sábado, 24 de setembro de 2022

Da Sabedoria do Sangue, esse líquido anímico tão especial quando pleno de amor. Um escrito com ele como tinta.

                                    
Um corte acidental e algum sangue a correr, bem aproveitado. Manhã de 24-IX-2022:  

 - Sangue que jorras em tanto seres, quando serás só Amor, escorrendo nas almas?

- Cruzei terras, ventos, pessoas, labores e eis-me maduro na Verdade.

- Quem sabe discernir a sua mais elevada realização, em unidade com a Humanidade? 

- Trazeres o espírito à manifestação, à consciência, com sabedoria e amor, eis o Caminho. 

                            -    Voar,  adorar,  amar,  Ser.

- O vasto espaço cósmico, os horizontes, as foz dos rios, os oceanos, eis portas abertas para nos sentirmos como somos, espíritos, vastos, ou consciências que aspiram a realizar mais a sua unidade com a Fonte Divina.

- No aqui e agora, sê tu próprio e partilha o que és e tens com amor e sabedoria e cumprirás a tua missão terrena e aos mundos espirituais te elevarás....

- Sorri e vence as apreensões e receios.

- Sê o Espírito criativo e divino.

                               Spiritus.      Tu e Eu.     Amor.

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Augusto de Santa Rita, a sua sensibilidade e os contextos e efeitos das revistas em que participou, dirigiu ou fundou: a Águia, Exílio, Pim Pam Pum, e A Risota.

                                                   

Quando  contemplamos o percurso de Augusto de Santa Rita (1888-1956), discernimos um artista, um poeta dotado de grande sensibilidade e capacidade de escrita impactante e que vibra com as lutas da sua época, nas quais o  simbolismo, o saudosismo, o modernismo e o futurismo se alternam nas almas mais despertas, mais vanguardistas, levando-as lutar contra um meio ambiente bastante limitado e logo algo opressivo, e em que o culto das artes e belas letras estava reduzido a poucos, e em geral mais conservadores e sem o sopro criativo desassossegado da nova geração. 

A luta da chamada geração coimbrã de 1870, liderada por Antero de Quental, realista e revolucionária, contra os formalistas, românticos e do elogio mútuo, chefiados por António Feliciano Castilho, denominada Questão do Bom Senso e do Bom Gosto, não terminara ainda e algo dessa continuidade vemos nos ataques seja de Almada Negreiros a Júlio Dantas, ou de Fernando Pessoa a António Correia de Oliveira, o poeta de Belinho (nome da sua casa em Esposende), como lhe chamou o poeta da Mensagem.

 Augusto de Santa Rita, nascido e vivendo em Lisboa, sendo da mesma idade (1888) que Fernando Pessoa e convivendo nos mesmos cafés e tertúlias, estava bem a par do que se passava e se não surge na revista Orpheu, por motivos de escolha dos colaboradores e mais por Luís Montalvor do que Fernando Pessoa, e talvez por não ser tão provocador e europeísta-modernista,   logo no ano seguinte, em 1916, lança a revista Exilio, mais eclética e moderada, nos colaboradores e artigos, mas na qual o próprio Fernando Pessoa se vai abrigar ou incluir, gorada que estava a aventura dos dois números de Orpheu, mas não com a verve esperançosa perdida, já que não só publica pela 1ª vez na revista o poema a Hora Absurda, como escreve na parte final dois textos de grande importância enquanto teorizador e chefe de fila do movimento modernista lisboeta, por ele denominado ainda de sensacionismo e que apresenta como esotérico e dinamizador da alma portuguesa...

Para Fernando Pessoa tal era a continuação superlativa e triunfadora da sua passagem pela revista Águia, em que se profetizara como o novo Super Camões, mas onde não fora tão bem acolhido (e onde Augusto Santa Rita também colaborara, em 1912 e 1913),  e que tivera o seu auge na Orpheu enquanto independência em relação às linhas mais rurais e tradicionalistas, mais metafisicas e religiosas que pontificavam em Teixeira de Pascoaes e de algum modo em Leonardo Coimbra, os dois líderes intelectuais da revista, embora tal corte e independência tivesse sido também gerado pela não publicação dum texto de Pessoa, recusada por Álvaro Pinto, o director e proprietário inicial da revista, que se publicaria com direcções e séries sucessivas, de 1910 a 1932, sem dúvida com a Revista Portugal, Orpheu e a Presença, as quatro revistas literárias mais profundas e importantes dos séc. XIX e XX.

                                                           

Em verdade o ideário do movimento da Renascença Portuguesa e da sua revista Águia tinha sido uma tentativa de exprimir sem limitações formais (por vezes já com laivos modernistas, tal na colaboração de Augusto de Santa Rita e de Pessoa) o Amor, a Sabedoria, a Beleza, à Justiça, cultivados e ligados à Terra, ao Céu, à Mulher, à família, a Portugal, ao Divino, este tanto com os seus espíritos da natureza, anjos, deuses do panteísmo como com as pessoas do Cristianismo.

Ora as primeiras obras de Augusto de Santa Rita, antes até da revista Exílio, mostram-no um poeta de grande lirismo, tanto humano como religioso, cheio de aspiração mística e espiritual e senhor de uma linguagem rica e expressiva, com amplo uso de símbolos e de intersecionismos de planos de consciência e do espaço e do tempo, arte que manifestou com grande capacidade, por exemplo, na revista Exílio e no Auto da Vida Eterna, neste merecendo elogios fortes de Fernando Pessoa, e nas Praias de Mistério, talvez devedoras das numerosas vezes que terá contemplado o mar e as praias de S. João do Estoril, então uma zona apenas de Natureza pura e sem casas, e com um potencial tremendo, e que poderão tê-lo intensificado nos seus sonhos de transformação psíquica e espiritual, em que aliás tanto ele como Fernando Pessoa muito se envolveram e que Pessoa manifestou sobretudo em três cartas, à tia Anica, a Armando Côrtes-Rodrigues e a Mário Sá Carneiro. Acrescente-se que  Fernando Pessoa  frequentava também esta zona da orla marítima, seja a casa dos Santa Rita, seja mais tarde a dos seus primos Freitas da Costa.

Esta sensibilidade e espiritualidade de Augusto de Santa Rita, que ele tanto sentia forte e sinceramente em si como também na nova geração literária, a qual ele, na sua magnífica Justificação da revista Exílio, chega a designar colectiva, grupal ou geracionalmente por "um novo Cristo", e expressão que significa "ungido", algo que eles eram e cultivavam, nunca foi compreendida pelos críticos literários e ensaístas posteriores nos seus intelectualismos racionalistas e destituídos de sensibilidade espiritual, tendo Augusto de Santa Rita recebido por isso algumas desvalorizações graves, em especial na pecha do nacionalismo, tal como podemos ver no prefácio (infeliz, de Teresa Almeida) da reedição pelas edições Contexto da revista Exílio, ou em artigos e livros sobre Simbolismo, Saudosismo, Modernismo, Futurismo, que seguem as mesmos trilhos na areia...

Essa sua alta e fina sensibilidade até intuitiva, por vezes claramente consciente da anima mundi, da alma das coisas,

 
«A Alma das coisas existe!
Ora é alegre ora é triste;
Existe! Amor, acredita!»

do corpo subtil astral, e com manifestos sinais de clarividência interior, está pois presente em muita da obra de Augusto de Santa Rita, nomeadamente até nos livros e revistas para crianças, que não devem ser reduzidos a moralismos do Estado Novo, como nesse prefácio se escreve, pois na famosa revista Pim Pam Pum, nascida em 1926 e durante quinze anos, até 1940,  magnificamente dirigida por Augusto de Santa Rita, ele publicou numeroso e valiosos contos e poemas, bem ilustrados por artistas das novas gerações de então, e abandonou-a apenas porque separando-se de Graciette Branco, a jovem colaboradora que se tornara a sua mulher, durante 11 anos, e de quem nascera um filho, sentiu que deveria passar a novos projectos e publicações, que se concretizaram no famoso Teatro do Mestre Gil, na apologia do Teatro dos Fantoches como instrumento de cultura, na Cartilha Visual, para o ensino pré-primário, e num Poema de Lisboa, publicado já postumamente.

Que Augusto de Santa Rita não vivia numa obediência a directrizes salazaristas e antes seguia e partilhava natural e sabiamente, e de modo acessível e divertido às crianças, a sua ética e pedagogia como resultado de uma consciência profunda do valor do belo, do bem e do verdadeiro, e logo da justiça, da compaixão e da solidariedade, podemos comprovar  em 1939 quando, fundando a revista A Risota, publica no sexto e último número, apreendido pela Censura,  uma caricatura muito forte do Mussolini, como um buldogue. As consequências foram fortes numa certa destituição de cargos que exercia, mas que posteriormente reaveu quando provou que não queria provocar problemas nas relações com a Itália O neto de Augusto de Santa Rita, o Guilherme, investigou até na Torre do Tombo o processo da Censura e pode aprofundar o sucedido, destacando que o António Ferro e Salvação Barreto foram as testemunhas abonatórias.

Que múltiplos efeitos teve a revista Pim Pam Pum em milhares e milhares de crianças, já que acompanhava a edição de Quinta de um dos jornais mais lidos da época, O Século, (1880-1977), que por vezes esgotava nesses dias, é impossível discernir, pois não houve inquéritos sociológicos, éticos ou culturais, ou estudos sobre os sonhos e ideais das crianças que a leram ao longo dos anos, mas certamente devem ter sido muitos e bons, estimulantes, formadores e harmonizadores, holísticos mesmo, com as charadas, passatempos, concursos, tão bem ilustrados, e por isso devemos considerar como muito actual e necessária, nestes tempos de forçada desumanização neoliberal globalista, a publicação de uma antologia do que melhor se publicou nessa mítica revista infanto-juvenil, e que o seu neto Guilherme Santa Rita aspira a realizar...
Que assim aconteça
ou seja:
Ilustração auspiciosa de Castañé, com Eduardo Malta  os dois principais colaboradores artísticos de Augusto de Santa Rita e do Pim Pam Pum...  Aum...

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Heart bleeding, heart in aspiration, heart in serenity. Divine source in us, being in Love, the holy Grail...

My heart is many times bleeding. I don't know why. 

Is it a kind of a stream of blood running in aspiration for union? Probably...

Is it an excess of love? Is it a need of loving? Is it just the spiritual presence in me? Or is it indeed a wish and aspiration for fulfilment?

But we may admit that could be also some fair person remembered or loved in my soul, time to time germinating in my consciousness, and making me feel that inner stream or even secret affinity and so awakening in me the feeling of movement towards Love?

But is it really Love or is just aspiration, wish, longing for a stronger or deeper state of love?

I would say they are just rays of love springing from the inner deep source, or going out and to certain beings, or even to God, as sometimes we feel and express by some devout ot mystical utterances as: - My God, My God, I love you...

