente de "direita" ou conservador, não gostando por exemplo de Damião de Goes porque o considerava de esquerda. O Joaquim Veríssimo Serrão, que gostava de gozar, quando o via dizia-lhe que tinha descoberto nas suas investigações documentos que provavam que o rei andara nove meses antes de Damião de Goes ter nascido na zona onde ele nasceu, indício que Mário Sampaio Ribeiro muito apreciava pois tinha a tese de que Goes era um bastardo do rei D. João II.
Acerca de um livro sobre os judeus, Pina Martins disse que antes de se casar com a Primula namorara um jovem judia, e que esta lhe pedira que dissesse à sua família que era judeu. Foi acusado dum certo filo-judaísmo mas considera exagerada ou muito violenta a política de força do estado de Israel. É possível que tenha como muitos portugueses algum sangue judeu, mas do lado dos Pinas, que vem dos Pinheiro, descende de Rui de Pina, e dos Martins também não descobriu sangue judaico. A sua mãe viveu até aos 94 anos, e aos trinta anos já tinha os cabelos brancos, mas sempre foi saudável.
Assistiu na Universidade de Coimbra a um doutoramento honoris causa de alguém, que não registei bem o nome, mas nessa altura estava a uma grande distância dos sábios. Hoje é que está tudo muito mais nivelado.
Criticou a atitude do historiador de arte e académico José Augusto França por ter depositado duas bolas negras em recentes votações para sócio da Academia das Ciências dum russo da Academia Soviética, que muito tem feito pela cultura portuguesa na Rússia, e de Michel Renaud, um estudioso da religião. Mas José Augusto França, uma pessoa algo má, não aceita nem a religião nem os actuais soviéticos...
Recusou os convites para almoçar com o primeiro ministro António Guterres e jantar com o presidente da República Jorge Sampaio, agora que vinha cá o Presidente da Itália. Ainda argumentei que poderia encontrar algumas pessoas interessantes, mas não, diz que só lá estão políticos....

4-12. Catalogo das 15:20 às 18:20. Falou da Augusta Faria Gersão Ventura, a autora de estudos sobre Gil Vicente, nomeadamente a astronomia, uma pessoa séria que se vestia como uma senhora do século XIX com a saia até ao joelho. O seu marido era o professor de grego e os alunos chamavam-lhe o "Faraó". Costumava no fim da aula perguntar ao Pina Martins o que achara da aula, respondendo ele que a considerava muito perfeita muito calma e luminosa. Isso mesmo, replicou ele, esforço-me por falar para a pessoa mais fraca que haja na aula.
Mas no fim do ano lectivo, quando Pina Martins queria ir logo de férias, sem ter prestar exame graças à boa média que obtivera, não o deixou, obrigando-o a redigir e apresentar um trabalho sobre os coros das tragédias gregas. Quando voltou de férias perguntou ao assistente que nota tinha e recebeu a resposta que fora a melhor de todas e que o Faraó explicara que Pina Martins tinha aguentado um mês de labor e que fora o único que apresentara um trabalho.
                                       
Em relação ao bibliófilo e bibliógrafo Visconde da Trindade considera-o um auto-didacta, um curioso, mas como tinha um tão grande amor aos livros a sua obra torna-se interessante ou valiosa.
Quanto ao investigador e professor de Coimbra  José Sebastião da Silva Dias (1916-1994), autor de obras com valor sobre a política cultural e a religiosidade nos séculos XV e XVI, formara-se em Direito mas não sabia bem latim pelo que tentava traduzir textos ou pedia a outros que fizessem por ele.
Quanto a Teófilo Braga, que escreveu muito e chegou a Presidente da República, era mau como pessoa e não percebeu nada de Sá de Miranda. Com efeito, com Antero de Quental, e outras pessoas teve procedimentos pouco justos ou maldosos mesmo.
Sá de Miranda, num desenho que pertenceu a Pina Martins e que me ofereceu.
Domingo, 9-12-2001 23 25 m.
Trabalhei hoje à tarde ,mais quatro horas, tendo chegado assim às 50 horas de trabalho. Dos livros que ia catalogando e das respostas que me ia dando sobre quem eram os autores, registei: Epifânio Dias (1841-1916, latinista e camoneano) era uma pessoa que sabia mas era muito convencido e orgulhoso. E foi já no leito da morte que recebeu a obra do Rebelo Gonçalves (1907-1982) sobre uma edição comentada de Camões na qual era criticado, apenas textualmente, mas mostrando os seus erros, recebendo assim no fim da vida uma pequena lição de humildade.
O historiador Anselmo Bramcamp Freire (1849-1921) era algo anticlerical e bastante contra a rainha Dona Leonor, pensando que tinha sido ela que envenenara o marido D. João II, mas mais tarde quando um médico provou que isso era impossível, admitiu que tinha errado. A sua melhor obra foi o manter ou fundar o Archivo Historico Português responsável por inúmeras publicações valiosas ao longo de muitos anos (1903-1917).
                                     
Mostrou-me o misterioso alfabeto moriano, que foi impresso numa das melhores edições da Utopia, a de 1518, impressa em Basileia pelo grande impressor humanista Ioannes Froben, sob a direcção de Erasmo, demonstrando por esquema a sua formação lógico pictórica, inventada com originalidade e não seguindo a ideia, como queria um investigador russo, que fora influenciada pelo antigo eslavo.
Um dos trabalhos importantes do prolífero investigador Sousa Viterbo (1845-1910), do qual tem várias obras na biblioteca, é o da sua recolha de poesias portuguesas existentes em livros espanhóis antigos, mas, por exemplo, não registou uma de Sá de Miranda (autor muito amado e estudado por Pina Martins) presente numa edição quinhentista espanhola de Garcilaso de la Vega.
                             
Marca do impressor Petrus Zangrius, de Lovaina (numa edição das obras completas de Thomas More), simbolizando a fonte do Amor Divino, derramando-se dos que abrem o seu peito a Ele.
Hoje, 18 de Janeiro, Pina Martins disse-me à entrada da sua biblioteca que fazia anos, depois de me ter convidado para um almoço na Quarta feira no Círculo Eça de Queirós, ao Chiado, advertindo-me que é preciso levar gravata ou então usar uma das que eles tem à entrada. Será o festejo de tal data. Contou que publicou cerca de 150 livros, seus e de outros, nos dez anos que foi Director do Centro Cultural de Paris, da Fundação Calouste Gulbenkian. Augurei-lhe bons projectos e realizações para o novo ano, o dos seus 81 anos, já que ainda está a investigar e a escrever...
                                        
Emblema com lema, original, de José V. de Pina para os seus primeiros livros: "Dirige o teu olhar para ti mesmo". Ou pratica o auto-conhecimento, a meditação, a contemplação e abre o teu olho interior para o sol espiritual e divino.

Sem comentários: