quarta-feira, 5 de outubro de 2016

O Espírito e a Divindade em Antero de Quental, nas "Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do século XIX".

                                         
O ensaio sobre as Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do século XIX é sem dúvida o testamento filosófico de Antero de Quental, como muito bem referiu em obra com tal título o meu dilecto conversante e amigo Sant' Anna Dionísio e, pesem os anos e as reedições prefaciadas, confessemos que ainda há muito para se trazer ao de cima ou explicitar melhor, pois muitos dos comentadores não se movimentavam bem no nível espiritual da interpretação, pelo que é sempre bom, de tempos a tempos, relerem-se e meditarem-se algumas  frases e conceptualizações deste texto seminal da Tradição Filosófica e Espiritual Portuguesa e delas recebermos algumas clarificações e impulsões...

                              
No começo da III e última parte de tal ensaio, como sabemos publicado na Revista de Portugal nos três primeiros números, em 1890, consultado para este texto na reprodução do manuscrito original publicado por Joel Serrão e Ana Maria Almeida Martins na Fundação Gulbenkian em 1991, encontramos na página 89 alguns contributos notáveis para uma melhor compreensão do espírito, mistério que ele sondou denodadamente e com fases bem subtis de se discernirem ao longo dos anos. Oiçamo-lo, ou mesmo meditemo-lo:
«O espírito é pois uma força espontânea: mas é, por cima disso, uma força consciente. É esse predicado que vem completar a sua plenitude e fazer dele a força tipo. Conhecendo-se, possui-se na identidade fundamental de todos os seus momentos, vê-se na sua unidade e propõe a si mesmo o seu próprio fim. Este conhecer-se tem graus: é mais ou menos íntimo; mas, ainda nos ínfimos graus, a unidade do espírito aparece já, encerrando o mais elementar [,] a virtualidade do mais pleno. Fazendo-se toda a evolução do espírito dentro da sua própria natureza, e não sendo mais do que a gradual realização de si mesmo em si mesmo, há oposição entre as sucessivas esferas do seu desenvolvimento, nunca contradição. É assim que o espírito, sem sair de si, se cria e fecunda continuamente, compenetrando-se cada vez mais com a sua própria essência, extraindo dela, da sua infinita virtualidade, momentos cada vez mais complexos e ricos de ser, até atingir a mais alta consciência de si. Reconhece-se então idêntico com o eu absoluto e independente de toda a fenomenalidade: concebe Deus como o tipo de sua mesma plenitude, concebe e sente a vida moral como a esfera da realização desse ideal. A realização desse ideal parece-lhe agora como o seu fim último, aquele de que os fins anteriormente propostos, limitados e transitórios, eram só imagem e preparação. Este fim último, porém, sendo imanente, confunde-se com a perfeição do seu mesmo ser: na atracção dele reconhece a causa de toda a sua evolução, que só para realizá-lo tendia. Pela realização dele é livre - livre na medida exacta em que o realiza - porque quanto mais o realiza, mais realiza a potência e a perfeição do seu próprio ser. Reunindo deste modo na sua unidade, agora consciente, a causa e o fim, a sua autonomia é completa».
   Acolhamos mais atentamente deste longo raciocínio a passagem preciosa sobre o dinamismo do Espírito, numa das conclusões que Antero nos dá: «compenetrando-se cada vez mais com a sua própria essência, extraindo dela, da sua infinita virtualidade, momentos cada vez mais complexos e ricos de ser, até atingir a mais alta consciência de si».
   Compreendamos que esta "compenetração-extração" de virtualidades, se passa tanto como interiorização e meditação profunda como também como acção ética dinâmica geradora de crescimento e elevação do ser. 

    E pode ser clarificada melhor no seu dinamismo desvendador se nos exprimirmos assim:  por tal meditação e dinamismo alcançam-se estados de consciência cada vez mais complexos e ricos, até se chegar à mais elevada auto-consciência, isto é, à consciência  do Espírito em nós, da sua centelha em nós ou, se quisermos, do Espírito infinito que perpassa por nós, talvez até a opção mais acolhida ou sentida por Antero, embora ele não seja preciso em que plano e sob que forma ou modalidade de manifestação o sentiu ou realizou mais.
                                       
