domingo, 26 de janeiro de 2020

A "Utopia" de Thomas More e o prefácio de Guillaume Budé, vistos por Pina Martins e Aires do Nascimento.

O valor eterno das realizações do Humanismo, que desabrocharam na época Renascimento com  o acesso, estudo e revalorização da língua e cultura greco-latina e a exaltação da dignidade humana, assenta muito em alguns seres e suas vidas e obras, que irradiarão através dos séculos incólumes às transformações e desagregações de referências e valores, numa sociedade global  cada vez mais confrontada com problemas graves decorrentes de alguns países nada humanistas, e instituições ditas transhumanistas,  que desrespeitam a vida humana, a livre mentalidade bem como pela Natureza e seus seres e ecosistemas que culminam na negação de Deus...
Dante guiado pela sua alma-gémea, beata Beatrix, contempla o Sol do Amor Divino
Apesar das situações conflituosas sociais virem já da antiguidade clássica, e já Platão ter escrito a sua República, e na Idade Média um cristianismo renovado e utópico se ensaiar, seja com os franciscanos espirituais, as viagens de S. Brandão, os ensinamentos da escola de Chartres e a cosmovisão da Divina Comédia de Dante, foi com o Renascimento, a invenção da imprensa, o desenvolvimento da escolaridade e a progressiva ascensão de uma classe média culta e dinâmica que se tornou possível uma revolução social que permitiu mentes mais despertas e lúcidas e maior igualdade, justiça e harmonia nas sociedades.
John Colet, pioneiro do humanismo em Inglaterra, amigo grande de Erasmo.
Sem esquecermos as fundações críticas, corajosas e irenistas de John Colet e de Erasmo (este desde 1499, quando conhece Thomas More, e que esteve algumas vezes em Inglaterra), nomeadamente o primeiro no sermão pregado diante do belicoso Henrique VIII, resumido por Erasmo na sua Vida de John Colet, e o segundo no Elogio da Loucura (escrito em 1509 mas publicado em 1515) e nos vários textos irenaicos ou pacifistas, é em 1516 que surge  a Utopia do Thomas More, a qual funda a utilização da palavra para sempre, a que seguirão outras utopias que se tornarão também verdadeiramente imortais,   tais como os Cinco livros de Rabelais, publicados entre entre 1532 e 1562 (com Pantagruel a ser filho de uma princesa da ilha da Utopia), a  Reipublicae Christianopolitanae Descriptio, 1619, de Johan Valentin Andreae, a  Atlantida Nova1622, de Francis Bacon e a   Civitas Solis, 1623, de Tomaso Campanella.
A garrafa alquímica e sagrada com as palavras que a sacerdotisa de Baco dá a beber a Pantagruel e Panurgo no fim das peregrinações iniciáticas que os levaram para além do reino da quinta-essência. Rabelais. Quinto Livro.
 Thomas More é portanto um desses autores perenizados, não só pelas leituras da Utopia (do grego, sem lugar) e ensaios que se continuam a dedicar-lhe como sobretudo pela recreação constante de utopias, que tanto significam "em parte alguma", nusquama, como More traduziu para latim, como também, e transmitido por Thomas More (num poema de um sobrinho do narrador português Rafael Hitlodeu, inserto antes do começo da narrativa), Eutopia, "bom lugar",  cada vez mais necessárias, mesmo que pequenas e locais, nos nossos pardos dias de opressão mundial da comunicação livre e de sociedades fraternas, fora do domínio do capitalismo oligárquico ou neoliberalismo selvagem.
 Entre nós, embora cedo a Utopia tenha sido assinalada pelos nossos maiores humanistas, nomeadamente João de Barros, e embora no séc. XX tenham surgido traduções de versões francesas ou inglesas, da pena de Berta Mendes, com prefácio de Manuel Mendes, e depois de José Marinho, será só no século XXI que surgirá em impressão bilingue, já que havia algumas em manuscritos (como Pina Martins me passou), em 2006, na Fundação Calouste Gulbenkian, a primeira tradução directamente do latim realizada laboriosa e magistralmente por Aires de Nascimento sob a sugestão e a orientação de Pina Martins, em 2015 estando já em 2ª edição revista.
                                             