Let us suppose that this inner bleeding is specially a wish of union with the beloved one. But from where springs this memory, wish, aspiration?

Is it from my true self, or just from the pool of memory, or only from the personality, with his affinities, wishes, needs, desires, or even from a deep aspiration for the binding in love with the beloved one, human or divine?

Some times is just a feeling and aspiration, other times it seems a recollection, a concentrated fire coming out from the soul. 

But who knows, from the spiritual being in us and from the ocean of memories, feelings and wishes, with so many waves and currents, from where, and why, it sprang that  feeling, or remembrance, that make us feel that kind of arrow trespassing our chest or, better, this inner opening by the rays and currents of the heart?

Our small understanding of the subtle heart and of the many levels of memories and wishes operating in us all the time, make difficult the task of ascertaining from what part of our soul it originates, or with which interconnections or even ressonating feelings of love from other beings in the Cosmos it grows, as we are all the time irradiating our inner blueprints of being and loving and so, in certain ways, communicating with the ones of our spiritual inner group or family, or even with the twin soul, and guides...

As our soul is not easily seen, understood, realized, it is really difficult to discern, without hard work of meditation, self awareness and grace, from what profundity and  origins  these aspirations, feelings and rays of love and gratitude arise...

Sometimes is not so much bleeding of love in aspiration or outburst but it is just peace and serenity that is there inside and flowing, not matter how much we love or are loved, no matter the world is in peace or war: the spiritual heart just shines through us, in us...

Probably because the creativeness of the spiritual soul, the eagerness to the knowledge and truth in us and the peace of the awareness of the Unity are at the same level with Love, and all these expand us in  deeper and wider dimensions of Reality and so the heart aflame is the right ground or chalice for giving birth to our best actions, feelings, sentiments, intuitions and realizations.

So, even if you can't discern the level of the Love in you, and  how much sentiments and  thoughts arise pure and free from it, still accept all the currents, streams or drops of the Cosmic Ocean of Love that come out through your heart and soul and be happy to be aware of them, or even amplify and direct them, and give graces because the Divine Being is our deep insondable intimate source, and when our heart is bleeding the aspiration to commune more with Him-Her, or with your friends or with the beloved one, or with Justice and Truth, is enlivened. 

And so sometimes the inner ocean of Love is just discernment, peace and so the light and love of the inner presence is more felt and specialy the communion with the beloved, either the polar being, either the master, the angel or the personnal God, happens, and so is not more the bleeding of the unknown arrow trespassing our chest and heart but it is the fire of Love in shared bounds, and the awareness of the common fruits of Love and Unity shining.

Still sometimes by the lonely night, or when feeling hunger of the body or soul, facing so much injustice, opression and suffering in the world, the aspiration to God's Love grows and our heart's veins bleed, and the sacred blood expresses it self sometimes  in words of prayers or singing of mantras, and then we become really more knights of the Holy Grail, aflame with that strenght, aspiration and communion, in the mystical or subtle body of Mankind, with the spiritual rays of the heart of the Divine Love...

                             

terça-feira, 20 de setembro de 2022

Soares dos Passos: o "Noivado do Sepulcro", lido e comentado por Pedro Teixeira da Mota. Com o elogio por Antero de Quental.

Este poema, o Noivado do Sepulcro, foi um dos que, em jovem de 12 ou 13 anos, me impressionou suficientemente para ficar como um mito poético dentro de mim para sempre. Passadas algumas décadas, há dias, li-o de novo pela 1ª vez e gravei tal leitura, brevemente comentando-a, e poderá ouvi-la na ligação ao Youtube. Destacarei agora só a beleza perene, goticizante ou ultra-romântica, com que o poeta portuense Soares dos Passos  cria um ambiente inicial de culto da grande paz entre a noite e a morte, num silencioso cemitério à meia noite e sob os eflúvios da lua e do piar dos mochos, e  justifica-o animicamente e ritmiza-o com a antítese da vida instável com os seus vaivéns da sorte e a paz tranquila de quem ali descansa, se não for movido pelo Amor todo poderoso, que Dante com Beatriz sentiu em si e entreviu na Anima Mundi ou no Cosmos divino...

 Contudo, alguém admitido no seio do mundo das sombras, parece estar sofrendo pois, depositado o seu corpo há três dias na tumba, ainda não foi a sua alma alentada com a visita da amada viva, pelo que fantasma se ergue, caminha e se lamenta, quase chorando, da fugacidade ilusória do amor e das suas promessas...      
Esta balada de encantar do amor que vence a morte, que ressoa os rimances populares antigos, foi glosada por muitos poetas, em sucessivas escolas e épocas, e mencionaremos como dos mais brilhantes Antero de Quental, e foi recriada por Soares dos Passos, um poeta que, tuberculoso desde novo, foi levado a sentir mais fortemente a tragédia dos amores que não se concretizam na terra e nos corpos, e compôs alguns poemas sobre a superação de tal dilaceramento, o mais notável sendo este. 
Certamente que os sonetos de Antero de Quental receberão bastante maior fortuna imortalizadora, sendo ainda hoje estudados nas escolas públicas. E contudo, Soares dos Passos, igualmente fino poeta amante da noite e da morte, e ainda do amor que se sente e deseja imortal, morrera ainda mais novo que Antero, com  33 anos apenas, qual outro Cristo, embora sem a vasta genialidade de Antero que ainda chegou aos 7x7, 49 anos, ultimando a sua obra poética e filosófica, e finalizando-a com o selo de mártir, insatisfeito no suicídio.
Soares dos Passos (27.XI.1826-1860) formara-se em Direito em Coimbra, era de uma família de liberais (versus absolutistas), e sentia fortemente os ideais do conhecimento, da liberdade, do amor da fraternidade, tudo como Antero de Quental, e colaborara em algumas publicações periódicas literárias, tais como o Bardo, a Grinalda, o Novo Trovador,  dando à luz em 1861 o seu único livro, Poesia. Três anos depois apenas,  a Parca cortou-lhe o fio de prata do corpo e enviou a sua alma ultra-sensível para o além, no qual ele acreditava e para o qual se preparara e onde chegou jovem mas,, certamente, luminosamente

