segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Autobiografia de Fernando Pessoa: a nota autobiográfica do ano da sua morte.

                                                            
Autobiografia de Fernando Pessoa: a sua desvendação auto-biográfica, oito meses antes de partir a 30-XI-1935. 
Poucos meses antes de morrer, quem sabe se movido por alguns sonhos, trânsitos astrologicos ou pressentimentos, ou se apenas por dores e mal estar, Fernando Pessoa resolveu tirar um retrato de si próprio, o mais fidedigno que poderia ser obtido, mostrando na escolha dos itens, na ordenação e preenchimento descritivo o que ele fora e o que se passava dentro dele como cidadão de alma portuguesa, poeta e escritor, religioso e iniciado.
Para quem o desconhecia e para os vindouros ficaria um testemunho de quem fora na realidade, como vivera e o que realizara, e não só o pensador e escritor que até então poucas obras publicara e que pouco fazia crer que a sua profecia do super-Camões se iria confirmar tão plenamente.
É um texto, que complementado por outros, como as suas cartas finais a Gaspar Simões, o seu primeiro e incontornável biógrafo, e a Adolfo Casais Monteiro, ambos membros da revista e geração da Presença coimbrã, na linha de sucessão da Águia portuense e da Orpheu lisboeta, permite compreender melhor a sua vida e obra, ter-se um eixo da sua biografia e entrevermos melhor os diálogos possíveis com o seu ser e a sua existência pessoal bem como a obra e a demanda que o animaram e que provavelmente também animarão alguns dos seus leitores e leitoras... 
Oiçamo-lo então:
"Nome completo: Fernando António Nogueira Pessoa. 
Idade e naturalidade: Nasceu em Lisboa, freguesia dos Mártires, no prédio n.º 4 do Largo de S. Carlos (hoje do Directório) em 13 de Junho de 1888. 
Filiação: Filho legítimo de Joaquim de Seabra Pessoa e de D. Maria Madalena Pinheiro Nogueira. Neto paterno do general Joaquim António Pessoa, combatente das campanhas liberais, e de D. Dionísia Seabra; neto materno do conselheiro Luís António Nogueira, jurisconsulto, e que foi director­ geral do Ministério do Reino, e de D. Madalena Xavier Pinheiro. Ascendência geral – misto de fidalgos e de judeus. 
Estado: Solteiro. 
Profissão: A designação mais própria será “tradutor”, a mais exacta a de “correspondente estrangeiro em casas comerciais”. O ser poeta e escritor não constitui profissão, mas vocação. Morada: Rua Coelho da Rocha, 16, 1.º dt.º, Lisboa. (Endereço postal – Caixa Postal 147, Lisboa.) 
Funções sociais que tem desempenhado: Se por isso se entende cargos públicos, ou funções de destaque, nenhumas. 
Obras que tem publicado: A obra está essencialmente dispersa, por enquanto, por várias revistas e publicações ocasionais. O que, de livros ou folhetos, considera como válido é o seguinte: 35 Sonnets (em inglês), 1918; English Poems I­ II e English Poems III (em inglês também), 1922; e o livro Mensagem, 1934, premiado pelo Secretariado de Propaganda Nacional, na categoria “Poemas”. O folheto O Interregno, publicado em 1928, e constituindo uma defesa da Ditadura Militar em Portugal, deve ser considerado como não existente. Há que rever tudo isso e talvez que repudiar muito. 
Educação: Em virtude de, falecido seu pai em 1893, sua mãe ter casado, em 1895, em segundas núpcias, com o comandante João Miguel Rosa, cônsul de Portugal em Durban, Natal, foi ali educado. Ganhou o prémio Rainha Vitória de estilo inglês na Universidade do Cabo da Boa Esperança em 1903, no exame de admissão, aos 15 anos. 
Ideologia política: Considera que o sistema monárquico seria o mais próprio para uma nação organicamente imperial como é Portugal. Considera, ao mesmo tempo, a Monarquia completamente inviável em Portugal. Por isso, a haver um plebiscito entre regimes, votaria, com pena, pela República. Conservador do estilo inglês, isto é, liberal dentro do conservantismo, e absolutamente anti­-reaccionário.
Posição religiosa: Cristão gnóstico, e portanto inteiramente oposto a todas as Igrejas organizadas, e sobretudo à Igreja de Roma. Fiel, por motivos que mais adiante estão implícitos, à Tradição Secreta do Cristianismo, que tem íntimas relações com a Tradição Secreta em Israel (a Santa Kabala) e com a essência oculta da Maçonaria. 
Posição iniciática: Iniciado, por comunicação directa de Mestre a Discípulo, nos três graus menores da (aparentemente extinta) Ordem Templária de Portugal. 
Posição patriótica: Partidário de um nacionalismo místico, de onde seja abolida toda infiltração católico­ romana, criando­-se, se possível for, um sebastianismo novo, que a substitua espiritualmente, se é que no catolicismo português houve alguma vez espiritualidade. Nacionalista que se guia por este lema: “Tudo pela Humanidade; nada contra a Nação”. 
Posição social: Anti-comunista e anti­-socialista. O mais deduz­ se do que vai dito acima. 
Resumo de estas últimas considerações: Ter sempre na memória o mártir Jacques de Molay, grão­-mestre dos Templários, e combater, sempre e em toda a parte, os seus três assassinos – a Ignorância, o Fanatismo e a Tirania. 
Lisboa, 30 de Março de 1935."

Certamente que uma hermenêutica correcta e profunda desta síntese autobiográfica deveria trazer à luz muito dos sentimentos e desilusões, dúvidas e conhecimentos, realizações e convicções que o animaram, e tal é um trabalho hercúleo, impossível mesmo para uma só pessoa...
Realcemos apenas por hora, a sua crença na vocação imperial de Portugal, o considerar-se um monárquico, liberal,  absolutamente anti-reaccionário, ainda que anti-socialista e anti-comunista, e a coragem com que assumiu publicamente a defesa das Associações Secretas contra a opressão salazarista, e a de se identificar como um gnóstico cristão mas oposto à Igreja Católica Romana, numa contracorrente da normalidade de então, valorizando muito a sua busca espiritual e iniciática, nesta confessando-se mesmo iniciado na Ordem Templária de Portugal (o que permanece ainda hoje um mistério) e deixando-nos como seu testamento final: "Ter sempre na memória o mártir Jacques de Molay, grão­-mestre dos Templários, e combater, sempre e em toda a parte, os seus três assassinos – a Ignorância, o Fanatismo e a Tirania"...
O que era da época e o que seria e diria ele hoje, e como nos sentimos e assumimos nós, eis uma boa tripla questão a cogitarmos...
Lux, Amor et Pax Profunda.

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