José V. de Pina Martins foi entre nós quem mais amou e partilhou Thomas More, com Fernando de Mello Moser (na imagem em cima), seu amigo, prematuramente partido (1927-1984) e que deixou também numerosos textos e obras a ele dedicados, destacando-se Tomás More e os caminhos da perfeição humana, 1982, e Dilecta Britannia, Estudos de Cultura Inglesa, 2004, obra já póstuma, onde se coligem nove valiosos ensaios moreanos, impressa pela Fundação Calouste Gulbenkian.
Pina Martins, doutor pela Sorbonne, junto a Pico della Mirandola
José V. de Pina Martins (1920-2010), dedicando-lhe ao longo do seu vasto percurso humanista, científico e bibliófilo, várias publicações e exposições, coleccionando as suas obras, antigas e modernas, e tendo as suas salas  abençoadas por três grandes pinturas de Thomas More, Erasmo e Pico della Mirandola, era movido pela atracção derivada de considerar Thomas More,  um notável pai de família, polígrafo, chanceler do reino, teológo, jurista, historiador, poeta, cristão,   sobretudo como um grande humanista tanto pela sua paixão pela cultura humana como pela sua aplicação na defesa dos direitos naturais e sobrenaturais do Homem...
 Sob as bênçãos de Erasmo, José V. de Pina Martins, com Pedro Teixeira da Mota, na sua biblioteca, nos seus últimos tempos na Terra.
 E, tal como Pina Martins, Thomas More fora também admirador de Giovanni Pico della Mirandola, de quem traduzira  textos religiosos e uma biografia realizada pelo sobrinho.
Todavia, desabrochara como um super-homem ou santo quando, face à pressão do rei para o reconhecer como chefe da Igreja e não o Papa,  conseguira manter íntegra a sua consciência moral e religiosa pondo-a acima da obediência humana e política, pagando com a prisão e depois a morte, e assim entrando  como mártir religioso e de consciência desassombrada no além e na eternidade, com a igreja Católica a reconhecê-lo, com o cardeal John Fischer e os outros mártires da época, como susceptível de culto em 1886 e santo em 1935.
 A Utopia é transmitida por um navegador português, Rafael Hytlodeu,  em duas partes, a 1ª parte, descrevendo os males da sociedade inglesa, e na 2ª (escrita porém antes) a vida perfeita duma ilha bem povoada e organizada, em especial da capital Amauroto,  tendo saído à luz na 1ª edição em 1516, em Lovaina, graças a  Pierre Gilles e gerando logo uma 2ª impressão, em 1517, em França, esta contendo um  prefácio do sábio francês Guillaume Budé e que sairá na 3ª edição, de Basileia, depois da breve mas elogiosa recomendação da obra por Erasmo ao impressor Froben, 3ª edição considerada a melhor e a utilizada por  Pina Martins e Aires do Nascimento para a notável edição que publicaram em 2006. 
 Guillaume Budé, o prefaciador francês, nascera em 26-I-1468, de uma família de funcionários da corte e, depois de ter estudado na Universidade de Orleans Direito Civil, aprendeu grego com Georges Hermonymo e Janus Lascaris, fazendo a sua 1ª viagem a Itália em 1501, desde 1503 dando à luz as suas pioneiras traduções do grego, do qual se torna o maior conhecedor francês, a par de Lefèvre d'Étaples, o outro grande humanista de então. Em 1505 participa na embaixada a Roma ao belicoso papa Júlio II (o visado por Erasmo, anonimamente, no Papa expulso do céu), a quem oferece uma das traduções dos tratados de sabedoria de Plutarco. Em 1516 Budé escreve a 1ª carta a Erasmo e também a que dirige Tomas de Lupset, que lhe fizera conhecer a Utopia, tornando-se esta carta elogiadora da obra de Thomas More prefácio das sucessivas edições posteriores. Em 1522 é o mestre da Livraria do rei, dá origem ao Colégio de França e vai publicando obras, tal em 1535 o  De Transitu hellenismi ad christianismum, bem paradigmático hoje para a passagem a uma religião universal do espírito e do amor, até libertar-se do corpo terreno a 28-VIII-1540.
 José V. de Pina Martins, de quem comemoramos em 2020 o centenário do nascimento, num dos seus textos, L'Utopie de Thomas More et l'Humanisme, onde considera Budé um dos melhores helenistas da Europa, resume tal prefácio assim: «Budé não se coíbe de afirmar que as leis que regem a vida em sociedade são injustas, que elas são um desafio à equidade, e traem o espírito cristão. Ele constata, e declara, que o que se chama direito natural está na origem de regras que, no mundo civilizado, só favorecem os ricos e os poderosos. A legalidade é um alibi para os meios de pressão empregados pelos que estão no poder poderem espoliar os outros.»
Acrescenta ainda Pina Martins, depois de transcrever em latim alguns excertos da visão de Budé,  tais como «Jesus Cristo recomendara uma comunhão e caridade pitagórica entre os seus seguidores», que «Budé sonhava aplicar o exemplo dos utopianos, vivendo segundo a natureza e a razão, a uma sociedade que se dizia cristã, mas que traía a cada momento a mensagem do Cristo.» E em nota de rodapé, afirma, : «A carta de Guillaume Budé, apercebemo-nos, é de uma actualidade ardente. A sua crítica das injustiças sociais esclarece e reforça a de Rafael Hitlodeu, na 1ª parte». Com tal sensibilidade e aspiração, Pina Martins, dialogando com a Utopia de Thomas More,  escreveu a sua valiosa e enorme Utopia III, dada à luz em 1998.
Primeira página do relato da Utopia, na impressão de Froben, em Basileia, 1518
 Já Aires do Nascimento, na sua nota de rodapé ao início da transcrição da sua pioneira e tão meritória tradução da carta de Guillaume Budé na edição de 2006 da Utopia, escreve: «Esta carta de Budé é considerada como o melhor prefácio ao texto de Moro e com razão ela foi colocada aqui: algumas ideias fundamentais sobressaem da leitura que o humanista francês consagrou ao texto: construção da vida em comunidade baseada na equidade que deriva da solidariedade nascida da natureza humana; a função do Estado numa sociedade de iguais que se devem reger pela virtude e não por lei manipuladoras; os princípios enunciados para a Utopia são susceptíveis de inspirar a renovação da comunidade humana.»
                                                     
