sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Erasmo de Roterdão, nasce a 28 de Outubro de 1467, ou 1469. Alguns dos seus psicomorfismos de mestre, ou seja, forças luminosas dinâmicas...

                     Erasmo, mestre e amigo, ontem, hoje e sempre, perenemente...

    Pintura de Quentin Matsijs....
Pequena homenagem e evocação neste seu dia de anos, pois nasceu perto de Roterdão e 28 de Outubro, provavelmente em 1467 (ano incerto, todavia), co-lembrando e homenageando também José Vitorino de Pina Martins, um erasmiano amigo e mestre sábio com quem muito dialoguei, há poucos anos partido para a comunhão mais directa das almas....
Gravura a sépia de Erasmo oferecida por José V. de Pina Martins. 
       
              “No que foi mestre nos seus dias, Erasmo será mestre para sempre.” 
A expressão mestre é complexa, pois se no Oriente o guru tem um sentido claro de dispersador das trevas, ou ainda de pesado, em termos de conhecimento e sabedoria, o magister latino (provindo do magis, mais, significando o que dirige, ensina, comanda, preside), acabou por ser na época do Renascimento um conceito palco de sátiras e lutas e assim se dizia os magisters nostris, aqueles dum saber escolástico, dogmático e não dialogante, e que foram criticados ou ridicularizados por Erasmo, em especial nos seus tão divertidos Colóquios, 
embora ele próprio se tenha tornado um mestre para milhares de seres pois ao lermos as três mil duzentas e tal cartas que chegaram até aos nossos dias da sua correspondência veremos que muitos se dirigiam a ele nesses termos e com imensa devoção e gratidão. 
E deveremos certamente entre eles referir o nosso Damião de Goes, que não só era seu admirador e amigo e se carteou com ele, como esteve mesmo a viver em sua casa cinco meses em 1533 que foram provavelmente como que uma antevisão do paraíso, ou seja, de mais diálogos quando ambos se reencontrarem nos mundos espirituais, onde já estão aliás há bastante tempo, inspirando-nos ora hoje ora amanhã, no corpo místico da humanidade, alma do mundo ou, como se diz hoje, no campo unificado de energia consciência informação
Ora em verdade, Erasmo de Roterdão foi um mestre, no bom sentido de clarificador e impulsionador, por várias facetas que passo a enumerar:
Mestre viajante, dialogante sábio nas cartas e nas polémicas (nomeadamente na fulcral com Lutero, em defesa do livre-arbítrio), pioneiro do amor aos estudos das Belas-Letras ou das literaturas clássicas greco-latinas, e da Poesia e Eloquência à Retórica e à Gramática, mestre na Pedagogia (tendo vivido várias vezes de dar aulas), mestre no acesso das mulheres ao estudo e à educação, mestre enquanto dominava o latim e o grego, mestre na firmeza da sua posição por si mesmo e não se deixando influenciar demasiado pelas pressões viessem de quem viessem. 
Por vezes acabou por retirar algo, ou retractar-se da sua ousadia, tal como a designação de Novo Instrumentum, para a sua edição corrigida (segundo manuscritos antigos) em 1515 do Novo Testamento, ou ainda "o coma joanino", uma interpolação tardia no Evangelho de S. João por ele assinalada e pelo qual se introduzia o Espírito Santo na Trindade, antes de ela ter desabrochado como doutrina na nascente instituição Católica romana, mas que não tinha essa confirmação nas Escrituras...
Mestre da união da sabedoria dos antigos e pagãos com as fontes autênticas do Cristianismo, os Evangelhos e os escritos dos primeiros Padres da Igreja, dos quais muitos ele traduzira e purificara, comentara e editara.
Mestre da crítica e da ironia, bem desenvolvida no Julius Exclusus, a um papa guerreiro (publicada anonimamente, pois Erasmo apesar de certas dispensas era um clérigo da Igreja...), nos Colóquios e na sua obra-prima o Elogio da Loucura, mestre da cultura europeia letrada (que está ficar cada vez mais longe de tal, pragmatizada, "bolonhizada", confinada, superficializada), mestre de príncipes e letrados, mestre dos cristãos (frase de um correspondente em Espanha, onde teve grande sucesso, tal como Marcel Bataillon narra magistralmente no seu Erasme et l'Espagne, 1937), mestre da concórdia, da paz (na altura designada mais pela palavra grega irene), e portanto da corrente de irenismo ou pacifismo europeu da qual é um exemplo a sua obra Consulta acerca da utilidade da guerra contra os Turcos, e que hoje continua tão actual face ao que por lá se passa e face ao imperialismo tão criminoso e inepto norte-americano e dos seus aliados e coligados, sempre prontos a bombardear e matar, oprimir e manipular... 
Neste sentido irenaico, crítico da guerra e fomentador da paz (e da economia e  educação, que era o que o Ocidente devia incentivar e exportar...), escreveu: "O importante, onde se deve aplicar toda a nossa energia, é a curar a nossa alma das paixões: Inveja, ódio, orgulho, avareza, concupiscência. Se não tenho o coração puro, não verei a Deus. Se não perdoar ao meu irmão, Deus não me perdoará... S. Agostinho encontrou um ou outro caso onde não se reprova a guerra: mas toda a filosofia de Cristo a condena. Os apóstolos reprovam-na sempre, e os doutores santos que a admitiram em certos casos, em quantos outros não a condenam? Porquê procurarmos à custa duma passagem evangélica o com que autorizar os nossos vícios?"
Nesta linha seguirá também no séc. XXI entre nós Agostinho da Silva, apelando a reconhecermos que o infiel está dentro de nós e é com ele que devemos travar a guerra santa....
Mestre de Cristianismo, nomeadamente com o seu super-lido Manual do Cavaleiro (ou Soldado) Cristão, de espiritualidade, tal como com o seu Modo de Orar a Deus (que traduzi, com Álvaro Mendes, do latim e comentei, em 2008, nas Publicações Maitreya), de mística ao Divino, esta considerada como o sumo Bem a ser procurado e que nos aponta em vários textos religiosos, nos encontros com Jean Vitrier (narrado na vida que escreveu do mesmo, bem como de John Colet) e sobretudo (ainda que pouco reconhecido) no Elogio da Loucura (Stultitae Laus), na loucura dos amantes, na abnegação dos compassivos ou no êxtase dos místicos.
Frontispício do Elogio da Loucura

Os desenhos nas margens, de Holbein, tornam esta obra ainda mais forte...
 