Ora Antero de Quental, na sua genialidade e excentricidade tão real e activa como legendária e mítica, provavelmente consciente das sensibilidades e afinidades que os uniam, soube já no fim da sua vida, a uns meses de partir (Setembro de 1891), escrever um elogio bem merecido de Soares de Passos, em cuja obra perpassa claramente a fraternidade poética, romântica e até revolucionária, bem patente noutros poemas nos quais canta com a lira da justiça e do amor, a irmandade, a revolução, o novo mundo.

A carta onde encontramos manifestado o elo de amor dos dois poetas, plenos de sensibilidade, idealismo, é dirigida ao tradutor sueco Göran Bjorkmann, que lhe pedira informações sobre a literatura contemporânea portuguesa, e foi escrita em francês a 12 de Abril de 1891, da Rua da Fé, nº12, Lisboa. Dela  traduzimos este excerto: «Vou-lhe indicar os nomes e as obras mais notáveis. O poeta por excelência é João de Deus:os seus dois volumes intitulam-se Flores do Campo e Campos de Flores. Depois, vem Tomás Ribeiro, que conheceis: além D. Jaime, publicou vários volumes de versos, mas D. Jaime é sem dúvida o que fez de melhor. Depois vem Guerra Junqueiro: a sua obra Morte de D. João é muito desigual, mas é contudo bem notável, e, no meu sentir, superior à sua outra obra Velhice do Padre Eterno, onde imita muito Victor Hugo, no que Victor Hugo tem de pior. Um poeta encantador e original, morto muito recentemente e bem jovem, é Gonçalves Crespo: o seu volumezinho Miniaturas far-vos-á prazer, estou certo. Recomendo-vos também Soares dos Passos, cujo volume tem o título modesto de Poesias: o seu autor morreu, há 15 anos, mas o livro permanece popular, e ele merece-o.» Oiçamos então o poema por mim lido:

               

 
                O NOIVADO DO SEPULCRO

BALADA


Vai alta a lua! na mansão da morte
Já meia noite com vagar soou;
Que paz tranquila! dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.


Que paz tranquila!... mas eis longe, ao longe
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma, semelhando um monge,
Dentre os sepulcros a cabeça ergueu.


Ergueu-se, ergueu-se!... na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na marmórea cruz.


Ergueu-se, ergueu-se! com sombrio espanto
Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.


Chegando perto uma cruz alçada,
Que entre os ciprestes alvejava ao fim,
Parou, sentou-se, e com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:


«Mulher formosa que adorei na vida,
«E que na tumba não cessei d'amar,
«Porque atraiçoas desleal, mentida,
«O amor eterno que te ouvi jurar?


«Amor! engano que na campa finda,
«Que a morte despe da ilusão falaz:
«Quem dentre os vivos se lembrará ainda
«Do pobre morto que na terra jaz?


«Abandonado neste chão repousa
«Há já três dias, e não vens aqui...
«Ai quão pesada me tem sido a lousa
«Sobre este peito que bateu por ti!


«Ai quão pesada me tem sido!» e em meio,
A fronte exausta lhe pendeu na mão,
E entre soluços arrancou do seio
Fundo suspiro de cruel paixão.


«Talvez que rindo dos protestos nossos,
«Gozes com outro d'infernal prazer;
«E o olvido, o olvido cobrirá meus ossos
«Na fria terra, sem vingança ter!


--«Oh nunca, nunca!» de saudade infinda
Responde um eco suspirando além...
«Oh nunca, nunca!» repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem.


Cobrem-lhe as formas divinais, airosas,
Longas roupagens de nevada cor;
Singela coroa de virgíneas rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palor.


«Não, não perdeste meu amor jurado:
«Vês este peito? reina a morte aqui...
«É já sem forças, ai de mim, gelado,
«Mas ainda pulsa com amor por ti.


«Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
«Da sepultura, sucumbindo à dor:
«Deixei a vida... que importava o mundo,
«O mundo em trevas sem a luz do amor?


«Saudosa ao longe vês no céu a lua?
--«Oh vejo, sim... recordação fatal!
--«Foi à luz dela que jurei ser tua,
«Durante a vida, e na mansão final.


«Oh vem! se nunca te cingi ao peito,
«Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
«Quero o repouso do teu frio leito,
«Quero-te unido para sempre a mim!»


E ao som dos pios do cantor funéreo,
E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrado, d'infeliz amor.


Quando risonho despontava o dia,
Já desse drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignota mão.


Porém mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só.»

Se o poema é de algum modo autobiográfico, e se eram almas gémeas ou apenas almas poderosas que, na sua atracção recíproca, mesmo já em corpos espirituais, até os corpos já falecidos moveram, só a alma imaginal de Soares dos Passos nos poderá dizer, mas aí está a balada, atravessando os séculos e ainda hoje comovendo os fiéis da Mors-Amor, tal como Antero de Quental em soneto ímpar imortalizou.
 
Muita Luz e Amor Divinos neles e suas amadas!

domingo, 18 de setembro de 2022

Jacques de Marquette, pioneiro do vegetarianismo e naturismo, dentista e doutorado em filosofia e letras, o sábio da Panharmonia.

 [Este texto encontra-se já no blogue bem mais desenvolvido, mas em inglês,]

Em 23 de Abril de 1888, dois meses antes de Fernando Pessoa, nascia em França, em Paris, Jacques de Marquette. Será em 1904 que toma conhecimento do vegetarianismo, através de um livro de judo que atribuía à abstenção de carne a grande força e resistência dos judocas japoneses, e em 1905 que se torna vegetariano, realçando o impacto consciencial da leitura dum livro de Daniel Foward, que condenava os sofrimentos desnecessários dos animais e referia muitos  vegetarianos valiosos. Continuando os seus estudos, em 1907, licenciou-se como cirurgião dentista pela Faculdade de Medicina de Paris, e foi tentando compreender melhor os efeitos dos alimentos nas psiques e  comportamentos humanos, empenhando-se numa luta de esclarecimento. Funda então a primeira sociedade naturista em França, Le Trait d'Union, em 1911 e é um dos co-fundadores dos Escoteiros em França. Participa como oficial  na 1ª grande Guerra e logo que paz começou a sorrir na ruralidade francesa   organizou o 1º campo e parque de campismo naturista em França, em Chevreuse, em 1920, e cujo programa começava às 5 da manhã com a aula de ginástica que dava e terminava às 22:00 com os cantos  que dirigia. Em 1922, mantendo a chama ardente do conhecimento viva, licencia-se em Filosofia. E em 1924, funda a 1ª cooperativa naturista Trait d'Union (que teve quatro restaurantes em Paris e cinco filiais na província). Em 1925  diploma-se em Estudos Superiores e em 1928 doutora-se em Letras. E funda ainda nesse ano o 1º congresso Universal da Juventude, em Ommen, Holanda.  A sua mulher e companheira na demanda da Panharmonia foi Phyllis de Marquette (1902-1971), uma norte-americana professora de Psicologia, embora quando se casasse por paixão já tivesse quarenta anos muito castos.

Será um espiritual bem activo, licenciado em medicina e filosofia,  vegetariano e estudioso da espiritualidade comparada, nomeadamente a indiana, tendo ensinado  Religiões Comparadas no Lowel Institute de Chicago e proferido conferências em dezenas de instituições e países. Esteve na Índia sete vezes, em vários ashrams, nomeadamente no do Mahatma Gandhi e  no do Guru Ranade, em Nimbal (neste em Dezembro 1954 e tendo tanto ele como a sua mulher sido iniciados por guru Ranade, e deixou várias obras valiosas, tais como a Introduction à la Mystique comparée,  Confessions d'un mystique contemporain, Santé et Progrès, assurés par l'Alimentation Naturelle, base universelle du Yoga - Manuel pratique d'Higiène Alimentaire et de Cuisine Vegetarienne  (onde realça a importância da mastigação, pois é ela que prepara a assimilação), Les septs Raisons du Vegetarianisme (Hygiene, Economie et Morale de l'Alimentation), 1934, De l'Âme au Esprit (título  igualmente do meu último livro, Da Alma ao Espírito, 2015).

  No L'Avenir de l'Âme dans la Pensée Orientale, de 1951,  descreve as concepções principais da alma no Ocidente, dos Egípcios e Gregos a Charles Renouvier (realçando a equiparação por este da mónada criativa à persona, donde o personalismo com que Jacques de Marquette se identificou), e do Oriente, aprofundando bem a metafísica dos vários corpo e planos do universo, baseado nos textos tradicionais indianos, das Upanishads às Puranas Vaishnavas, realizando ainda uma original equiparação do personalismo divino ocidental com a Ishta devata, a divindade pessoal na compreensão íntima ou esotérica indiana.

 De destacar a sua tradução do livro do seu guru indiano Ranade intitulada La Spiritualité dans l'oeuvre de Gandhi.   Anote-se que Gandhi, com quem se encontrara, em 1930 dera o seu patrocínio à associação da Panharmonie, por ser um elo entre o Ocidente e o Oriente, e porque seguia os princípios da ahimsa, não-violência, nomeadamente o vegetarianismo, que Marquette considerava "a ponte entre a harmonia no plano físico e aquela dos planos mais elevados da moral, já que preserva o ser humano do massacre quotidiano de milhões de animais inocentes".  Quanto ao plano do espírito, o acesso a ele obter-se-ia pela harmonização da nossa vida com as Leis Universais, que contêm uma ética sã e implicam da nossa parte um trabalho de auto-aperfeiçoamento, nomeadamente através da meditação.  

Acrescente-se apenas que os membros da Panharmonia eram convidados a realizar "curtas meditações de manhã, ao meio do dia e ao fim da tarde, antes das refeições, durante as quais se uniam pelo pensamento à união de todo o nosso grupo com a essência sagrada do Universo. Preparam-se assim para se tornarem canais eficazes, pela sua consagração, para a transmissão ao mundo da Paz e da Luz do Alto."

A sua Association Internationale Panharmonie corporizava tanto um ideal como métodos baseado no naturismo, humanismo e personalismo, e  organizava banquetes e reuniões quinzenais, com conferências e meditações (orientadas por ele), e editava obras e uma revista mensal valiosa de espiritualidade universal, já que para Jacques de Marquette a apreciação do património intelectual e espiritual da Humanidade era base mais segura de uma paz universal.  Explicou abreviadamente assim: «A Panharmonia não é só um ideal de vida-em conformidade com as leis do Universo. É também um programa de realização deste ideal na vida dos indivíduos e das sociedades, acima da divisão humana em nações, raças e religiões (...) Sendo a procura da felicidade  o fim primordial da actividade humana, é importante compreender-se bem a natureza fundamenta desta demanda evitando confundir-se felicidade com prazer.»  E considerando que a felicidade maior ou menor depende do desenvolvimento das nossas qualidades, Jacques de Marquette, na sua Panharmonie, recomendava a eliminação sistemática do que nos enfraquece e degrada e, simultaneamente, o cultivo das nossas mais elevadas qualidades, através "do desenvolvimento de todas as causas de saúde e de progresso físico, intelectual e espiritual".

Viveu até 22 de Agosto de 1968, oitenta anos bem profundos e dinâmicos.

No livro  Des Hounzas aux Yogis. Du régime des centenaires à celui des grands initiés, 2ª ediçao de 1966,  mostra a importância exemplar do estilo de vida e alimentação do povo Hounza e confessará alguns aspectos biográficos, tal  o ter sido o fundador da primeira sociedade naturista em França, em 1911, e que estivera na Índia quatro das sete vezes mais prolongadamente, em vários ashrams: E pelo que foi discernindo, desvaloriza, como lemos nessa obra, o Hatha Yoga, ou seja, as práticas meramente físicas das posturas e, explicaremos nós, quando não estão inseridas numa demanda espiritual, que normalmente é a da ashtanga Yoga, a yoga ou união dos oito membros ou Raja Yoga, e valoriza mais os Bhakta Yogis, os que seguem a via da adoração, e vivem quase dias inteiros absortos no amor ardente pelo objecto da sua devoção, geralmente um dos aspectos de Vishnu, e também os Raja Yogis, que fazem "ascetismos fortes para desenvolverem a sua vontade e aumentarem o seu império sobre o corpo e as paixões que nele se apoiam" de modo a assim controlarem os "pensamentos materialistas, os maiores entraves à manifestação da  Presença divina na nossa vida, à activação do "Reino dos Céus" que está em nós, os quais nos fazem esquecer a nossa  filiação divina".  

É esta luta que diariamente todos os que praticam a meditação devem tentar estar mais conscientes, de modo a que, persistindo no trilhar do Caminho ao longo dos dias e anos, possam  interiorizar-se o suficiente para começarem a sentir  ocasionalmente o espírito, o atman, que está neles, ou a verem a sua Luz, ou receberem intuições, ou sentirem a sua felicidade, ananda, certamente merecendo-a também por uma vida justa, sábia, amorosa, corajosa, panharmoniosa... 

Saibamos em maior contacto com a Natureza e com uma alimentação mais vegetariana e biológica, vivermos harmoniosamente com Pan, o todo, ou seja, em Panharmonia, de modo a que, escapando à opressiva manipulação dos media e à mentalidade materialista e superficial que se tem generalizado, possa a anima mundi ou o campo unificado de energia informação  ser comungado criativa e holisticamente para o bem de Todos. E saudemos a alma ou personalidade espiritual de Jacques de Marquette e os seus mestres Ananda Coomaraswamy, Paul Masson Oursel e Guru Ranade.

sexta-feira, 16 de setembro de 2022

Poema espiritual. Da escrita e da leitura, da demanda e do amor. Lisboa, 16.IX.2022

 


 Cada página branca, com uma caneta,

É um milagre da Bondade Divina,

Pois a infinita potencialidade brotará

E só há que registar o fluir anímico.

 

Então unirmos o inconsciente com o consciente

e até o supra-consciente surge como o desafio:

Quantos conseguiremos unir as raízes com a copa,

fortificar e circular a seiva e gerar os frutos?

 

Quão gratos não estamos nós à Divindade

Por tudo o que a sua alma mundi nos permite,

Quando amamos e oramos, e ao alto nos ligamos,

E da clarividência interior luzes e sinais recebemos?


Que podemos nós trazer à manifestação,

Que seja necessário e valioso, belo e sagrado?

- Despertar as pessoas para a ressurreição do Espírito

E a religação à Divindade como o mais importante?


             Meditar-orar, além do trabalho, do amor e da família,

É a mais importante acção para se entrar no coração.

Mas estamos tão presos ao corpo do prazer e da dor,

Ou à mente e suas atrações, repulsões e ondulações

que conseguirmos silenciar, adorar e contemplar

é felicidade interna rara, qual suspiro de respiração subtil.

 

As mãos juntas diante do peito e do coração,

Na boca e alma a oração pura: - Deus, Deus, Deus....

Que maior alegria e gratidão se pode vivenciar

Que a unidade amorosa com a Fonte Divina?

 

Alguns há que, sem se elevarem à Primordialidade,

Se alegram e satisfazem na demanda e  peregrinação,

Ou mesmo com a criatividade anímica, ou a bondade,

Ou a união amorosa com ser amado complementar.

 

Certamente tudo o que une em amor e para o Bem

Faz as almas expandirem-se e iluminarem-se,

E assim a escrita e a leitura se fundem em acto de amor

que imortaliza os seres na sua dimensão espiritual e divina,

e se derrama na última linha do poema ou na orla da alma,

Intensificando a aspiração do coração e a unidade da comunhão.

"Despertar da alma". Pintura para contemplação de Bô Yin Râ

domingo, 11 de setembro de 2022

Reflexões sobre a excentricidade e o amor em Antero de Quental, no 131º ano da sua desincarnação

A palavra "excentricidade" é empregada por Antero de Quental na penúltima carta da sua vida,  dramática no dilaceramento que partilha, escrita em Ponta Delgada a 29 de Agosto e dirigida a Oliveira Martins, na qual dá conta de que «o grande  desejo que tinha de não desistir da resolução e programa final de vida satisfatório», e que  o levara há três meses a retirar-se para ilha natal, estava a falhar: «Procurava o definitivo e afinal ainda agravei o instável e provisório que tanto me assustava. Paciência. Fui talvez imprudente, contei de mais com as minhas forças, seduziu-me a ideia de, depois de tantos anos de excentricidade, acabar como toda a gente, mas vejo que  a excentricidade tinha de ser definitiva, submeto-me a ela, ainda agravada agora por mil cuidados. Peço à minha razão que comunique aos meus nervos o estoicismo que ela tem mas de que eles não parecem susceptíveis». 

Para além da auto-consciência da sua excentricidade e da dualidade que o habitava e de que frequente e estoicamente se "queixava", há de realçar como que um aviso intuitivo ou subliminal da sua desincarnação fora do normal, excêntrica,  e que se concretizaria na pacatês do banco da praça ou campo de S. Francisco, junto à cerca do convento (não o da sonhada ordem dos Mateiros, mas o da Nossa Senhora da Esperança), caída a noite (as 20:00), "irmã da morte", sob a palavra e símbolo da virtude da "Esperança", treze dias depois, perfeitos os seus 49, 7 x7 anos, sacrificiais de cavaleiro da Verdade e do Amor.

Mas excêntrico é um termo bem polisémico,  podendo significar tanto de "fora do centro" como "saído do centro", como ainda desintegrado, isto é, não centrado, não integrado, sem conseguir estar centrado ou normalizado pelas mentalidade dominantes da época, mas também sem tornar-se um centro e logo centralizador num meio ambiente ou época. Provavelmente Antero, findo o seu périplo continental mais activo, completado o seu testamento de intelectual nas Tendências Gerais de Filosofia na segunda metade do século XIX,  buscava nesses últimos tempos da sua vida tal centro na mãe-terra natal, nos seus Açores, interiormente como que num regresso ao ventre maternal, ao seio telúrico que o acolheria para uma nova vida, seja em que sentido esta fosse nova... Ou não glosara ele, como depois Joaquim de Araújo e Fernando Pessoa (como já desenvolvi neste blogue), o dito grego Morrer é ser Iniciado?

Mas ao longo da vida  em que momentos Antero foi mais excêntrico, quando se sentiu mais tal em comportamentos, sentimentos ou ideias, ou então quando foi ele visto mais excêntrico, mais fora da norma e da normalidade, não nos esquecendo que a excentricidade e a genialidade estão bem próximas por vezes?

Teríamos de desenrolar a sua biografia para sermos exaustivos,  tanto mais que ele próprio caracteriza-a por "muito anos de excentricidade" mas digamos que certamente na época estudantil, tal como mestre da Sociedade do Raio,  líder da Rolinada (1864) e orador e declamador da Universidade,  como teorizador literário na Questão do Bom Senso e Bom Gosto (1865-66) tal como mais tarde  nas conversas no seio do grupo lisboeta do Cenáculo (1867-1871), como doutrinador revolucionário  das Conferências do Casino (1871),  como ideólogo dum  partido socialista nascente, e sobretudo na sua sensibilidade imensa e intensa bem patente nos seus interesses e leituras, escritos em prosa e poemas, em que uma genialidade precoce se manifestou fortemente.  

Mas também certamente na sua inadaptação a uma vida profissional normal (embora ainda se tivesse feito tipógrafo e sofresse a dureza de tal profissão no meio do proletariado francês, ou pensasse concorrer a professor, no que foi dissuadido por Oliveira Martins) e logo à inserção na sociedade. Talvez seja no contributo de leitura obrigatória, Um Santo que era um sábio,  no In Memoriam de Antero, 1896, em Eça de Queirós  descreve magistral e hagiograficamente alguns desses momentos de um dos nossos santos laicos que encontremos o melhor debuxo (bem demorado na sua feitura) da sua excentricidade e genialidade.
Ficará assim a aura do poeta, do pensador e do animus questionador, revolucionário, excêntrico, meditabundo, ecoando desde então e até estes tempos nossos do séc. XXI tão sombrios de tentativas de manipulação massificante em narrativas e ideologias oficiais transhumanas que não se podem contrariar ou discutir e em que os Anteros actuais são rapidamente presos (tal Julian Assange) ou eliminados (tal Jamal Khashoggi). O que diria hoje Antero de Quental de tais auroritarismo e opressões, políticos e "media" ocidentais e nos aconselharia? - Sintamo-lo em alguns dos seus poemas mais dinâmicos e talvez recebamos algumas inspirações e forças, sobretudo dos contidos nas Odes Modernas.

Quanto ao Amor e, já que não casou, aos namoros de Antero, algo excêntricos também nas suas especificidades e dificuldades, temos de admitir que era bem difícil o corpo, a alma e o espírito de Antero encontrarem a mulher certa para entrarem em diálogo e unirem-se, de um modo  profundo, demorado, aprazível, frutuoso,  na sua época do séc. XIX, em que os contactos e os namoros entre os dois sexos não estavam facilitados. Mas na sua adolescência teve um ou dois namoros mais sentidos, e brilhou bastante o fogo do seu amor idealista, romântico, platónico, em especial até nos dedicados a Beatrice.  Mas não resultaram, embora em especial o com Mariana Portocarrero deixasse marcas na sua correspondência, sempre reservada ou discreta, e numa ou outra referência dos amigos. 