Se lermos na íntegra a carta do notável jurista, diplomata, linguísta, historiador, bibliotecário, que realçar mais nela? Transcrevamos, usando a tão trabalhosa quão valiosa tradução de Aires do Nascimento, a visão de Budé, nomeadamente de "Moro, personalidade singularmente percuciente, espírito sereno e experimentado na apreciação dos acontecimentos humanos", estimulando-nos a sermos assim mais observadores, mais identificados e ligados à nossa essência espiritual divina e justa, vendo com claridade e sem preconceitos e emocionalismos. 
Também a crítica da ciência das leis civis é forte: «têm apenas uma finalidade, a de treinarem, para uma destreza, tão travessa quão acerada, de uns contra os outros» de modo a que «em parte com a conivência das leis e em parte o apoio das autoridades do direito, rouba e sonega»
Valiosa é também a consideração que Budé nos dá de já na época predominarem pensamentos «a juízo de um pensar comum alienante» e «sendo a maior parte da gente falha de visão pela remela de uma ignorância crassa», julgando assim mal do que é justo, tanto mais que os preceitos justos e verdadeiros de sempre «distam muito das determinações e decretos daqueles.... 
Este aspecto é muito actual, pois a lavagem ao cérebro que os meios de informação fazem, em geral muito vendidos aos sistema norte-americano e a outros grupos de pressão fortes, enche a mente das pessoas de falsas verdades e estas perdem a sua bússola interior da verdade.
Guillaume Budé lembra-nos do essencial, numa linha semelhante ao conceito oriental de Dharma, Ordem ou Dever, ao definir a Justiça como «virtude que atribui a cada um o que lhe pertence», e que o direito nos Estados «procede de uma justiça equilibrada e gémea do mundo, a que chamam Direito Natural» e que é bem o contrário da cupidez generalizada, que se encontra em legisladores, governantes e políticos, muitos deles ineptos ou corruptos, estabelecendo "amarras" sobre o povo e os intelectuais, "arrecadando receitas" e obtendo altos cargos. Ora contra tal tendência já se erguera Cristo, criador e dispensador dos bens da propriedade, ao estabelecer uma comunidade pitagórica e ao estatuir a caridade entre os seus discípulos. 
Três eram as instituições divinas, resumia Budé que sustentavam a Utopia: igualdade entre os cidadãos ricos e pobre, ou, para quem preferir cidadania completa em toda a sua escala; amor, constante e firme de paz e harmonia; menosprezo de ouro e prata. Por elas foi afastada a avareza e a cupidez, e assim a justiça e o pudor ou pureza mantiveram-se nos utopianos.
                                                     
