quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

O poeta, o doutrinador, o ser, em Duarte Montalegre, ou José V. de Pina Martins na sua juventude. No centenário do nascimento.

Os livros do prof. José Vitorino de Pina Martins (1920-2010) escritos sob o nome literário de Duarte de Montalegre, embora nascidos na sua juventude (o primeiro com 21 anos), espraiaram-se por cerca de vinte e quatro anos até ele regressar ao seu verdadeiro nome, provavelmente por compreender melhor a sua vocação de investigador rigoroso do Livro, da Cultura e do Humanismo. 
 Quem  o viu assim também foi João Bigotte Chorão, o emérito camiliano, sempre afável nos diálogos que travava, num pequeno texto em 2011, na Revista de Estudos Italianos, sobre Pina Martins e a Literatura Italiana: «Ao despedir-se do pseudónimo, o autor dos Ensaios de literatura europeia achava que a esses e outros escritos faltava lastro cultural, erudição indispensável, bibliografia exaustiva. Eram textos de carácter divulgativo, nada mais do que isso. Mas divulgar um tema ou um autor não pressupõe conhecimento aprofundado que se expõe sem aparato crítico? Das cinzas de Duarte de Montalegre, nasce o erudito humanista, o ilustre académico Prof. Pina Martins.»
Serão razões  mas também o contacto com a intelectualidade europeia e mesmo com o Humanismo italiano terão relativizado o  fogo de militante universitário católico, em  luta com as forças dissolventes ou anti-religiosas do sensualismo e materialismo,  comunismo e até neo-realismo, algo pouco visível  na sua poesia mas bastante nos textos do jovem doutrinador. 
 Com efeito, a sua 2ª publicação, 1942, aos vinte e dois anos, Juventude e Educação, foi inicialmente uma tese apresentada na II Semana de Estudos Sociais da Juventude Universitária Católica, realizada no Porto, lida diante das autoridades religiosas e oficiais,  integrada depois nos fascículo 6-7 da revista Estudos e só em seguida brilhando autónoma como separata  impressa por Pina Martins nas oficinas da Gráfica de Coimbra. 
 E se na capa continua com a socrática e espiritual vinheta do seu primeiro livro, o afastar os véus (do olho do discernimento) para a abertura à visão do Sol nascente e íntimo,  já na contracapa são transcritas as opiniões de nove personalidades amigas que comentaram o seu 1º livro, de poesia, Pregunta de Pilatos, (neste blogue já apresentado), todas elas reconhecendo tanto o fundo sério e intelectual como a sensibilidade artística e o anseio místico. 
 Quem escolheu ele, jovem estudante, para seus padrinhos? -  Dr. Afonso Lopes Vieira, Dr. Alfredo Pimenta, Amália de Proença Norte, Aurora Jardim, Belarmino Pedro, Dario de Almeida, Eduardo dos Santos, Dr. José Gonçalves Dias, Dr. P. Urbano Duarte. Este, escreveu: «São poemas. Não trajam moda comum e fácil. Não é um coração ferido pela seta, é uma inteligência preocupada a falar ao som do ritmo e da harmonia.» Já Aurora Jardim diz bem:«Versos que correm em busca da Verdade - sua definição e síntese - versos dum abstracionista que parte do seu intimismo para a vastidão infinita do Universo (...)».
A conferência Juventude e Educação tratava na 1ª parte da "Juventude em geral", em função da vida, a de ontem, de hoje e de sempre, sua psicologia, fé, corpo, inteligência sensibilidade e verdade, e da Juventude Universitária Católica. Já na 2ª parte, da "Educação da Juventude em função do Homem", equaciona que há «uma educação da sensibilidade, da vontade, do carácter, da imaginação, pela subordinação de todas as actividades do Homem aos imperativos morais. (...) Eis porque todas as palpitações da nossa alma, todos os movimentos volitivos e todos os desejos e todas as sensações e toda a vida em suma do Homem, devem ser norteadas pela norma. E assim, pela educação integral o homem será Homem integral, isto é, perfeito, pelo menos em vontade impertérrita de o ser, pois caminha triunfantemente para Deus. E Deus está no coração daquele que, integralmente, o procurar.» 
Eis-no com uma metodologia acertada e perene, a da unificação de todas as nossas forças instintivas e anímicas, de que pode resultar a aproximação ao íntimo coração, aonde a Divindade se pode manifestar, mistério que deveremos sempre tentar meditar e aprofundar...
Vemos então que após a primeira desvendação do seu estro poético, A Pregunta de Pilatos, Pina Martins passa a partilhar a sua vocação de pedagogo, moralista, militante católico, traduzindo ainda os livros volumosos sobre Jesus Cristo de Reynès-Monlaur e Karl Adam, e esta polaridade alternante continuará nas próximas obras já que a terceira, de poesia, intitula-se Angústia, e sairá no ano seguinte, 1943, dedicada "ao eminente jurisconsulto Dr. José Gonçalves Dias, com poemas de grande beleza e cultura, unindo sensualidade e divindade, tristeza e felicidade, angústia e força dirigida.
                                        