Foi talvez aos 35 anos, com a Baronesa Seillières, quando ambos eram seres já com maturidade de idade e da escola do sofrimento, que terá sentido possível (ou pelo menos mais forte) a paixão que o avassalou.  Se anteriormente a sua grande cultura, genialidade e idealidade (algo influenciada pelo romantismo alemão) e até vocação de escritor e tribuno revolucionário, e ao mesmo tempo alguma misogenia típica da época e da educação cristã, dificultavam a tarefa dum casamento, agora seria apenas o desencontro de serem de nacionalidade diferentes e ela estar ainda num processo de separação. Mas sabemos poucos das complementaridades que terão conseguido sentir e alcançar nesses curtos encontros, quem sabe se entre as alamedas de grandes árvores, ou no espaço ajardinado junto a uma fonte,  do estabelecimento hidroterápico de Bellevue, Oise-Seine, nos arredores parisienses...

Quando a sua alma, global, total, na qual a cabeça intelectiva e o coração afectivo e dinâmico estavam unidos, e estimulavam o corpo, a imaginação e esperança, podemos observar nos seus poemas da época  como ele sentiu e desejou tal possibilidade unitiva, nomeadamente em relação às musas dos seus namoros juvenis. Maduramente mas já em crise nervosa ou psíquica (desde 1874, quando morre o pai) no tempo de encontro com baronesa, constatamo-lo pelo magistral poema que escreveu nesses momentos de mais amor, o Mors-Amor.

O coração de Antero era franco, sincero, transparente, e havendo afinidades vibrava facilmente em Amor com quem estava, ou por quem se sentia atraído, embora saibamos pouco dos factores mais atractivos  na recíproca projecção amorosa, ou mesmo o que tinha mais força dinâmica nessa laboriosa e alquímica tarefa de se aproximarem, enlaçarem, conhecerem e unirem dois seres, luminosamente, divinamente...

O Amor divino em Antero  falhou pois  o forte amor à Deus de criança não o conseguiu manter senão até ao começo da adolescência,  natural na abertura na Universidade à universalidade do conhecimento e das religiões, logo começando um questionamento e afastamento que o levou depois, por entre a sua evolução filosófica no inconsciente de Hartman, no budismo e no panpsiquismo, a não o desenvolver e aperfeiçoar suficientemente, ainda que ao de leve o tivesse consagrado no último soneto da sua antologia, Na mão de Deus  que se tornaria a sua obra-prima, Sonetos Completos, 1888. 

Quanto ao amor humano ele iria concentrar-se, após os frustrados namoros juvenis, nos familiares (até desincarnados, como alguns sonetos mostram) e em especial na bastante amada mãe, mas também desgastantemente na irmã Ana,  em Albertina e Beatriz,  as duas crianças do seu amigo Germano Meireles adoptadas e educadas cerca de dez anos, e, sobretudo, em alguns amigos de juventude, e depois em uns poucos de amigos mais recentes ou mais novos, de certo modo discípulos, e neste sentido as cartas  para eles perdurarão na antologia virtual do Melhor Epistolário do Mundo, destacando-se algumas das dirigidas a Germano Meireles,  António Azevedo Castelo Branco, Jaime Batalha Reis,  Alberto Sampaio, João Lobo de Moura, João de Deus, irmãos Faria e Maia, Eça de Queirós, António Moleirinho,  Joaquim de Araújo, Oliveira Martins,  Fernando Leal, Carolina de Michaelis, Maria Amália Vaz de Carvalho, Jaime de Magalhães Lima e Carlos Cirilo Machado.  

A nós de as relermos e com tais diálogos luminosos nos inspirarmos e melhoramos na harmonia do corpo, alma e espírito, na audição e vivência da voz da consciência e no descobrir e viver mais o Amor,   que vence a separatividade, a ignorância, o ódio, o desalento e  a morte, e que Antero tão bem retratou no soneto Mors-Amor, escrito sob a influência do encontro com a Baronesa Seillières,  e que no momento da sua partida (que hoje comemoramos) terá talvez sentido (e será que mantrizou até: "Eu sou o Amor"?), certamente com as limitações ambientais internas e externas, pesadas, e que agora iremos ler em sintonia luminosa com a sua alma  espiritual ( a Paz esteja com ela), tanto mais que esta foi tal como no famoso soneto Solemnia Verba («Desta altura vejo o Amor! Viver não foi em vão, se é isto a vida, Nem foi de mais o desengano e a dor») bem simbolizada  na sua simbiose com o corpo e o espírito, o passado vivido e sofrido e o eterno presente da essência imortal:

 «Esse negro corcel cujas passadas
Escuto em sonhos, quando a sombra desce,
E, passando a galope, me aparece
Da noite nas fantásticas estradas,

Donde vem ele? Que regiões sagradas
E terríveis cruzou, que assim parece
Tenebroso e sublime, e lhe estremece
Não sei que horror nas crinas agitadas?

Um cavaleiro de expressão potente,
Formidável, mas plácido no porte,
Vestido de armadura reluzente,

Cavalga a fera estranha sem temor.
E o corcel negro diz: «Eu sou a Morte!»
Responde o cavaleiro: «Eu sou o Amor!»

 Saibamos descobrir, ser e viver Amor que jaz nas profundezas últimas do coração e do ser.  

E muita Força, Luz, Amor divinos em Antero de Quental!