quarta-feira, 12 de julho de 2017

Biografia de Erasmo de Roterdão, 2ª parte, por Pedro Teixeira da Mota.

                                 
                                              Biografia de ERASMO DE ROTERDÃO
                                            2ª parte, dos anos de 1505 a 1519.
No fim de 1505 Erasmo parte para Londres onde reencontra os seus pares Thomas More (que acabara de se casar), John Colet, que «fazia entrar Cristo na alma dos seus compatriotas por uma pregação constante e uma doutrina santa», Linacre, e outros. De realçar que Thomas More publica então a pequena tradução do latim para inglês da genial Vida de Pico della Mirandola (o mestre, com Marsilio Ficino, do pioneiro Humanismo florentino) a qual foi lida certamente por Erasmo. É nesta segunda visita que conhece o Arcebispo de Canterbury, William Warham, que se tornará um dos seus mais fiéis mecenas (nomeando-o pároco em Kent, e recebendo por isso um ordenado), Andrea Ammonio, que lhe prestará vários serviços, e o bispo John Fisher, presidente do Queen’s College e reitor da Universidade de Cambridge, sábio e místico.
Saint John Fisher, pois será martirizado em  22-VI-1535
Em Maio de 1506 regressa entusiasmado ao velho continente como preceptor de dois filhos de Battista Boerio, o médico genovês do rei Henrique VIII, encarregado de os levar para as Universidades de Pádua e Bolonha, podendo assim realizar a sua aspiração de conhecer tanto o berço da Igreja como do Humanismo, com os seus sábios e cardeais. Depois de passar em Paris dois meses, aonde entrega ao notável impressor Ascensio Badio várias traduções, poemas e mais adágios, atravessa Orleans e Lyon e entra em Itália onde é muito bem recebido, doutorando-se finalmente, após a provação escolástica da Sorbonne parisiense, em Teologia, a 4 de Outubro, na Universidade de Turim, e de lá seguindo para Bolonha.
Vê-se, porém, obrigado a refugiar-se em Florença, onde trabalhavam então Rafael, Leonardo da Vinci e Michelangelo, devido ao cerco e invasão de Bolonha pelos exércitos comandados pelo belicoso papa Júlio II, que governou a cristandade luxuosamente e com mão de ferro de 1503 a 1510, cobrando muitos impostos e vendendo muitas indulgências, causadoras de fermentos de revolta fatais. Acaba mesmo por assistir à entrada triunfal do papa na cidade cobiçada (como escreve algo criticamente numa carta a Busleiden: «o soberano pontífice Júlio combate, vence, triunfa, e por toda a parte Júlio age»), e reside então em Bolonha treze meses, aprofundando o grego com Paolo Bombasio, professor na Universidade, recebendo do papa a dispensa de usar a veste eclesiástica e de cumprir certas obrigações monásticas.
Uma das impressões de Aldo Manuzio, com a sua marca de impressor, Festina lenta, apressa-te lentamente
Liberto das obrigações do preceptorado, entra finalmente em Veneza, o ponto de maior encontro entre a Grécia e a Itália, e trabalha oito meses com o maior impressor humanista da época Aldo Manuzio Pio Romano (o dinamizador da passagem dos caracteres góticos para os caracteres cursivo e itálico, o pioneiro da publicação dos clássicos gregos), numa sábia companhia (a Neakademia, cerca de trinta pessoas, entre os quais se destacavam Lascaris, Marcus Musurus, Doucas e Aleandro) em que todos se comprometem a falar só em grego, com as multas a servirem para um banquete, filosófico. Publica então várias obras e traduções (Eurípedes, Terêncio, Plutarco), destacando-se em Setembro de 1508 a edição dos Adágios, que passa dos 800 a 3.260 (graças a tal milícia helenista, e que chegará às 4.151 entradas ou adágios, nos últimos anos da sua vida), tornando-se um verdadeiro manual da sabedoria, para se agir melhor e mais luminosamente no mundo.
Aldo Manuzio de negro, pintado por Bernardino Loschi
Após esses nove meses de trabalho inolvidável com Aldo Manuzio (e com as suas filológica, estética e tipograficamente exigentes edições, conhecidas como as aldinas, com a marca de impressor  de uma âncora e um golfinho enlaçados, e o lema Festina lenta, “apressa-te lentamente” e que Erasmo explicará como a união do círculo da eternidade, a ancora da controle e lentidão e o golfinho da agilidade do movimento), parte para Pádua, onde convive mais estreitamente com o helenista grego Marcus Musurus, denominando Pádua como «o mais rico armazém de instrução que há no mundo». Torna-se preceptor de Alexander Stuart, o príncipe escocês de 18 anos, filho natural do rei católico da Escócia James IV. E, depois de umas passagens por Siena e Ferrara, em Março de 1509, respira pela primeira vez as energias de Roma, que o encanta pelos aspectos culturais, monumentais, conviviais e ensolarados, e o desgosta pelo carácter bélico e luxuoso do Papado.
Convive com humanistas como Pietro Bembo e vários cardeais, entre os quais o geral dos Agostinhos, hebraista e cabalista, Egidio da Viterbo, o bibliotecário da Biblioteca Vaticana, Tommaso Inghirami, e o seu sucessor Filipo Beroaldo, os cardeais Raffaelo Riario (talvez aquele com quem mais afinidades sentira) e Domenico Grimani (com a sua biblioteca de 8.000 volumes, vários deles provenientes de Pico della Mirandola), o qual o tentam reter como secretário ou investigador, e Giovanni de Medici, o futuro papa Leão X, clarificando-se mais no seu ânimo o que deveria ser a religião verdadeira, a combinação da sabedoria e sobriedade antigas com a essência do cristianismo, e como a poderá transmitir aos seus contemporâneos e vindouros.
Vai ainda buscar Alexander Stuart, o príncipe escocês, a Siena, introduzindo-o em Roma, seguindo depois ambos para Nápoles, onde visitam a lendária gruta da Sibila de Cumas, uma sobrevivência, até algo santificada, de uma actividade ou mesmo de uma instituição religiosa pagã, as Sibilas. Foi este jovem príncipe, então de 18 anos, que ofereceu a Erasmo um anel de cornalina com uma face de um deus barbudo, seja Dionísio, seja o deus Terminus, que era tanto o da morte (implacável com todos) como o dos limites territoriais fixos e invioláveis, e cujo lema Concedo nulli, Não concedo (obedeço, ou curvo) a ninguém, será adoptado por Erasmo, que manter-se-á firme, guiado pela sua estrela divina, ou a filosofia de Cristo, face aos atractivos algo luxuosos da vida na “cidade eterna” e da valorização excessiva do paganismo e da elegância da língua latina, denominada, por referência a um dos seus maiores cultores, o Ciceronianismo. Numa explicação posterior, Erasmo atribuirá a frase à própria morte e sabemos como ele sempre lutou pela criatividade máxima enquanto vivo.
Se na Idade Média, e mesmo no Renascimento, os quarenta anos poderiam considerar-se a entrada quase na velhice, como aliás escrevera então num poema, ao atravessar rumo a Itália a majestosa cordilheira dos Alpes, após esse contacto com as fontes humanistas e cristãs da península Itálica, parece que ganhou forças para entrar ascendentemente na maturidade, preparando-se para exercer o seu magistério por toda a Europa, pelos estudos e livros, viagens, convívios e correspondência epistolar, a qual despertará e orientará tantos europeus para a via do conhecimento Humanista, aquela que une a sabedoria antiga e profana com o espírito e o ensinamento de Jesus, a filosofia de Cristo.
Convidado a voltar, pelas promessas dos seus amigos, a Inglaterra, atravessa a cavalo os Alpes, congeminando o Elogio da Loucura (talvez mesmo uma das forças germinantes que o impulsionaram a partir...), desce o rio Reno de barco a partir de Constança e chega aos Países Baixos, onde se demora uns dias. Depois, atravessa o canal da Mancha e no fim do ano de 1510 entra pela terceira vez em Inglaterra e é acolhido em casa do seu amigo Thomas More e de Jane Colt, em Bucklersbury, onde respira e desfruta de um ambiente familiar encantador, com as filhas e o filho que aprendiam não só o latim como o grego.
Esboço da Thomas More e a sua família por Hans Holbein
Escreve então, em poucos dias, embora como produto de uma vida de atenta observação do mundo e de intensa reacção moral e espiritual ao que via, a obra-prima que o torna verdadeiramente popular, O Elogio da LoucuraMoriae Encomium, dedicado a Thomas More, na linha das peças de Aristófanes e das sátiras de Luciano (que traduzira com More), e das tradições medievais das Festas, e das Barcas ou Naves dos Loucos (que encontramos em Gil Vicente, bem pre-erasmiano nas suas ideias), através do qual mostra os vícios e falsidades mundanas, num ataque bem-humorado ao que se opunha ao Humanismo e à transformação pedagógica, filosófica e espiritual, plenificadora ou simplificadora dos seres, e que provinha principalmente da ignorância e inconsciência, amor-próprio, vaidade e ambição, superstição e estultícia da maior parte dos tipos de acção e de vidas. E em todos os géneros de pessoas, desde os papas e bispos (tão distantes de uma imitação de Jesus...), aos poderosos reis, príncipes e cortesãos, passando pelos filósofos e gramáticos e chegando aos seres mais simples, destacando ainda nesta visitação da galeria humana os frades ignorantes, bárbaros e charlatães, e os teólogos ora enredados nas distinções e sentença das suas argúcias escolásticas, ora pretendendo esclarecer todas as questões mais subtis e misteriosas das Escrituras, ora distorcendo-as e manipulando-as nas múltiplas interpretações retóricas.
Elogio da Estultícia que é também uma apologia da educação liberal generalizada, da higiene, da lucidez, da tolerância, e sobretudo do discernimento entre o verdadeiro e o falso, o valioso e as aparências, com o consequente domínio dos instintos e das paixões, que são de facto também a fonte do desejo e da vontade do bem. Elogio ainda do culto interior, da verdadeira piedade ou devoção, despida de cerimonialismos (tão patentes nos funerais ou ofertas) ou aprofundando interior e vivencialmente o simbolismo deles (tal na Eucaristia, onde morremos para as nossas paixões e vícios e ressuscitamos com Cristo, o amor sabedoria), livre de superstições (como as indulgências ou certas orações miraculosas e devoções a santos). Piedade douta fortalecida ainda pela cultura e a metanóia ou transformação interior, e que manifestada nas qualidades e virtudes anímicas se pode erguer mesmo, pela oração, pela meditação, pela contemplação, pela escrita, na exaltação e furor poético, amoroso ou religioso, em que ocorre ou brota o êxtase, o rapto, o excesso e alargamento intensificado da mente, a estupefacção e admiração perante as maravilhas espirituais e divinas, o que para os carnais ou profanos é loucura.
É o renascimento de alguns dos grandes valores da civilização Europeia, tais como o amor e a sabedoria, a simplicidade e a liberdade, e que graças à pena, à impressão tipográfica e ao livro chegam a toda a parte no pensamento crítico, livre e libertador do Humanismo.
No fim da obra, depois de provar como todo o cristianismo está cheio de loucura, tão apregoada por S. Paulo, e como ela, enquanto ignorância, é até fonte de misericórdia divina, ergue um hino quase extático à Sabedoria Divina em nós, que é loucura para a sabedoria humana, mas que abre os olhos da alma e a inspira à contemplação do mundo espiritual, da Divindade e do Amor divino.
Hino ao amor que no ser piedoso se identifica com o ser amado, saindo assim de si para o espírito e depois para a mente suprema e omnipotente, realização contemplativa esta que é mais evidente nos estados de graça ou de loucura sábia com que são abençoados os pobres de espírito, os puros de coração, os que se abrem verdadeiramente ao Espírito, ao Amor, tal como os amantes e os místicos ou piedosos, nível em que coroa ou dá o termino do livro. A obra, que começara com uma crítica forte aos defeitos e vícios humanos termina, com a indicação do caminho da loucura divina, da libertação do homem, das cadeias da ignorância e do corpo e da cegueira espiritual, para os estados unitivos com Deus, pelas obras de misericórdia, pela ascese, pela meditação e pelo amor, acessíveis a todos. 