Estão agrupados em 12 conjuntos, o I - Poemas Homens e Deus. II - Poemetos da Hora Nostálgica. III - Sombras que descem. IV - Bailado de Karsavina. V - Cantares do Reino da Noite. VI - As Vozes do Silêncio no Reino da Noite. VII - Pequenas Tanagras do meu sonho. VIII - Cariátides do Mundo da Quimera. IX - Vertigem de Shéhérazada. X - Diário. XI - Desencontro. XII - Renúncia. Transcrevamos dois do VII, para sentirmos algo do que o jovem Pina Martins vivia animicamente na época:


«Acordo agora: agora me acordei
e lanço fora os braços, do meu leito,
Olho a janela: e olho o senhor Rei
da luz e dela aceito a vida, aceito.

O sol travesso abriu-se em riso e côr.
Ao sol eu peço a luz que já me deu.
Salto da cama: a luz faz-se maior
e numa chama abraça o corpo meu.

A luz desvaira as carnes que se dão.
No quarto paira a ânsia do meu grito
E nesse beijo eu ponho uma oração

- que o meu desejo vai rezando ao Infinito.

         II

«Tanagra  do meu sonho desta noite:
- Vem dos longes longínquos do além-sonho
tornar mais branda a sombra que me afoite
neste rebate de medo tão medonho!

Tanagra do meu sonho: és tão pequena
que na palma da mão posso apertar
o teu friso de carne mais morena
que a mais morena vaga do alto mar!

Tanagra!

Vem serenar a tempestade da alma
que se ergueu dentro de mim; e sagra
no teu encanto breve a minha noite; acalma
a borrasca  de uma ansiedade tanta!
E ri e beija e chora e chora e canta
e faz-te a carne da minha carne magra,

- Tanagra -

A obra conclui com um Posfácio auto-crítico onde defende dever «comunicar o que é relevante ao conteúdo da sua mensagem humana, ao significado dos seus dramas, fixados em poesia, à novidade dos seus processos técnicos e à razão de ser que lhes suporta o visceral fundamento (...) é que se a missão do poeta é realizar-se pela beleza, num perene esforço de perfeição ideal, ele carece de não esquecer que toda a Beleza é comunicativa, tendendo a difundir-se, por simpáticos influxos, através das sensibilidades, das almas.»
Explica ainda como muitos dos poemas nasceram nas férias grandes em 10 dias de febre e cinco de convalescença,  e outros já tinham sido publicados na revista Estudos, no Novidades de 21.V.1942, e no Ilhavense.
E se nos dá assim algumas pistas para as suas irradiações poéticas em jornais e revistas, mais à frente dá-nos uma para o seu pseudónimo de Montalegre, exigente pois: «Não quer isto dizer que os meus versos sejam rudes, naturalmente agrestes ou vigorosos, do vigor das coisas do monte. Antes tal fossem: ganhariam de excelência por verdade real, o que de requinte não poderiam ter, por verdade fictícia.»
Compara ainda os seus dois primeiros livros de poesia: «Como a Pregunta de Pilatos, Angústia é um livro de experiência psico-agónica. Só que os poemas do primeiro revestiram caracterização ascético-metafísica, de cunho acentuadamente abstractivo, onde a estrutura do segundo, muito mais transparente, reveste caracterização simbólica, de cunho nitidamente sentimental»
De vários dos poemas, entre os quais os que trancrevi, dirá: «neles palpita uma ânsia de definição tão profunda e humana, uma angústia tão sincera e fremente, que deixar de publicá-los seria - penso - quase abdicar, como artista, do mais nobre coronal do artista: o direito, senão o dever, de mostrar, aos homens e a Deus, os meandros mais escondidos do sentimento agónico», explicitando depois que «através da angústia, - a grande experiência das almas, consegue atingir-se os cumes da Graça.» É uma pedagogia de assunção das dores e dúvidas, desassossego e melancolia, culpas e tristeza, num canto e batalha de aspiração à luz, ao amor, ao Divino.
Escritas as suas primeiras obras quando lavrava o incêndio angustiante da 1ª grande Guerra, será então que o seu pseudónimo ou nome literário ecoa o nosso rei D. Duarte, tanto melancólico como doutrinador, do Leal Conselheiro, enquanto o Montalegre é como o monte rude (referido anteriormente), sincero, verdadeiro, que se ergue luminoso ou alegremente na paisagem e percurso atribulado, também espelhado por Paracelso no seu lema Ad astra per aspera?
         
A sua quarta obra publicada, em 1943, O Amor Redenção do Mundo Moderno (que posteriormente será referida, por razões conjecturáveis, sempre sem o Amor), dedicado a Virgílio Godinho, com apreciações na contracapa de Teixeira Pascoaes e de Marcelo Caetano, é de proselitismo cristão, católico e de esperança que a guerra termine brevemente e que a Humanidade renasça. Inicia com uma crítica ao messianismo de Nietzsche e à filosofia comunista, pois «há uma ética de esforço que postula essencialmente a realização humanística: a ética cristã. Faltando ela, fatalmente o humanismo falhara pela base e será, então, antropolátrico, demolátrico, estatolátrico ou qualquer coisa similar; porque não pode compreender-se o homem num quadro de isolamento individualista, sem se atentar em mais altos valores, coordenados ao seu próprio valor intrínseco e metafísico.» Estas reflexões são perenes, e com actualidade redobrada face ao terrorismo, ao neo-liberalismo individualista e à feroz repressão  por governos neo-conservadores.  O texto termina com muita fé:
«Acreditemos firmemente nas forças do homem!
Acreditemos firmemente na sua potencialidade para amar!
Acreditemos que só da caridade promana a redenção!
Acreditemos  no génio cristão e civilizador da cristã e civilizadora Europa!
Acreditamos, enfim, que sobre a ruína das nações abaladas, uma nova ordem se erguerá, em aurora, para levar a vida - a vida do amor - à velha morte do ódio.»
Todavia, a evolução histórica parece desmentir a esperança optimista sonhada por Duarte de Montalegre quanto à missão da Europa, hoje cada vez menos cristã e civilizadora, antes subjugada por tendência belicistas, globalistas ou mesmo as imperialistas da USA...
        
Em 1945 sai a 5ª obra, apologética, Cristo no Pensamento Moderno, um trabalho valioso de investigação, no qual Pina Martins procura defender as doutrinas ou teses do catolicismo face às diferentes interpretações gnósticas, heréticas, racionalistas e modernistas, tentando provar ainda que só a revelação de Jesus e do seu amor caridade é suficiente e completa, face às antigas religiões, que vai descrevendo de forma abreviada e com as limitações do que conhecia, reservando maior apreciação para Sócrates e Platão. "Das heresias contemporâneas salientarei o socialismo, o liberalismo e a estatolatria pagã do marxismo-leninismo" e contra elas escreve as últimas páginas, antes de concluir com o apelo a seguirmos o "sulco luminoso que ele [Jesus] traçou, com o seu novo mandamento de amor; não devemos transigir com os erros grosseiros que o negam, pois negar-nos-íamos assim, nós que nos julgamos, como valores, participações da Verdade Suprema; não devemos enfim seguir outra norma de conduta, que não esteja contida na mensagem vitalista do seu Evangelho. Só por este meio nos realizaremos no Senhor, em pensamento e acção; e só por este meio, com efeito, demonstraremos a presença de Cristo em nós e no meio de nós. » 
Às 62 páginas do ensaio seguem-se 53 páginas, com 125 extensas anotações, ligadas a  citações de autores,  concluindo, em onze páginas com À margem das anotações, onde critica de novo Hegel, o Comunismo e, mesmo no fim, Oliveira Martins por ter escrito no II vol. da História da República Romana (1885) que o «Cristianismo é uma alucinação fúnebre que substitui ao realismo naturalista um realismo fantasmagórico, e ao culto do Amor desenfreado o culto desvairado da Morte. S. Paulo é um António que traz nos braços o esqueleto de Cleópatra», encerrando persuasivamente: «Não se apercebeu Oliveira Martins de que para a concepção cristã, o homem só se realiza no Infinito pela superação da morte, e que, como disse George Valois (Le Père, Paris, ed. définitive, 1924. p. 122), «l'amour tue l'amour», paráfrase do Amor omnia vincit, ou mesmo do soneto de Antero Quental, Mors Amor, já trabalhado neste blogue, Antero a quem dedicou uma tese ainda hoje inédita, pois foi só policopiada...
 E acrescenta «Não é verdade que as almas simples sentem Deus tão naturalmente, como sentem o calor do sol ou o perfume de uma flor?» (A. Carrel, A Oração, Livr. Tavares Martins, Porto, 1945. p. 17). Temos de amar a beleza da ciência e também a beleza de Deus (Idem, ib., p. 44). Se a razão pode amar, por ela mesma, a beleza da Ciência, foi Cristo que nos ensinou a amar a Beleza de Deus. E nós precisamos de Deus, como o peixe de água e o coração de amor». 
                                            
No ano seguinte, 2ª grande Guerra já terminada, 1946, Duarte Montalegre-Pina Martins dá à luz Cântico, na colecção Poesia Nova, de Lisboa, onde manifesta a sua religiosidade intensa, da aspiração e entrega a Deus, de corajoso enfrentar da noite e isolamento, sofrimento e morte (na linha de Antero de Quental, uma das suas almas fontes na época) e, simultaneamente, de procura, sonho e entrega à amada que tanto deseja, sincera e de toda a sua alma e sangue. Tinha 26 anos...
Após uma bela Oração Matutina ao Senhor, encontramos Os Primeiros Poemas de Amor, Do Longe e do Sem Fim, Verbo e Sangue, Cântico da Saudade, Cântico do fim da Noite. Oiçamo-lo no antepenúltimo poema, Voz do Poeta para Aquela que há de vir antes do fim da noite, decerto um apelo àquela que viria a ser a sua mulher, a Prímula:

"Vem, ó minha Esposa perdida para sempre
No longe e no sem fim do esquecimento!
Vem, ó Minha Irmã deixada para sempre
No rio Létis da sombra que deixei!
Vem, ó Razão que me assiste de gritar
Por aquilo que a vida me não deu!
Vem, ó Sonhada Esperança do meu beijo
E partamos para o mar de uma aventura
Antes que a noite termine onde eu termino
E desça à nossa dor o Espírito Divino
Que nos há-de ressuscitar."
 
Sugestiva alma ao lado do poema Aquela que há de vir...
 
A ordenação neste livro das suas obras, estaria já a preparar o desaparecimento de Duarte Montalegre? 
«Verso: Pregunta de Pilatos, 1941; Angústia, 1943; 2ª edição, com um prefácio de Plínio Salgado, 1945. Cântico, 1946.
Doutrina: Juventude e Educação, 1942.  Redenção do Mundo Moderno, 1943. Cristo no Pensamento Moderno, 1945.
Investigação: Ensaio sobre o Parnasianismo Brasileiro, 1945. Eça de Queirós - Reflexões para um ensaio sobre o seu ideário ético-estético, 1946. Apontamentos Críticos e Literários (a sair)» 
Não sabemos que intuições e intenções precisas se geravam no seu caminho ascensional, mas ainda sairão alguns livros de apontamentos ou ensaios críticos e literários (mais religiosos, e sobre Pascal) sob nome o Duarte de Montalegre, bem como os seus últimos cantos poéticos, em 1950 em Itália, Soffio della Note e, finalmente, Rio Interior, escrito entre 1950-1953 e publicado em 1954, em Lisboa, quando era leitor de Língua e Literatura Portuguesa  em Roma, sentindo-se nele uma crise religiosa, numa certa linha anteriana, já que mau grado todo o diálogo, escuta interior e oração ao Deus bíblico  da sua infância (de facto, uma tão limitada concepção), Jeová não lhe respondia. 
 Todavia, o seu rio de sonhos e aspirações erguia-se matinal e optimisticamente, sublimando a sua aspiração divina nos livros e na sabedoria humanista, por onde se iria aventurar com tanto rigor e ciência quão prodigiosa fecundidade e convivialidade por toda a Europa (nomeadamente Roma, Poitiers e Paris), então bem mais humanista e irenista.
Muita Luz e Amor para José Pina Martins e a Primula.

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