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| Um dos mestres mais valiosos da Tradição espiritual Portuguesa, mestre Leonardo Coimbra critica Nietzsche e o germanismo violento, em modo profético e actual, e aprofunda o socratismo solidário e universalista de Antero de Quental... |
O texto que transcrevemos do genial Leonardo Coimbra (1887-1935) é pouco conhecido e tem tanta actualidade face ao que se passa no Ocidente que vale a pena relê-lo, já que certos aspectos morais, filosóficos e sociológicos apontados por Leonardo têm vindo a assumir proporções que manifestam tanto a perda da relevância humanística e até legal da consciência individual e do seu discernimento claro do bem e do mal como ainda o crescimento do germanismo violento, numa tendência e direcção beligerante anti-russa que pode gerar uma III grande guerra, por ora em curso de forma disfarçada, entre o bloco oligárquico da União Europeia, NATO e USA contra a Rússia e os seus possíveis aliados.
É bom refrescar-nos no verbo ou sermo directo de mestre Leonardo Coimbra para discernirmos algumas das raízes germânicas e nitzscheanas do actual infrahumanismo violento e sem ética ou palavra prevalecente na oligarquia que controla o Ocidente e causa tanta guerra e sofrimento no planeta, no qual, em contrapartida, o belo sonho utópico da multipolaridade se vai erguendo libertadoramente, apesar das sanções que o imperialismo opressivo norte-americano vai lançando.
O texto foi publicado pela 1ª vez na revista Atlântida em Abril de 1917, numa época em que Nietzche era muito lido em Portugal, nomeadamente por Fernando Pessoa que o comentou (com semelhanças a Leonardo) extensamente em alguns textos sob a designação Moral da Força, e que eu publiquei no livro de inéditos seus intitulado Moral, Regras de Vida, Condições de Iniciação, em 1988, e que talvez venha a transcrever...
Entretanto em 1987 o texto de Leonardo foi reimpresso no 2º volume dos Dispersos, de Leonardo Coimbra, Filosofia e Ciência, pela editorial Verbo, mas como é bastante valioso e não se encontra acessível na internet, resolvemos transcrevê-lo do número 18 da revista, que possuímos, e que me veio às mãos quando escrevia um texto sobre João de Barros, o fundador e co-director desse valioso mensário que foi, é e será a Atlantida.

Os estudiosos da Filosofia, ou os amigos do Conhecimento, poderão questionar ou desenvolver os resumos críticos que Leonardo Coimbra teceu dos principais representantes da filosofia alemã, bem como os comentários escritos brevemente por mim, e particularmente os admiradores de Nietzsche poderão enfrentar e questionar a visão arguta, ética e socrática de Leonardo Coimbra sobre o esforçado autor do Ecce Homo e de Assim falou Zaratustra. Os sublinhados por mim realçam ideias-forças importantes:

«Quando Descartes [1596-1650] iniciou a dúvida metódica para fazer a revisão dos conhecimentos humanos, a moral foi posta à parte, aceitando provisoriamente a moral comum.
É que o espírito moral, a consciência, eram a substância do homem, o seu modo peculiar de ser dentro da natureza.
Duvidar dos preceitos duma certa moral era legítimo, mas discutir a polarização ética nenhum povo ou pensador, para quem a vida espiritual exista, o pode fazer.
[Comentário:Leonardo identifica a consciência humana como o espírito e com a moral, e num comportamento que assenta numa polarização ética, numa escolha entre o bem e o mal. Esta valorização da individualidade ética como substância do ser humano está porém hoje ao arrepio das modernas tendências infrahumanistas, tais as de que não há identidades, nem géneros, nem bem nem mal.]
Esta função criminal foi desempenhada na Alemanha pelo menos artificial, mais recto e fundo dos seus pensadores.
Nos outros filósofos alemães perde-se o jeito próprio sob a erudição (e não educação) clássica. Em Nietzsche [1844-1900], filósofo da aristocracia, é o temperamento mais gregário e directamente germânico. Homem de reações, ele é aristocrático e refaz aquela insípida e revelha teoria do [eterno] retorno, ele é germânico, e, porque delira, insulta a lenta e vagarosa força da raça não vendo a tremenda condensação, que se forma.

O seu pensamento faz o salto mortal continuamente, e o jeito da cabriola é bem marcante no bailarino Zarathrusta.
O germanismo abafa sob o disfarce da cultura clássica, e, em Nietzsche, dá-se a maior revolta naturalista de que fala a história do pensamento humano. É, por isso, que, em Nietzsche, se faz o estudo do germanismo em estado de natureza, sem artifícios. Nos outros filósofos são teorias mais ou menos complicadas a mascarar a mesma vontade depredadora dos valores espirituais. [Crítica fortíssima da filosofia alemã, ou do germanismo nela.]
Depois veremos que, em todos, a pessoa moral se dilui num panteísmo moral, que é a sua negação e aniquilamento.
Nietzche é o fenómeno singular dum pensamento especulativo, desempenhando a mesma função social que o crime.
Fenómeno duplamente curioso, pois mostra como a sociedade é uma arquitectura de pensamento ainda errado, onde a própria imperfeição se revela no ilogismo do crime, e mostra como, dentro da humanidade, o germanismo, que Nietzsche representa, tem uma função social de crime.
Ora se o crime é um ilogismo social, o germanismo não é mais do que um erro da organização social humana.
É, com efeito, este erro, que, de armas na mão, a Europa corrige, e é também, por isso, que acabada a guerra, terá a Europa de emendar a sua organização social, sob pena de tudo permanecer na mesma.
[Comentário: Estava-se a meio da I grande guerra, e as previsões de Leonardo Coimbra confirmaram-se: o germanismo violento e supremacista, mesmo derrotado na forma do nacional socialismo nazi, voltaria ao de cima. E mesmo depois da sua derrota na II grande guerra, estamos na mesma e a Rússia enfrenta de novo extremismos e o germanismo da União Europeia, o convencimento de que são os mais perfeitos, superiores, aristocratas, os mais fortes e logo tentando dominar meio mundo]
Que quer então Nietzche? Como o crime, quebrar a polarização ética e tomar à sua conta a definição do bem e do mal. É, com efeito, para essa obra que corre todo o ímpeto da sua vontade.
É como o espectáculo da lava destruindo todas as maravilhas acumuladas sob a boca dum vulcão.
Fenómeno mais complicado que um ilogismo social, pois é, no bom e velho sentido da palavra, um autêntico pecado contra Deus, guarda dos mais altos valores morais.
O bem e o mal são menos fenómenos de adaptação social, sem qualificação ética.
São as categorias sociais, não criadas por uma recíproca e integra adaptação social, porque seriam de novo lógicas; mas categorias, tábuas de lei, dadas aos fracos pelos fortes vitoriosos.
Eis, pois, o bem e o mal como simples funções da Força. Mas qual força? É claro que o germanismo, sendo o crime, seria uma descida, uma queda da diferenciação; mas da moral à psicologia, à simples biologia ou até à física?
A redução de Nieztsche é essencialmente fisiológica, como era de prever. É a antiga alegria, a embriaguez do hidromel a reclamar lugar filosófico. Os fortes são essencialmente os ágeis, os gigantes de punho rijo e vontade feroz. Como a redução atravessa todos os graus, há também os valores psicológicos mais simples: a manha, a crueldade, a vontade elementar, ou tendência obstinada e progressiva.
Aqui é ainda Nietzche, no seu aspecto histórico, um homem de reacção.
Discípulo de Schopenhaeuer [1788-1960], dele recebera Nietzsche o conceito de vontade elementar, cega, anterior à inteligência; mas, como Schopenhauer concluíra a dor e a negação de viver, o nirvana, Nietzsche irá concluir a grande Alegria, tamanha que, sem cessar, se repita.
De aí ainda, a transmutação dos valores. Schopenhauer concluíra a piedosa simpatia, pela mesma analogia que lhe dera a vontade essencial. Nietzsche inverte, e, como Schopenhauer é pouco, incha, hiperboliza até Cristo. E agora Nietzsche é já o Anti-Cristo.
O notável filósofo [e teólogo dinamarquês] Höffding [1843-1931] coloca Nietzsche, com Guyau, na filosofia dos valores. Eles, com efeito, ambos buscaram à vida um significado de valor; mas Guyau [1854-1888] com o seu critério de vida generosa e fecunda nunca saiu da vida estética e moral.
Por isso mesmo o sociólogo [positivista russo Eugène] Roberty [1843-1915] encontra, em Nietzsche, um maior interesse sociológico, pois o crime, como a doença na biologia, desagrega os elementos analíticos da lógica social.
Se Nietzsche foi o alto e sincero representante do naturalismo germânico, não seria preciso ir buscar a outros filósofos a demonstração da queda dos valores intrínsecos do espírito em forças de ordem inferior.
Curioso é, no entanto, observar como o próprio Leibnitz [1646-1716] acabava por esgotar a liberdade pessoal no necessitarismo panlogista duma característica universal.
A eficácia da acção social escapava-lhe desde o mundo físico, vendo na força um apetite, uma mónada inferior, ao mesmo tempo que Newton, pela alta concepção das forças centrais, claramente estabelecia o carácter de interdependência social das forças.
É assim que Leibniz, aplicando a sua genial concepção de continuidade à vida e à morte, dava aos corpos a simples preformação e redução de simetria geométrica, fugindo à função criadora da epigénese.
E a acção moral não era mais que o desenvolvimento lógico duma preformação social: a harmonia preestabelecida.
Kant [1724-1804] toma, para fundamento moral, o facto empírico do dever na sua forma da lei universal; bela atitude para uma fecunda autonomia do dever, se a vontade não tivera de morrer de inanição num mundo anteriormente fechado à sua acção pelos elos duma causalidade absoluta.