Será publicada com enorme sucesso, primeiro em Paris, por Gilles de Gourmont e Jehan Petit (sem data, mas certamente em 1511), seguindo-se em Agosto de 1511, em Estrasburgo, a edição de Matthew Scheurer, enriquecida com um poema muito significativo, quase que de transmissão de poder, de Sebastian Brant, o autor da Barca dos Loucos. Em Janeiro de 1512 é publicado por Dirk Martens, em Antuérpia, e depois por Josse Bade, em Julho de 1512, de novo em Paris. Receberá importantes acrescentos, até 1516 (e será ainda alterada nas revisões de 1522 e 1532) mas, desde o final de 1514, surgem os ataques, desde Martin Dorp até Alberto Pio, príncipe de Carpi, que durarão toda a vida e aos quais Erasmo responderá certeiramente, ainda que previdentemente dedicara o Encomium Moriae a Thomas More, nomeando-o logo seu advogado, função que este exerceu bem serenamente em relação a Dorp, respondendo com engenho. Mas, apesar desses ataques, a obra como fonte de inspiração e exercício de lucidez, sairá invencível e terá milhares de traduções e imagens, bons  acolhimentos e imitações até aos nossos dias.
A loucura dos caçadores numa edição francesa do séc. XVIII.
Erasmo, entretanto, vai por uns meses a Paris, voltando em 24 de Agosto para Inglaterra, pela quarta vez, onde ensina, a convite de John Fisher, durante três anos no Queen’s College, de Cambridge, teologia e grego, aprofundando tal língua ao traduzir Plutarco, São Basílio e o Novo Testamento. Escreve ainda um diálogo satírico contra o belicoso Júlio II, Julius Exclusus, o Júlio excluído do paraíso, que circulará em manuscrito anonimamente, antes de ser publicado, ainda sem nome, uma dezena de anos mais tarde, e que é, para além de uma crítica ao luxo e imoralidade do papa, um verdadeiro manifesto do pacifismo ou, como se dizia do grego, irenismo.
John Colet...
Publica ainda em 1512, a pedido de John Colet, que fundava a escola da catedral de S. Paulo, um sintético tratado de orientação pedagógica, o De ratione studii, traduzível como o Plano ou ainda o Método de Estudos, fruto das lições dadas há anos em Paris (chegando mesmo a ser impresso sem a sua autorização em 1511), onde expõe uma metodologia de ensino do bem falar, pensar, escrever e viver, adaptada às especificidades dos alunos e baseada na leitura e explicação dos melhores autores antigos e actuais, germinante numa aproximação prática de escrita, primeiro imitativa logo depois criativa. Há claras influências da Institutio Oratoria de Quintiliano. De realçar os aspectos práticos do aconselhamento dos professores quanto aos conteúdos e planos das aulas. A obra, com os outros tratados pedagógicos, terá uma fortuna larga nas escolas inglesas e em muitas europeias, embora frequentemente sem o seu nome.
A guerra europeia, desencadeada de certo modo por Júlio II, força Erasmo a abandonar Inglaterra em Julho de 1514, onde contudo avançara bastante na tradução do Novo Testamento, e a regressar ao continente (sendo então vivamente saudado pelo pré-reformista francês Jacques Lefèvre d’Étaples, por «vir viver na Alemanha entre tipógrafos a fim de fazer beneficiar da sua maravilhosa cultura o maior número de leitores, tal como o Sol que derrama a sua resplandecente luz sobre todos»), passando por Estrasburgo, uma república democrática, onde é muito bem recebido num grupo de estudos humanistas, a sodalidade (sodalitas) de Schelettstadt, onde se destacavam Beatus Rhenanus, Paul Volz, Martin Bucer, Thomas Vogler e Sebastian Brant, o autor da Nave dos Loucos. Será uma paragem reconfortante (ainda hoje a funcionar, pois lá se encontra a casa-museu e biblioteca de Beatus Rhenanus), a caminho de Basileia, onde vai conhecer e entusiasmar-se com o outro grande impressor da época, Johann Froben (1460-1527), a quem morrera o sócio Johann Amerbach (1440-1513).
A casa-museu de Beatus Rhenanus, em Selestat, Alsácia francesa
O acolhimento é mais que caloroso, e é logo introduzido numa santa milícia humanista que durante anos fará brilhar Basileia e os prelos frobenianos, nela se destacando Beatus Rhenanus, que virá a ser o primeiro biógrafo de Erasmo, o teólogo universitário Ludwig Baer, por muitos anos conselheiro de Erasmo, o hebraísta Wolfgang Capito, Johannes Oecolampadius, o ardoroso Ulrich von Hutten e Pirckheimer, além dos artistas Hans Holbein e Albert Dürer. 
Beatos Rhenanus e a sua livraria casa-museu
As obras do sábio, e iniciado nos Mistérios gregos,  Plutarco e alguns textos de Séneca são editados e outros trabalhos manuscritos são entregues, antes de partir na Primavera para a famosa Feira internacional do Livro em Frankfurt (imagine-se a força que tal evento tem ainda hoje...), seguindo depois para Antuérpia, onde convive com Pierre Gilles, conforme Holbein retratará, chegando a Londres no princípio de 1515 em busca de mais manuscritos antigos do Novo Testamento, já que prepara com relativa pressa uma versão crítica moderna.
Erasmo e Pierre Gilles, retratados por Hans Holbein em 1516
Entretanto, em 11 de Março de 1513, o filho de Lorenzo, o Magnífico (1449-1492, o patrono do Humanismo florentino, também ele poeta), Giovanni de Medici, um cardeal humanista, fora eleito papa Leão X. Para Erasmo, a época é de grande esperança que os métodos mais científicos de análise textual e comparativismo sejam aplicados às Escrituras santas, e que a via da concórdia e da Paz reine entre os povos cristãos, conduzidos por um verdadeiro pastor e não um conquistador. Escreve a dois dos cardeais com quem sentiu mais afinidades durante a sua estadia em Roma, Rafael Riario e Domingos Grimani, mostrando o seu desejo de regressar à cidade eterna e colaborar na metanóia, ou seja, na transformação da barca cristã. E em 21 de Maio de 1515 envia ao papa uma carta, saudando-o como o pacificador e restaurador do verdadeiro Cristianismo, e oferecendo às suas bênçãos auspiciosas a edição das Obras completas de S. Jerónimo. A resposta do papa, de Julho de 1515, é positiva, aceitando os seus trabalhos, valorizando, contudo, mais a sua estadia na Inglaterra do que convidando-o a vir para a Itália.
Leão X, um papa florentino e humanista, um Medici.
A carta errará porém mais de um ano até chegar a Erasmo, que continuava em constantes viagens nos Países Baixos, em cidades como Antuérpia, Bruxelas, Burges, Lovaina e Anderlecht, com belos encontros e publicações (donde devemos assinalar as Obras completas de S. Jerónimo («um novo S. Jerónimo»), em nove volumes (quatro dos quais da responsabilidade de Erasmo), dedicadas a Leão X.
No começo de 1516, por sugestão do chanceler do Brabante Jean le Sauvage, Erasmo é nomeado conselheiro na corte do arquiduque Carlos de Habsburgo, o futuro imperador Carlos V, nesse mesmo ano já Carlos I, de Espanha, por morte de Fernando de Aragão, sem filhos. Dedica-lhe então o Institutio Principis Christiani, a Educação do Príncipe Cristão, que se tornará um modelo de educação moderna dos príncipes e governantes, sábios e piedosos, influenciando tanto a educação de vários príncipes como muitas obras de filosofia e moral política europeia e chegando mesmo à Índia dos imperadores mogóis por intermédio dos jesuítas ibéricos.