 Em verdade, Antero está a aludir mais ou menos expressamente à meditação, à gnose, ao auto-conhecimento profundo, o qual apela a uma capacidade de se acalmarem as ondulações do pensamento, tão influenciadas pelo quotidiano, para que o próprio espírito possa ser sentido e logo expandir-se ou desvendar-se nas virtualidades de estados interiores de paz, alegria, claridade, determinação, visão...
Quanto à identificação que faz da tal "mais auto-consciência de si mesmo" com a da centelha do espírito, ela de facto não está neste ensaio assim mencionada, embora por vezes pontilhe aqui e acolá ao longo da sua vida, sobretudo na correspondência e a ela deveremos recorrer...
Mas é certamente o santo Graal desta nossa demanda compreendermos melhor quem é, ou como é, o Espírito, e como é que Antero de Quental o foi vendo, sentindo, pensando ao longo dos tempos, algo que está ainda pouco claro, pesem as boas aproximações de Leonardo Coimbra e Sant'Anna Dionísio, de António Sérgio e Joaquim de Carvalho, especialmente a deste e, certamente, as de alguns ensaístas ou anterianos nos sucessivos colóquios ou mesas redondas que se têm realizado no últimos tempos...
                                       
A meditação ou compenetração que Antero do Quental descreve tem naturalmente três faces ou destinações: a do espírito individual, da qual acabámos de mencionar, e as do Espírito Absoluto e ou mesmo Divino, provavelmente aqui apresentadas por Antero mais especulativamente do que por visão interior, quando nos diz que «reconhece-se então idêntico com o eu absoluto e independente de toda a fenomenalidade: concebe Deus como o tipo de sua mesma plenitude, concebe e sente a vida moral como a esfera da realização desse ideal».

Dizemos mais especulativamente, porque ele próprio o afirma por vezes na correspondência com os amigos e, embora escreva «reconhece-se idêntico», ou seja, compreende, realiza ou sente que há uma continuidade de identidade ou de unidade com o Eu absoluto, não encontramos muitos sinais de tal identificação na sua vida e obra a não ser e, aí muito bem e bastantes, na assunção de uma moral superadora do egoísmo e, especulativamente, em várias suposições ou mesmo intuições bem fundadas de que o espírito  Absoluto é mais universal que o individual e que este tem que lutar para vencer as limitações estreitas que o ego e a luta pela sobrevivência lhe impõem.
                                         
Quanto ao afirmar que ele, espírito, é independente de toda a fenomenalidade, o que poderá ser na sua essência íntima, , teremos também de admitir que tal é algo sem dúvida muito difícil de se vivenciar, a menos que se seja um asceta completamente unificado e desprendido, ou um puro observador, um ser que viva numa contemplação constante da Unidade de todos os seres e mundos, algo certamente possível, num nível que pode ser visto como o que a filosofia Advaita Vedanta, da Índia, postulou ou realizou (e da qual publiquei nas edições Maitreya, o Astavakra Gita, o Cântico da Consciência Suprema), mas que a própria visão dinâmica do espírito que Antero assume em acção transformadora e ética acaba por impedi-lo de conseguir manter-se independente de toda a fenomenalidade.

Com efeito Antero afirma que o espírito extrai do fundo de si mesmo os visões, os sentimentos, pensamentos e determinações da vontade pelos quais vai crescendo consciencialmente, portanto numa clara inter-relação com a fenomenalidade da manifestação cósmica, pois pensamentos e sentimentos existem na relação com o mundo...
Isto é algo que a visão Advaita não defende, ao afirmar antes a impassibilidade e perfeição plena consciencial do ser liberto da ilusão da manifestação, libertação que é o reconhecimento do estado inato da consciência pura do espírito ou Atman, idêntico ou mesmo igual a Brahman, o Espírito total ou absoluto ou Divino, já que Ele-Este será o único que é, daí a iniciação indiana expressa pela indiana mahavakia, grande afirmação, Tat Twam Asi, "Tu és Isto ou Ele..."
Anote-se ainda que quando Antero vê ou fala acima do Eu absoluto, ou pelo menos diferente dele, de Deus, ele fá-lo mais de um modo filosófico e ético, vendo-o como o tipo, sem que a noção de pessoa e logo de culto e relação devota com a Divindade desponte, algo que pode não ter sido (e não terá sido mesmo) o melhor para ele, já que deixou de desenvolver de certo modo o coração, o amor e a ligação pessoal à Fonte Divina e assim no final da vida está aberto ao suicídio...
Mas teremos que voltar noutro texto ao Espírito e à Divindade em Antero de Quental já que as Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX têm outros passos bem significativos e merecedores da nossa cogitação, tal como também perseverantemente devemos diariamente meditar e religar-nos ao Espírito e abrir-nos à Providência Divina...

Sem comentários: