quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Poesias dedicada a José V. de Pina Martins, e desafiadas pela alma do seu livro poético "Rio Interior". No dia dos 104 anos do seu nascimento.

José Vitorino de Pina Martins (18-1-1920, Oliveira do Hospital, a 28-4-2010, Lisboa) e Henri-Jean Martin, na biblioteca da Academia da Ciências, de Lisboa.  

Comemorando-se hoje 18 de Janeiro de 2014 os 104 anos do nascimento do tão ilustre pensador, investigador, professor, escritor, conferencista e verdadeiro académico José V. de Pina Martins, autor de centenas de trabalhos valiosos sobre a cultura portuguesa e europeia e o Humanismo e seus mestres, com quem tanto convivi como amigo pleno de afinidades e como ajudante de investigações e livros, resolvi partilhar o que lhe dediquei   algum tempo após a sua partida, escrito nas folhas brancas e  margens do  seu livro, que eu lia, Rio Interior, sua última obra poética (escrita em 1954 e dedicada a Teixeira de Pascoaes que acabara de partir), primeiro um poema, depois frases e versos que dialogam, resumem e intensificam espiritualmente o que ele sentira e escrevera...

Ó amigo e caminhante na senda,
que a música do Sermo Divino
te desperte e te erga à mística viva
dos que conhecem e sentem Deus.

Oh mestre querido, joia do Renascimento
incarnada na Lísia milenária,
vem tecer raios de Luz nas almas,
fazer galgar distâncias, vales e montes
e ascender à montanha da contemplação.

  Ó Deus, guia o nosso ser e viver,
leva-nos até à fonte de Teu Ser
  que com humildade  adoramos,
  invocamos e sintonizamos.
Vem, ó Mestre divino,
clamam os discípulos no caminho.

Saudaste Pascoaes, outra borboleta 
ardente na chama do conhecimento,
da Gnose, dos gnósticos e  amantes
dos alfarrábios quinhentistas,
dos Aldos aos Picos e Erasmos,
quantas estradas calcorreadas
com as afinidades electivas de
Eugenio Asensio, de Marcel Bataillon
ou ainda de Teixeira de Pascoaes
agora de Pedro Teixeira da Mota?

Olhos frementes, almas intensificadas,
invocando desesperadamente Deus
e rompendo o sono e a noite
com um tão forte desejo
que a Luz e o Amor de Deus
nos inundem e iluminem,
e Te desvendes em nós, ó Divindade.

Ó rio das águas brancas
que corres no mundo espiritual
e nos ligas à fonte Divina,
eu aqui te invoco entre mim
e o José Vitorino de Pina Martins,
escritor e bom amigo.

[E falta-me encontrar o exemplar para fotografar alguma folha, com o acrescento poético meu.]

Cavalos ao vento, crinas flamejantes,
nasçam desejos de transfiguração,
de consciencialização e revelação do espírito.

Caminhamos decerto pagando o preço da carne,
mas ainda assim Espíritos sempre renascendo.

Sê o amor compassivo e prestável para todos
e manso e humilde não critiques mas ajuda.

Rio interior, insatisfeito, sempre em busca
do oceano infinito de Deus
e querendo levar nele mais e mais almas.

~~~~

Deus é o centro do espírito de cada um no peito,
no centro da nossa alma habita.
Nuns como gérmen abafado pela ignorância,
noutros resplandecente como o sol.


Vós sois deuses, disse o mestre Jesus.
Vem pois, ó Deus, brota das entranhas
do meu ser, mostra-te, brilha,
ilumina-nos, guia-nos, torna-nos Amor.

~~~~~~~~~~~~
Dias em que o intelecto duvida,
meses em que a alma não brilha,
momentos de descrença em ti, ó Deus,
tal como um rio sem linfa, dizes tu.
Mas se eu sou um espírito luminoso,
um filho de Deus,
porque me hei-de de identificar
com as limitações acessórias
e não me reconhecer 
na minha origem divina?

Ó Deus, dá-me um verdadeiro
ardor de aspiração por ti,
uma confiança serena e certa
que Te hás-de revelar em mim.

Sim, no silêncio da alma
fala e ressoa o Verbo,
Sermo Divino em nós.
Ardam as escórias da personalidade,
morra o passado.
Aqui e agora, Eu e tu,
Deus brilhe em nós. 

Caminha da inocência infantil
para a curiosidade juvenil
na demanda aventureira de luz.
As austeridades do homem discípulo
são para se chegar agora ao intemporal.

   Água tempo que nutres minhas células
agora em amor e me ergues em ondas
  até à unidade com o Oceano divino,
alma nossa religada à Alma mundi Divina...

Que palavra sussurra a fonte da nossa alma:
- Amor, amor, amor és, são, somos!
Oh Unidade Divina... Aum...

Na olisiponense Biblioteca de Estudos Humanísticos, onde tantas vezes trabalhamos e dialogamos, sob  as bênçãos do mestre dos humanistas Desidério Erasmo, José V. de Pina Martins, já com 88 anos, e eu. Muita Luz e Amor nele e na Primula, sua mulher

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

De Mira Bai, um poema em versão do P. Alberto Mendonça, de Goa e levemente contextualizado por Pedro Teixeira da Mota, seu amigo.

                                                  

             Uma canção de Mirá, a grande mística da Índia.

Saudades do Infinito, versão livre do texto hindi, foi publicada na revista do Instituto Menezes Bragança, de Panjim, Goa, pelo reverendo Padre e Doutor em Filosofia Alberto Mendonça,  com quem eu tive umas horas de luminosa conversa no alto de Porvorim há décadas, além de duas cartas, e que espero continuar nos mundos invisíveis, quando retornar a eles e o encontrar, se tal couber na graça ou dispensação divina, ou dharmica. É um poema que manifesta tanto a prática espiritual (sadhana) de Mira, de oração, devoção à imagem e canto-dança, como a intensidade da sua devoção amorosa, bhakti, em imagens, ideias e ritmos de grande beleza e eficácia nas almas.

É uma homenagem a ele e a grande mística Mira Bai (1547-1614), desde tão nova enamorada de Krishna que conseguiu que os seus pais a casassem com ele em cerimónia tradicional, não mais deixando de manifestar um amor tão imenso quanto poético, e assim, Krishna, nomeadamente como Girdhar nagar (criança),  tornou-se de tal modo o rei do seu coração, para além das perseguições de uma tia, que abdicou de ser rainha, e  dos cerimoniais sociais e religiosos, e se assumiu como uma bhakti yogini peregrina dirigindo-se para Brindavan, o centro da devoção a Krishna, tendo grandes encontros (nomeadamente com Sri Jiva Goswami), satsangas e experiências psico-espirituais, sendo reconhecida como uma Gopi, uma pastora amante de Krishna. Destacar-se-á como trovadora itinerante do amor e da devoção, cantando em vários dialectos as suas experiências espirituais devocionais, a sua aspiração, a  visão (darshan)  no seu coração espiritual do seu adorado Krishna, a sua união com ele, com as suas dores de separação, as revelações e êxtases, sendo ainda hoje muito lida e musicada, e sobretudo estudada e meditada, pois foi claramente uma mestra espiritual, com profundo conhecimento e realização das doutrinas, métodos e níveis espirituais.

Música: Kanha Kanha tujh sang preet na - Meera bhajan (The sound of Soul)

«Pulsa, oh meu coração, com ardor com veemência,

Rompe os laços que te prendem ao mundo dos vai-vens,

Livre das peias, lança o voo para o azul para o infinito.


Nas profundezas do meu ser, eu sinto a sua presença indefinida.

No silêncio da noite, quando a paixão do Infinito me assalta,

Os ecos longínquos da sua flauta arrancam-me a vida do coração.


Nas manhãs luminosas, quando a magia da ilusão me arrebata,

A doce cadência da sua flauta lança-me no êxtase profundo  da oração,

Com o olhar sumido em mim mesma, a carícia do seu contacto me faz desmaiar.


Quando o sol triunfa no alto e a ânsia do Infinito [da Divindade] me inflama o seio,

E eu diviso o seu rosto azul [Sri Krishna] profundo em tudo o que me rodeia,

Luzindo como diadema sublime das penas de pavão,

O ritmo forte da sua flauta me desengana e transporta

Sem eu saber, desfalecido, fremente e oca,

Para o mundo vertiginoso do rodopiar da dança sagrada.


Ao cair da tarde quando o céu se veste de azul e oiro,

E o poente é um vasto leito cor de rosa envolto em nuvens doiradas

E da terra suplicante se evola para o azul a fragrância da erva sagrada,

No disco inflamado do sol que lentamente mergulha no mar,

O infinito revela-me a sua face transfigurada e acena-me...

Oh roubador dos corações, sem pátria nem morada, leva-me contigo!


A jornada para o Infinito, dizem os sábios da tradição,

É cortante como o gume afiado de uma navalha. Que importa!

O desejo do infinito divino é um peso cruel, pungente, angustioso,

Que cresce com o dia que passa e se avoluma sem cessar.

Se o corpo fatigado me não servir na dura marcha infindável

Farei dele a oferenda suprema às chamas rutilantes do fogo sagrado

Ou lançá-lo-ei às carícias das ondas do mar. Que importa!...

Para Mira, Infinita é a Vida, o Infinito o segredo do seu coração.»


 E nós, o que conseguimos, nestes tempos tão dispersos e preocupantes mundialmente, demandar e cultivar de aproximação e aspiração ao Espírito, ao Infinito, ao Divino na nossa consciência e coração, com quantos minutos, ressonâncias, destilações e assimilações do espírito, do Infinito e da presença Divina nos vamos alquimizando e com as quais entraremos mais luminosos e consciente no além, no mundo subtil espiritual? 

Demandemos e aspiremos  silenciosamente, ou com os cantos de Mira Bai e outros,  a a paz, o amor, a luz, a Divindade interna e a consciência subtil fraterna e espiritual, para que haja mais  harmonia e presença divina na Humanidade...

Que  bênçãos inspiradoras de Mira e do padre Alberto Mendonça cheguem até nós...


terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Leonardo Coimbra: sua personalidade e seus problemas, por Sant'Anna Dionísio. O clima anímico de Leonardo e Antero...

Leonardo Coimbra (1883-1936), foi certamente no século XX um dos  maiores génios portugueses, destacando-se enquanto escritor, filósofo, professor, político, orador e ser religioso e espiritual embora a sua personalidade irreverente, irónica, livre e poética não fosse  apreciada por alguns, porque lhes fazia sombra,  que o atacaram por diversos modos. Teve contudo um impacto grande nos que o conheciam, ouviam ou liam, e sobretudo numa série de alunos e depois discípulos que germinaram sob a água e o fogo por ele lançado nas suas almas e que souberam apreciá-lo, e se fosse o caso criticamente mesmo, ou defendê-lo. Entre eles um se destacou, José Augusto Sant'anna Dionísio (1902-1991, licenciado em Filologia Românica e depois em Ciências Filosóficas), que chegou a ser com Leonardo Coimbra co-director da revista A Águia, para muitos  a mais influente e rica no século XXI. Foi mesmo dos primeiros, após a inesperada e trágica morte de Leonardo a atrever-se a mantê-lo vivo interrogando-se sobre a sua vida, personalidade e morte, que ocorrera nesse fatídico ou, no dizer de Teixeira de Pascoaes, diabólico, dia 2 de Janeiro de 1936, sendo mesmo quem discursou a 4 de Janeiro "no cemitério da Lapa, momentos antes do corpo de Leonardo Coimbra ser abandonado à Terra."

                                                

A 15 de Fevereiro, a mês e meio da morte de Leonardo, Sant´Anna Dionísio palestrava em Vila Real, onde era professor liceal (de 1935 a 1940), e o texto foi ampliado e rectificado para uma leitura na Casa da Imprensa e do Livro, no Porto, realizada, certamente com comovida assistência, a 31 de Março de 1936. Publicada ainda em 1936 em livro, Leonardo Coimbra. Contribuição para o conhecimento da sua personalidade e seus problemas, a obra sairá de novo à luz em 1983, com uma pequena (cinco páginas) mas intensa adenda, impressa sob a chancela da Lello & Irmão, Porto, num in-8º de 125 páginas, valiosas e pouco  estudadas. 

Ora como na década de oitenta me dei muito com Sant'Anna Dionísio, visitando-o em sua casa ao Campo Lindo, no Porto, e saindo com ele e Dalila Pereira da Costa algumas vezes, ao conservar o livro que me ofereceu com dedicatória, e que li e anotei, resolvi partilhar alguns extractos, seja pela excelente prosa, argúcia e sensibilidade de Sant'Anna Dionísio, seja para destacar melhor o valor de Leonardo Coimbra, tanto mais que o livrinho precioso e hoje quase ignorado foi pioneiro e profético, pois Sant' Anna Dionísio escreveu no prefácio  que «a sua contribuição para o estudo de Leonardo Coimbra não é mais do que o primeiro sinal de uma obra de reparação que será levada a cabo por um grupo de homens novos ligados à memória do pensador e professor pelo sentimento de que ele, além de ser um dos mais poderosos valores espirituais portugueses de qualquer época, foi o mais forte removedor das latentes propensões intelectuais [e espirituais] deles.»

Começa então Sant'Anna por justificar o «tentar exprimir uma preocupação de indagação que vive em nós há muito. Referimo-nos à preocupação que sempre existiu acessa na nossa intimidade, desde que o nosso espírito se cruzou com o de Leonardo Coimbra, de querer saber quem era, na sua mais profunda autenticidade, esse Homem; quais as ideias que, na realidade, eram fundamentais na sua maneira de ver as coisas; quais os motivos mais íntimos e sérios das suas reacções e viragens; qual em suma a sua verdadeira personalidade [e centelha espiritual central de si.]

Entra em seguida, com a sua magnífica linguagem, numa descrição dos aspectos mais notórios de Leonardo: como homem total, génio, convivente, professor, tribuno, escritor, pensador, filósofo e político, e a dado momento faz um desenho pessoal:  «Estruturalmente, Leonardo Coimbra, eis a primeira impressão pessoal -, parece-nos dever definir-se como um homem de temperamento fáustico. Os dois traços fundamentais, idiossincrásicos, da sua pessoa, eram o que nós supomos ser a característica essencial do homem deste tipo: o universalismo e a inquietação; ou, por outros dizeres: a aspiração de compreender, pela intuição convertível em conhecimento, as questões mais dramáticas da Existência. pondo ao serviço desse esforço todas as formas de saber e inquirir: as experiências científicas e as experiências afectivas, a indagação objectiva da Natureza e as técnicas tradicionais (ainda as mais acusadas de superstição), de comunicação com os Espíritos das coisas; a filosofia, a ciência, a medicina, a teologia, a magia! Leonardo Coimbra foi essencialmente um homem deste padrão. Por natureza, foi um homem que aspirou à compreensão inteira e íntima do Essencial; não porém,a compreensão integral e inefável que é dada pelos espasmos [êxtases, visões tocantes] da contemplação, - mas a compreensão aproximativa (digamos assim, se é lícito) que é possível vislumbrar pelo esforço porfiado da reflexão informada», continuando depois a desenvolver a ideia de que Leonardo «não era um homem temperamentalmente nascido para a fixação definitiva num modo de ver a Vida», nomeadamente religioso, mas sim o do exercício do pensamento especulativo livre. 

E assim, depois de nos revelar que Leonardo Coimbra, «na véspera mesma do desastre que o vitimou, estivesse para escrever  um estudo que seria a apologia dum livro [de Kierkegaard], traduzido para a nossa língua por sua indicação calorosa, e ao qual os franceses puseram o título estranho de Tratado do Desespero? - Na realidade, Leonardo Coimbra   foi um espírito que nasceu, pode dizer-se, para aspirar atingir uma verdade absoluta - mas, no fundo, ele viveu sempre no desespero surdo de sentir que não poderia esperar atingir essa verdade como, de modo veemente, desejava: pelo pensamento livre. A feição interrogativa, característica da sua dialéctica, não é senão uma expressão dessa desesperança subjacente - e toda a sua obra esforçada de crítica, de reflexão, não é senão uma prova de que ele desejava acima de tudo resolver os seus problemas pela meditação».

Considera pois Sant'Anna que Leonardo era um homem fáustico, que privilegiava a meditação discursiva, a especulação metafísica, a interrogação, a curiosidade insaciável do saber,  mais do que a adesão a um credo religioso ou a uma prática contemplativa,  e que portanto a aura e ambiente que irradiava não era a do religioso, pois  «o sinal mais significativo pelo qual se identifica o homem religioso é o clima moral, que o seu procedimento impecavelmente equânime irradia, Ora Leonardo Coimbra de modo nenhum foi uma individualidade equânime no modo de ser; e sobretudo de conviver. O que fez, verdadeiramente e sempre, perturbante a sua convivência foi a facilidade com que passava da seriedade mais profunda para a reação caustica, (libertina mesmo); e vice-versa. Por isso não irradiou nada que sugira esse clima - ao contrário, por exemplo, de Antero de Quental que, em vida, e desde cedo, foi cercado de um verdadeiro respeito profano de santidade, - não mercê da tranquilidade interior que, segundo as melhores presunções, o poeta-filósofo nunca atingiu, mas da constância da sua seriedade convivente. O clima que Leonardo Coimbra criou, e esse, sem dúvida, (ou pelo menos como se verá decerto no futuro) mais estimulante e largo que o de Antero, foi o clima intelectual, especulativo; sob esse aspecto não houve ainda entre nós quem o superasse; porque ninguém foi, de facto, entre nós, tão profundamente instruído acerca dos problemas essenciais e ao mesmo tempo tão decisivo na abertura de caminhos para certos sectores da vida espiritual, pouco menos que inexistentes para nós. Se fosse possível fazer a colheita inteira da sua actividade de agitador, como removedor de ideias, como conferencista, como orador político, como professor, como conversador de ocasião, - e adicionar a esta produção esparsa e imensa as controvérsias obscuras, e algumas de grande importância, que por vezes as suas orações e palestras suscitaram -, ter-se-ia seguramente o documento mais notável, no ponto de vista de cultura, de toda a história espiritual portuguesa (...)».  Anote-se que neste aspecto, já nos últimos anos, Pinharanda Gomes, secundado por Paulo Samuel conseguiram fazer um levantamento da obra leonardina bastante razoável e publicá-lo na editorial Verbo e na Fundação Lusíada.

Desenvolve em seguida melhor a caracterização de Leonardo como um pensador por imagens e depois por dialéctica conceptual, mas que dotado de sensibilidade grande e menor vontade disciplinadora, face a um meio adverso, enveredou ora pelo humorismo e a causticidade, ora por grandes elevações de horizontes que não eram bem compreendidos pelos seus ouvintes, já que Leonardo dotado de uma sede e capacidade insaciável de saber dominava o conhecimento até nas suas últimas descobertas científicas e punha já então em causa o determinismo materialista ("o abuso da óptica determinista, mecanista e entrópica"), realçando o valor da consciência, do pensamento livre, do fluir do espírito ("uma óptica da contingencialidade e da espontaneidade ascensional") para se poder captar a essência ou intimo das coisas e seres, embora o mistério da morte fosse para ele, mesmo tendo-o investigado até pelo espiritismo e o esoterismo, algo que o angustiaria ou deprimiria, pesem momentos de grande exaltação e crença na imortalidade e em Deus.

Sant'Anna Dionísio realçará muito a amplidão de horizontes a que a inteligência de Leonardo se aventurava, chegando a afirmar que, «se somente os homens que vivem de um modo constante, nos seus momentos de mais elevada intimidade, na preocupação da procura dum ângulo de inteligibilização global de todas as coisas, são filósofos, Leonardo Coimbra, foi depois de Antero, o único homem que mereceu, entre nós, o nome de filósofo.»

Muito importantes são as páginas consagradas ao mistério do sentido da morte em si, na demanda filosófica e espiritual de Leonardo e por fim na sua vida, já que este sofrera a morte do seu primeiro filho e reagira bem escrevendo a Luta pela Imortalidade, onde relatava as experiência metapsíquicas em que participara, e concluía afirmando a sua luta consciencial pela imortalidade, mas ainda sem certezas. E  por a morte  ser «o facto mais brutal e absurdo da Natureza», e de estarmos todos à mercê dela, lhe teria nascido uma certa angústia e desespero, já que era um ser convivente e de amor, «na sua mais grossa raiz temperamental era, em suma, um homem preso a esta margem».

Sant'Anna Dionísio considerará assim circunstancial e provavelmente não definitiva a conversão ao catolicismo de Leonardo: face à insuficiência da filosofia, recorria  à fé num Deus e numa religião para fugir do medo que sentia de novo por o seu 2º filho, muito doente, poder morrer. Não fora uma conversão transformadora, o pensamento indagador e livre que o caracterizava não aguentaria muito tempo num corpo doutrinário que o limitaria certamente, pois embora houvesse nele desde há muito «uma tendência acentuada para a aceitação formal do cristianismo como atitude de convivente e como concepção», isso não o impedia de confessar que nunca conseguira "sentir a realidade ontológica do pecado", ou de dizer que "se fosse católico, seria um católico anarquista", ou, à hora da morte, confessar que "nunca fizera mal a ninguém". 

Podemos resumir (a excelente obra)  e concluir dizendo que Leonardo Coimbra era de certo modo um mestre, um génio (e logo malquisto)  no abarcar e transmitir compreensivel e removedoramente a universalidade do conhecimento e um espírito tão poderoso na independência ética, reflexão, afirmação e diálogo livre, que não se deixaria amordaçar por qualquer sistema de crenças. Mas creio, ao contrário de Sant'Anna Dionísio, que ele até conseguiria permanecer no seio da Igreja Católica, exercendo equilibradamente o "lume rebelde da inquietação" e o da "reflexão livre" e agindo nela como um Fiel ou Cavaleiro do Amor, aprofundando até, com sua vastíssima inteligência e cultura, o que ele afirmara no prefácio à Luta pela Imortalidade, conter o Criacionismo, o seu primeiro livro:«era uma síntese filosófica sobre o mundo como uma sociedade de seres espirituais imperecíveis.»

«Ao Pedro Mota, ao seu espírito tranquilo e ávido de transmigração anímica, terrena e astral, oferece como singela expressão de discreta simpatia este opúsculo consagrado ao perdurável problema de uma "conversão religiosa". Porto, 21-V-1984, J. Sant'Anna Dionísio».~~ Brevemente abordaremos a conversão e morte de Leonardo, vistas por Teixeira de Pascoaes e Sant'Anna Dionísio. Muita luz e amor divinos neles!


segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Um conto espiritual: Arhats e suas tentações e uniões. Os sonhos limitam a sabedoria luminosa? Há a ilha do Amor?

 

Um texto escrito já há algum tempo e concluído em 16 I 24. Aum mani padme hum!

É interessante sabermos que as primeiras divisões que ocorreram nos discípulos de Budha baseavam-se na hipótese do Arhat, o merecedor ou santo, ser ou não ser perfeito e, nomeadamente, poder sonhar com mulheres e ser tentado, derramando a sua energia sexual em sonho. 

Era a grave questão das poluções nocturnas: um monge considerado muito santo, um arhat, sonhara e a energia sexual saíra-lhe. Não podia ser mais considerado arhat ou mestre, pois não conseguia controlar a energia, reclamavam os mais antigos e austeros. Uns poucos, achavam que um arhat, embora significando um ser que atingira um estado iluminado, continuava a ser  humano e portanto sujeito à beleza feminina ou aos meros instintos, pelo que isso não diminuía as austeridades que exercera, o desprendimento das ilusões e do ego, a capacidade de trabalho, de dádiva e sobretudo de interiorização e penetração na realidade das coisas em si e do Universo transitórios.

Esta realidade íntima dos seres e das coisas também andava em debate e perplexidades: era mesmo vazio, ilusão, ou os seres teriam uma certa realidade, e portanto o amor não seria um resquício da personalidade, um sonho vão, mas uma energia unitiva e libertadora de tal modo que, e quem saberia, a mulher com quem ele sonhara, o desejava também e que invisivelmente as duas almas se tinham encontrado e comungado a unidade de tal forma intensamente que o corpo cá em baixo dera de si mesmo os fundamentos generativos em oblação amorosa.

Se uns mais dados a visões de espíritos e deidades achavam que isso era bem possível, sem contudo quererem identificar a sua consorte, outros mais psicológicos consideravam que no homem havia a mulher e na mulher o homem, e que não se podia ter a certeza se a relação sexual onírica não tinha sido com a sua anima, a sua parte feminina, quem sabe se a definhar no isolamento austero do mosteiro e por isso reclamando a sua parte.

 "Nem só de ideias, renúncias e orações vive o homem", afirmavam uns, enquanto que outros defendiam que a sensibilidade imaginativa, amorosa e compassiva, a anima feminina, vive tanto na psique e animus masculino, como no corpo e não  deve ser ostracizada e condenada mas apenas controlada.

Os debates prolongaram-se por meses, e os mais experimentados nas lutas ascéticas da juventude não consideravam o caso grave: era natural que a energia seminal saísse de tempos a tempos pois a perfeição do arhat residia na sua capacidade de exercer a consciência de modo perfeito enquanto desperto e vigilante, mas que não se lhe podia pedir que controlasse o corpo, quando este estava adormecido.

Pensava-se no que o Buddha diria, e se ele alguma vez sonhara com a sua bela mulher, e se por acaso alguma vez tivera uma polução nocturna, sobretudo quando no parque das Gazelas, algumas cortesãs de corpos mais plenos o rodeavam embevecidas pelo Amor que dele emanava. Mas onde estaria ele naquele momento, para lhes dissipar as nuvens das dúvidas?

Dissolvido o seu ego, restava ainda alguma entidade que os pudesse ajudar? Sempre haveria um espírito-alma individual que continuava a inspirar os que o invocavam ou os que tinham entrado no nobre caminho óctuplo da Verdade?

Por fim triunfou a voz da razão compassiva: nada se deve dogmatizar e absolutizar, e poderia alguma vez estar Prajna, a elevada sabedoria do discernimento luminoso, alcançada e exercida pelos Arhats e Bodhisatvas, dependente e limitada pelos sonhos e uma necessidade psico-somática?

O arhat respirou fundo: poderia continuar a exercer-se nas práticas contemplativas já não só da vacuidade de todos os seres e coisas, agarrado a tal como tábua de salvação no oceano de Mara, mas admitir  que a sua alma profunda lhe transmitisse vislumbres do eterno feminino, da deusa e shakti (energia) interna dentro de si.

Veio a constar mais tarde que, dias depois, o arhat sonhou que dentro de si uma grande serpente perdera a pele velha e se transformara numa bela princesa e, dando-lhe a mão, sussurara: "Eu sou tu, tu és eu", e que nesse momento o seu ser unido a ela se expandira no universo, vivenciando a compaixão e felicidade mais intensas que jamais experimentara ou conceberia, chegando por fim a uma ilha do Amor Búdico. Quando, à hora da partida da Terra, transmitiu aos companheiros e discípulos o testamento anímico da sua vida, e estes o assimilaram e revelaram depois aos outros, um novo debate se iniciou:

Deveremos admitir e procurar, no seio do subtil Oceano cósmico, uma ilha do Amor,  a ilha dos Amores, as ilhas do Amor, e serão elas utópicas ou reais, imortais ou nirvânicas?

domingo, 14 de janeiro de 2024

Da Europa e de Portugal, seus rostos e almas, desgraças e graças. Poema de 1993, melhorado.

Qual é o rosto da Europa? Para onde fita seu olhar?

- Olha em todas as direcções, move-se sem cessar. 

Mil rostos acodem às costas do mar e às montanhas, 

fitando Oriente e Ocidente, Norte e Sul. 

A Europa é um remoinho.


Portugal é a porta do gado e da esperança, 

E há as maresias e campinhos franciscanos.

Vê-se a pata dos governantes calçada em carros de luxo

e as cangas dos bois a jazerem por terra.


Os passos perdidos são de muitos 

e há correrias e tragédias nas noites.

Tudo quer dinheiro, poder e prazer

e poucos se esforçam pelas virtudes.

Vai mal a marcha da ronda, 

vejo pobreza e desordem na rua.


Cada dia traz o seu mal e cada um colhe o que semeia.

Vejo pragas e irritações, fogos sombrios a lavrarem.

Ninguém põe os olhos para as bandas do Oriente,

lá donde vem a elevada Luz do Espírito.

 

Reina pois  a lei da selva nas cidades

e as savanas são pasto das desavenças da democracia.

Há fome no mundo e desperdícios sem fim.

Consome-se demasiado e some-se a simplicidade.

Produzir, criar, dar e  partilhar são forças raras

apesar de tanto reformista e conselheiro da República.

Mas esta é uma rês onde muitos cevam seus apetites

e não se olha à vaca sagrada da Índia,

nem a Mãe natureza é respeitada,

só galinha de ovos de ouro a ser explorada.


Vem a noite e tudo vai estrebuchando

e caindo na inconsciência e sonhos. 

Poucos são os despertos no outro lado,

Ao subirem, espíritos, pela escada e eixo dos mundos.

Já pouca e infantil é a oração e a meditação

e as bênçãos do céu não encontram recipientes,

nem o orvalho penetra a terra seca e árida

e esterilizada pelo plástico e o cimento,

e poucas almas chorando e orando

dissipam as nuvens opressivas

e atraem a chuva luminosa divina.


Abro os ouvidos ao som e os olhos ao Espírito.

Não quero saber das poucas vergonhas do país.

Um dia verão com os olhos da alma

os que hoje se recusam a ver com os do corpo.


O meu coração sangra, dói e arde de aspiração.

Oh Deus, Oh Deus, tu és tudo e nós somos nada,

mas pretendemos ser importantes na feira de vaidades.


Dispo-me das coisas e dos apegos

E torno-me chama luminosa,

erguendo-me para ti, ó Divindade.

Vem. Desperta-me. Que eu seja.

Amen

                           7/3/93.

                        

sábado, 13 de janeiro de 2024

Um poema geométrico espiritual.

  Escrito já há algum tempo, numa serra.

«Na gruta da ara de água,

nos pingos concêntricos de irradiação,

vi o reflexo do cone misterioso.

A energia concentrada numa forma

adquiria propriedade miraculosa,

um ovo na ponta do coração.


E quando a noite cai como num poço reflexo

e vejo o buraco cavado na forma do cone inverso,

irradiação mais poderosa e larga no próprio lugar,

sei então que a descida energética cria o triângulo inverso,

reflexo dum outro plano, talvez dum triângulo no ar,

Mas não vejo ainda a quadratura do círculo da Natureza.

Será um dia realizada pelo espírito no coração!»

 

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

"A Peregrinação a Cristo", por Keshav Chandra Sen. 1880. Com vídeo. Nos 140 anos da sua ascensão.

                                                                
Foi uma invenção bastante original de um valioso pensador, filósofo, orador e místico, a Sadhusamagama, a Peregrinação aos Profetas, sadhus, ou santos, realizada em Colcota (Calcutá) ao longo de alguns meses de 1880, por Keshav Chandra Sen (1838-1884), e o seu grupo de associados ou discípulos do Bharatvarsya Brahmo Samaj, ou Nav Vidhana, a Nova Dispensação, a qual foi posteriormente descrita e publicada em livro.  Consistia,  através de leituras, imagens, roupas, caminhadas, orações, visualizações e meditações, em aproximações ou peregrinações a alguns importantes seres, santos ou profetas do Ocidente e do Oriente:  Moisés, Sócrates,  Sakya (Buddha),  Rishis (os videntes dos Vedas),  Cristo,  Muhammad, sri Chaitanya e os Cientistas (tais Galileu, Kepler e Newton). 
Realizavam-se de forma  original, com preparação em reuniões de leitura de textos sobre eles ou deles, seguindo-se a procissão ou peregrinação à Casa do Lírio, que era preparada de acordo com os mestres ou profetas que se evocavam e peregrinavam, havendo então as orações-discursos de Keshav Chandra Sen, com invocações divinas ou dos mestres, e com os adeptos do grupo respondendo, numa espécie de diálogo entre Deus e os adeptos-peregrinos.  Pode ler mais sobre a vida de Keshav e esta obra em: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2024/01/comemoracao-dos-160-anos-da-morte-de.html
                                           
Resolvemos ler, traduzindo directamente d
o inglês a partir da edição do Sadhusamagama publicada em 1956,  pelo comité de Publicação da Nova Dispensação, da Peregrinação a Cristo, o sétimo Serviço Preparatório, intitulado Spiritual Insight, traduzível por Intuição, ou Vislumbre espiritual, dado conter compreensões ou intuições valiosas, e consubstanciar uma florescência cristã num notável espiritual do renascimento bengali do final do século XIX, ou então uma boa capacidade de discernimento e apreciação espiritual bastante universal, de Keshav, e no caso em relação a Jesus. 

Após os Serviços Preparatórios,  a segunda parte, a Jornada propriamente dita e que não gravamos, tem também hermenêuticas originais quanto a Jesus, ou então interrogações desafiantes, tais: «Ó Mãe Divina, o teu filho está já preparado para o seu trabalho com as pessoas. Que mecanismo  misterioso é esse que conecta a língua de Jesus com a Tua, fazendo dele a boca donde fluem pérolas preciosas de verdades divinas? Tu estás com ele enchendo-o da luz que irradia da sua face, e da ambrósia que brota em palavras para a cura do mundo (...) Ao lírio chamou ele o seu guru, e às aves do céu os seus amigos, porque lhe ensinaram o desprendimento correcto, - aquele ânimo que torna uma pessoa livre tanto do glamor do falso ascetismo como do medo «de estar no mundo. »

Além de poder ouvir a 1ª parte, com os comentários e contextualizações que me apareceram no fluxo da tradução, pode ler agora algumas partes dela :«Jesus era todo alma. Ele só tinha olhar para o espírito. Ele contemplava-Te, ó Divindade, em todas as coisas: e vendo-Te, e entrava no verdadeiro coração da Natureza, nos locais secretos do Universo. Ele não tinha um lugar a que pudesse chamar seu, e não tinha necessidade de nenhum. O reino da fé, o espírito no mundo era a sua casa. Quando olhava uma rosa, a flor parecia desabrochar num guarda sol, afastando o brilho e o calor excessivo. Quando Jesus contemplava o coração da flor de lótus, este parecia convidá-lo a repousar dentro dele.»

Jesus, visto por Bô Yin Râ
«A vida depois da morte não era para ele um tema de especulação. A sua fé  contemplava em visão imediata o outro mundo. Quando falou de haver "na casa do seu Pai muitas mansões prometendo quartos para todos", isso não era para ele uma doutrina ou ideia. O que viu com o seu olho espiritual, proclamou para todos no mundo. Quando  era perseguido pelo mundo, ele desferia um voo e procurava refúgio nessa casa espiritual invisível sempre presente.»
«Ele denunciou os descrentes como gerações de víboras, mas chamava a si os que acreditavam para  poder-lhes transmitir paz e repouso. Orientou os seres humanos para uma vida de fé, e ensinou-lhes os seus segredos. O seu ensinamento estava baseado na ciência. Ele levou as mulheres e os homens a verem Deus na Natureza. Sabia com certeza que quando entramos no reino da fé a alma-espírito, a mente e o corpo funcionam todos harmoniosamente. Então, o que nós pedimos ou oramos nunca fica sem se realizar.» 
Boa escuta, e boas inspirações e realizações.