Como sabemos Thomas More (1478-1535, em cima num desenho de Hans Holbein) foi uma tão grande alma que, destacando-se como advogado e escritor e tendo chegado a Chanceler do reino da Inglaterra, acabou por ser executado ou martirizado como cristão e humanista, ao recusar submeter-se às medidas que considerava injustas do rei Henrique VIII, seja a anulação do seu casamento com Catarina de Aragão, seja a sua separação da Igreja de Roma e passar a ser a cabeça suprema da Igreja de Inglaterra. No dizer de Pina Martins, foi a «vítima da crueldade de um abominável tirano», secundando o que escrevera na época o Cardeal Reginald Pole (1500-1558), irenista (pacifista) e erasmiano:« Meus queridos compatriotas da cidade de Londres, vós matastes, matastes o melhor dos Ingleses».
3ª edição da Utopia, impressa em Basileia, por Ioannes Froben, 1518, com moldura xilografica de Hans Holbein. |
Se a santidade que lhe foi reconhecida pelo Papa Pio XI em 1935, em conjunto com outro notável humanista na mesma altura executado, John Fisher, terá auxiliado a não nos esquecermos tanto da sua alma, já a sua obra Utopia, permanecerá perenemente como um voo audacioso de uma humanidade melhor, e a palavra Utopia avatarizou-se ao longo dos séculos em muitas das mais pioneiras visões e criatividades literárias, artísticas e sociais.
O navegador português Rafael Hitlodeu, no canto esquerdo, aponta-nos a ilha da Utopia |
Entre nós Pina Martins foi desde jovem uma alma em grande busca de um ser humano e de uma sociedade melhores e rapidamente foi discernindo, por entre as leituras que foram modelando o seu ser, o filão dos humanistas e, particularmente, de três deles, Giovanni Pico della Mirandola, Erasmo e Thomas More, que acabam por se tornar os seus grandes inspiradores, a eles dedicando muitas horas e páginas, palavras e actos, que se perenizaram em publicações, hoje dispersas, talvez um dia unificadas nas obras completas de José V. de Pina Martins (1920-2010) editadas pela Fundação Calouste Gulbenkian que ele serviu incomparavelmente bem. E que aliás já o homenageou em 2015 com um exposição, José V. de Pina Martins, uma Biblioteca Humanista. Os objectos procuram aqueles que os amam, com curadoria de Vanda Anastácio, tendo também nessa homenagem participado Silvina Pereira com um espectáculo Livros que falam.
Pina Martins, considerando a Utopia «um dos livros fundadores da cultura europeia moderna», impulsionou uma tradução portuguesa do original latino, o que foi sabiamente realizado por Aires do Nascimento e editada pela Fundação Calouste Gulbenkian em 2006, e para a qual escreveu uma valiosa introdução, mas já publicara algumas obras morianas anteriormente, tal o de L'Utopie, catalogue de L'Exposition Bibliographique au Centre Culturel Portugais, Paris, 1977.In-4ºgr. de 61 págs., muito ilustrado e hoje raro de se encontrar. Resolvemos então da sua Introduction a este catálogo lermos, traduzindo para português e gravando, a parte inicial e substancial, como se poderá ouvir no fim...
Também deu à luz em 1979, como separata do vol. XIII dos Arquivos do Centro Cultural Português em Paris (1978) L' Utopie de Thomas More et L'Humanisme, que fora a comunicação apresentada à Academia de Ciências em 22 de Junho de 1978 nas comemorações do V Centenário do nascimento de Thomas More. E ainda no mesmo ano, em Lisboa, A Utopia de Thomas More como texto de Humanismo, onde destaca os três preceitos dos Utopianos: "1) Igualdade dos cidadãos no bem e no mal. 2) Amor persistente da paz social e civil (entre os cidadãos e o povos). 3) Desprezo do ouro e do dinheiro."
Em 1982, em Paris, de novo em separata dos Arquivos do Centro Cultural Português, l'Utopie de Thomas More au Portugal (XVIº et début du XVIIº siècle), onde transcreve os ecos em Damião de Goes, Jerónimo Osório, João de Barros, Frei Heitor Pinto e Index da Inquisição (1581 e 1624)
Publica também em 1983, em Lisboa, ,num in-4º de 93 págs., numa bela edição bem ilustrada, Thomas More au Portugal, em parceria com Fernando de Mello Moser, dedicado a Germain March'Hadour.
E em 1998 sai à luz A Vtopia. I de Thomas More e o Hvmanismo Vtópico 1485-1998, catálogo de uma síntese biblio-iconográfica. Lisboa, Imprensa Nacional, in-4º gr. de 168 págs., com um notável Estudo introdutório e notas bibliográficas, onde destaca alguns dos 90 cimélios expostos e descritos, nomeadamente «a minúscula jóia bibliográfica em pequenino formato [32º] (Colónia, 1629), prova evidente de que o livro circulava como vade-mecum de homens cultos...»
As obras escolhidas para a mostra e catálogo (para cuja elaboração colaboraram Maria Valentina Sul Mendes, Maria da Graça Garcia e Margarida Cunha) faziam parte da Biblioteca Nacional e da sua Biblioteca de Estudos Humanísticos, hoje preservada no seu núcleo essencial na Faculdade de Letras de Lisboa, onde ele próprio fora professor-bibliotecário e professor catedrático.
Em 2005 dá à luz a sua grande obra moriana, num in-fólio oceânico, de XIII-475 páginas, ou como ele descreve, em "grand format, papel pergaminho Nihil Candidus", embora haja também em tamanho normal, a Utopia III, relato em diálogo sobre o modo de vida, educação, usos costumes, em finais do século XX do povo cujas leis e civilização descreveu fielmente nos inícios do século XVI o insigne Thomas More, inserindo-se assim plenamente na tradição humanista utópica.
Celebrando-se nestes dias o centenário do aniversário de José V. de Pina Martins, ex-Presidente da Academia das Ciências, que teve nele o seu mais brilhante humanista e presidente da Secção de Letras, e que o comemorará no dia 23, numa sessão ordinária, resolvi, como trabalhei e convivi com ele cerca de 17 anos, escrever alguns textos e hoje, dia 19, gravar a tradução, que fiz enquanto lia, da sua Introduction ao L'Utopie, catalogue de L'Exposition Bibliographique, de 1977, com alguns breves comentários.
Acrescentemos alguns outros ecos de Thomas More em Portugal, bem recenseados e comentados por Fernando de Mello Moser e José V. de Pina Martins nas obras já citadas, transcrevendo dessa obra em co-autoria as palavras do historiador João de Barros (1496-1570), na Década III, referentes às Utopias: «porque deu a entender a verdade aos sapientes debaixo de uma nuvem de ficção poética», «Fábula moderna é a Utopia de Thomas Moro; mas nela quis doutrinar os Inglezes como se haviam de governar».
E a homenagem poética que o sábio humanista e estrangeirado António Gouveia (1510-1566), nos seus ora cáusticos ora ternos Epigrammata dedica ao autor da Utopia:«Foi o vosso valor, Thomas More, que foi a causa da vossa perda. Mas é ela também que vos assegura uma glória eterna. A inocência, que não serviu de qualquer socorro em vida, protege agora as vossas cinzas»
Que esta glória eterna, doxa, em grego, e que é a luz espiritual, o tal corpo de glória, que devemos fazer renascer e intensificar-se em vida e para além da morte, esteja bem brilhante e dinâmico em Thomas More e John Fisher, João de Barros e António Gouveia, Fernando de Mello Moser e José V. de Pina Martins, com toda a tradição imortal de filosofia perene dos Humanistas são os nossos votos finais...
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