Fitche [1762-1814] atinge a altíssima noção dum Universo, simples teatro da acção moral; mas dilui logo essa moral de cada eu no corpo informe dum Eu transcendente, que, a existir, será o único. [Crítica a um certo absolutismo ou mesmo advaitismo, que desvaloriza o eu ou espírito individual]
Hegel [1770-1831] desenvolve por antinomias o pensamento experimental, fazendo-o esquecer a experiência, portanto a acção social. É claro que tudo será nos necessários momentos dessa evolução e o espírito evoluindo em história dará a esta a plena justificação de todos os seus sucessos. «Que a história tem sempre a razão» é o pensamento que ao próprio [Wilhelm] Wundt (1832-1920) não é estranho; veremos se concordam com a actual derrota alemã. Wundt, estudando a acção da sociedade na psicologia individual, sobrepõe à vontade individual a do grupo.
Mais profundamente o francês [Émile] Durckeim [1858-1917] se deu ao estudo das criações sociais, chegando a estudar as próprias categorias do pensamento dentro deste critério.
Mas, precisamente aqui, o indivíduo toma conhecimento da consciência social para a penetrar, possuir e clarificar.
É que o valor intrínseco do espírito é, nos alemães, apenas um conhecimento de superfície, não uma assimilação profunda até ao núcleo do próprio ser. Não sendo filósofos de profissão, sem o dever profissional da cultura, gritam claramente os imperativos inferiores da Força.
Forças, que, neste caso, não tem o significado mecânico; mas é antes a energia, ou capacidade de acção.
Ora a energia, neste sentido de utilização, é, mesmo no mundo físico, essencialmente regressiva, em permanente descréscimo.
Em técnica social essa capacidade de acção soçobra e aniquila-se, quando a não dirige um superior destino [ou intencionalidade superior]. É a tirania das coisas criadas sobre a acção que as gerou, que vem desde as impasses do pensamento, quando os conceitos objectivados perdem o seu potencial psíquico, até ao absoluto encadeamento da atenção social ao colosso da indústria e consequentes impasses económicas duma produção [e consumo] sem freio, nem lei.
É este o erro de todos os obscurantismos sociais. O que o homem tem de lúcido e director é a sua consciência; pôr, de fora e acima dela, qualquer realidade é regressar a formas inferiores de vida, caminhar direito para dúvidas e contradições, que amesquinham e degradam.
O que dá uma aparência de razão aos diferentes obscurantismos é que o vago dos seus conceitos nos permite a visão global dum conteúdo opulento em oposição com o pobre actualismo lógico de cada época.
Também a este contraste vem dar força um finitismo (não no significado que tem na nobilíssima filosofia de Renouvier [1815-1903]) de míngua e miséria.
É assim que, por exemplo, os homens progressivos duma época, quando julgam que o espírito criador de certas formas do passado nelas se esgotou, negam não só o valor dessas formas da tradição, mas até do espírito que as criou, como se nelas se integralmente esgotasse. É então que a reação tradicionalística aproveita o vago do termo, vago cheio das ressonâncias das harmonias passadas.
Se compreendermos o infinito da acção criadora que a cada momento cria e excede as criações, saberemos então que, ao dispor da mais alta direcção criada, uma indefinida capacidade da acção se nos oferece.
Então é com um socratismo, isto é, com os mais altos e claros conceitos da consciência, que partimos para a ação social.
O que demais alto e claro existe no homem é o supremo persuasivo (Fouilée, [1838-1912]) da moral. [Belo e valioso critério de persuasão ou motivação interior, mas quantos o sabemos cultivar, meditar ou conceber e realizar?]
O homem quer a mais alta harmonia da vida ideal que concebe, e, como a quer, desdobra-se em amoroso e fecundo esforço de acção.
A consciência é logo, como conhecimento ou querer, um laço, uma realidade social.
Elucidar os imperativos da consciência social, a ponto de poderem ser os supremos persuasivos de cada consciência, é a verdadeira tarefa duma moral autónoma e ao mesmo tempo rica da maior realidade ou mais concreto universalismo.
Clarificar os imperativos sociais, ao ponto de os tornar em claros e amorosos desejos de cada consciência, é uma boa parcela de verdade e justiça, que pertence à parte nobre da tendência social denominada anarquista.
Introduzir as seduções da finalidade moral é dar às sociedades uma clara directriz, de verdadeira liberdade, eficaz e criadora.
[Nestas ideias de fazer coincidir os imperativos ou deveres sociais e solidários com a aspiração desiderativa ou amorosa de cada consciência, em liberdade ou segundo o seu livre-arbítrio e não por imposições, e partilhá-las solidariamente, Leonardo Coimbra continua e aprofunda claramente tanto a aspiração íntima como o labor filosófico e socializante do genial Antero de Quental (1846-1891) expresso em várias cartas e nas Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do séc. XIX.]