A sua modernidade está bem visível na profunda auto-consciência crítica (seja a ironizar consigo próprio no Elogio da Loucura ou no Ciceroniano), na percepção da relatividade das coisas e costumes,  da moral e da própria verdade, na fragilidade do conhecimento humano, nomeadamente nos seus aspectos espirituais e religiosos (“anotação ridícula, lapso miserável, engano”, surgem nas notas que inseriu no Novo Testamento, em relação às interpretações que S. Tomás de Aquino fizera), donde uma reserva quanto ao valor e eficácia de superstições, rituais, dogmas, fanatismos e seitas, discernimento hoje mais do que nunca necessária quando vemos a expansão que nas populações mais desfavorecidas têm as muitas seitas manipuladoras e redutoras do Cristianismo ou da Religião, tal como vemos em tantas igrejas do reino de Deus, ou dos Últimos dias ou ainda Baptistas e outras...
Mestre na valorização da transformação interior, da metanóia a partir da experiência espiritual, da vida vivida em relação às doutrinas e ensinamentos.
Na valorização da convicção pessoal obtida por esforço ou studium, nomeadamente dos textos sagrados para se poder transformar a mente e o coração, a postura e a acção.
Neste sentido dirá: Ego aliam artem notoriam non novi nisi curam, amorem, et assiduitatem. Fácil de compreender em português mas que traduzimos com variantes de sinónimos: " Eu não conheço outra Arte de Conhecimento que o tomar de dores, amar o assunto e perseverança.”
Mesmo a sua actualidade em termos de política é impressionante e terminamos com ela para nos rirmos um pouco dos reis ou governantes e políticos modernos que nus sempre estão e vão e despojam a muitos, e para ver se eles fazem alguma metanóia, ou seja, se os pressionamos a tornarem-se mais justos e servidores do bem comum:
Sobre o adágio A Mortuo I, IX. 12, comenta: «Não há pacto nem limite, cada dia eles inventam novas formas de impostos, e o que quer que tenha sido introduzido para satisfazer uma necessidade momentânea é retido muito agressivamente”, o que podemos ver bem nos preços que as companhias petrolíferas, sem dúvida um dos cartéis ou grupos de pressão mais gananciosos do mundo, continuam a exigir aos consumidores, e que são bem dobrados pelas alcavalas impostas pelo Estado, fazendo com que estejamos a sustentar com os consumos de tais combustíveis, e por isso se recomenda andarmos  a pé sempre que se possa...
Para nos fortalecermos nestes tempos de crises múltiplas nada há então como o Amor, a Oração, a contemplação, a acção justa e solidária com o Bem Comum, e certamente o studium e o diálogo, como neste momento estamos aqui a fazer, a convergir na taça comum que Erasmo nos oferece a beber...
Oiçamos então Erasmo, num extracto do Modo de orar a Deus, uma obra  boa mas que não teve grande sucesso entre nós, apesar das dedicatórias esforçadas que fiz então e que reproduzo: 
                                                         Modus orandi Deum:
«Também Tiago recomenda, a quem necessita de sabedoria (sapientia), pedir (postulare) a Deus. Se alguém está aflito e triste, recomenda orar-lhe. Atribui, com efeito, à oração uma importância tal que o que ora pede para si mas também para os outros, por quem Deus é rogado. Se alguma pessoa está doente, ordena que os presbíteros sejam chamados para ela ficar livre da doença do corpo e da alma, através das suas preces. Deseja, finalmente, que todos os cristãos se socorram mutuamente com preces recíprocas a Deus: «orai, diz, mutuamente por vós, para que nos salvemos. A oração assídua do justo tem muito poder em verdade». 
Deve-se agora considerar como o Senhor Jesus, que se entregou com tanta diligência, que se esforçou (conatus) com tanto entusiasmo (studio) por transformar (infigere) as almas dos seus, provocava frequentemente com o seu exemplo os seus discípulos a orarem, tal como a ave que incita as suas crias a voarem. Muitas vezes, nas letras evangélicas, repete-se que o Senhor se recolheu para um lugar deserto ou ascendeu a um monte para orar e, algumas vezes (interdum) mesmo, sozinho. E não se deve ignorar que orou quotidianamente com os seus discípulos, tal quando se lê como, antes da comida, abençoou e deu graças e, depois do alimento, entoou hinos em louvor de Deus.
Sempre que, porém, tendo abandonado a multidão, se recolheu para orar, ensinou-os a orarem frequentemente ao Senhor em favor daqueles que foram encarregados de guiarem, sabendo que é infrutífera a obra do doutor ou do preceptor (monitoris) se nele não é infundido (adspiraverit) o favor celestial. 
E, de facto, não há prejuízo para uma boa obra, se, por vezes, ela é interrompida para se realizarem preces secretas, pois o que assim se isolou volta ao seu serviço mais pronto...»
Terminemos esta pequena invocação e  evocação com quatro dos seus valiosos ditos, que publiquei nas folhas iniciais do Modo de Orar a Deus:
                                                Sancte Erasme, ora pro nobis

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