                                       Thomas More, num desenho de Hans Holbein...
Guillaume Budé terminará esta carta imortalizante da sua sábia alma espiritual elogiando a fraternidade dos amigos de Deus:«Embora Moro fosse de si mesmo homem grave e gozasse de grande autoridade, o testemunho de Pedro Gilles de Antuérpia serviu para eu lhe dar pleno assentimento. Muito embora eu nunca tenha conhecido pessoalmente este último personagem (deixo de lado recomendação de ciência e de vida), aprecio-o pelo facto de ser amigo mais que jurado de Erasmo, homem preclaríssimo e do maior prestígio ganho em todos os domínios nas letras sagradas e profanas, e com ele, de há muito, formei um pacto de amizade, através de correspondência particular de um para outro». 

 E conclui esta carta-prefácio, escrita em Paris, em 31 de Julho de 1517, assim, numa tradução minha:«Quereria também que por mandado meu levasses a Moro uma saudação redobrada, seja que envies, como disse, seja que digas, que o nome de tal varão consta do mais sagrado livro de Minerva já há muito, segundo a minha opinião e palavra, e pelo relato da ilha do Novo Mundo, a Utopia, lhe dês o meu máximo amor e veneração. A nossa geração e as gerações vindouras terão o seu relato por alfobre de instituições belas e úteis donde cada um pode  enxertar comportamentos introduzíveis e adaptáveis à sua cidade. Vale


 Post scriptum: dedico e ofereço este trabalho, ao finalizá-lo, a Sebastião Tavares de Pinho, da Universidade de Coimbra, notável latinista e humanista, com vasta obra meritória, que soube agora mesmo pelo P. Aires do Nascimento ter morrido de um acidente rodoviário no dia 23, após a sessão ordinária (fraca ideia) da Academia da Ciências que homenageou o centenário do nascimento de José V. de Pina Martins, na qual, vindo de Coimbra, ele prestara o seu testemunho (e que eu gravei, últimas palavras públicas, estando no Youtube). Com Sebastião Tavares de Pinho e sua mulher, a quem apresento os meus sentimentos, dialogara eu, no intervalo da sessão, animadamente  sobre o seu trabalho de coordenação de de vários latinistas tradutores das obras dos jesuítas e conimbricenses e, além disso, na crença ou certeza da imortalidade da alma, que tanto eu como ele sentíamos interiormente... Lux... Brevemente escreverei um texto sobre aspectos da sua valiosa obra.
Muita luz e amor nas suas almas... 
Avance para Deus... 
Que Deus brilhe mais no seu íntimo...

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