 Educação do Príncipe Cristão, baseada nos ditos dos sábios e políticos antigos, exprime as suas concepções doutrinárias do governo ideal, destacando-se as regras da honestidade e da honra, o assentimento das populações quanto às grandes decisões, a arbitragem internacional e pela Igreja dos diferendos, o valor primacial de uma boa educação geral e desde criança para se prevenirem muitos dos problemas sociais, a existência de menos leis possíveis, que sejam bem conhecidas de todos, e «que respondam ao arquétipo da honestidade e da equidade, sem outra intenção que o bem comum ser melhor prosseguido». Aliás «todas as leis devem dirigir-se sempre à utilidade pública, não segundo a opinião vulgar mas de acordo com o parâmetro da sabedoria».
Nesse mesmo ano tão fecundo e promissor de 1516, em que também Thomas More dava à luz essa obra-prima que é a Utopia, Erasmo publica finalmente uma versão fidedigna do Novo Testamento em grego, e a sua tradução latina, intitulada significativa e ousadamente Novum Instrumentum, a partir do estudo e tradução de vários manuscritos gregos do Novo Testamento, com o resultado de em muitos aspectos divergir («expusemos mais de 600 passagens que até hoje não tinham sido interpretadas perfeitamente pelos grandes teólogos») da edição oficial, a Vulgata. A obra é publicada com uma extensa dedicatória ao papa Leão X e dois substanciais prefácios intitulado Paraclesis, isto é, Exortação ao estudo da filosofia cristã, e o Methodo, onde exprime o desejo (como foi e é o de Jesus Cristo) que a sua mensagem seja lida, estudada e meditada por todos, do agricultor aos turcos, do pedreiro à meretriz e na língua que entendam, seja a francesa ou a indiana, pois é o espírito de Cristo que vive, respira e fala ainda nela, e por ele podemos renascer para uma vida sábia e piedosa.
A obra, inovadora, liberta dos erros e condicionalismos da versão corrente e assente num maior rigor de hermenêutica textual, ou seja, de estudo filológico e recuperação dos textos mais fidedignos em relação aos originais perdidos, acaba por receber críticas fortes de alguns religiosos, demasiado ortodoxos e farejando heresia tanto nas correcções à tradução do grego para latim da Vulgata como nas explicações e interpretações, muitas  elevadas a níveis mais alegóricos e espirituais, partilhadas nas extensas anotações.
Quanto aos importantes textos introdutórios, na Paraclesis explica que o seu objectivo é ressuscitar o ensinamento de Cristo, libertando-o dos túmulos das cerimónias, da escolástica, da teologia abstracta, para as ruas e para os corações das pessoas pois ele está vivo, respira, fala connosco no texto evangélico, mais do que nas estátuas ou imagens, talvez até mais eficazmente que se estivéssemos ao vivo com ele. Aí escreverá: «a filosofia de Cristo que o próprio Cristo chama um renascimento não é senão a restauração da natureza fundada boa». Já no Método da verdadeira Teologia recomenda tanto a purificação das ambições e vícios, que permitem a alma repousar e no espelho da consciência reflectir-se nitidamente a imagem da verdade eterna, como o estudo profundo e vivencial dos textos, onde Cristo vive e arde, de preferência conhecendo-se as línguas sagradas e aprofundando-se os três ou quatro sentidos de cada texto, o histórico, o tropológico, o alegórico, ou ainda o anagógico, ou seja, discernirmos com rigor tanto o sentido literal como o espiritual.
A um papa florentino naturalmente agradou, como aliás se diz que rira com o Elogio da Loucura, um Novo Testamento mais fidedigno, desempoeirado e interiorizado, pelo que enviou ao «Dilecto filho Erasmo de Roterdão, professor de teologia sagrada», uma carta e elogio «às suas lucubrações» que etimologicamente significam estudos à luz da vela «que o tinham deleitado intensamente», a qual passará nas edições posteriores do Novo Testamento a surgir na portada, talvez como bênção ou salvo-conduto de ortodoxia, bem necessária para a época que se avizinhava. E quando Erasmo pede para ser liberto de certas obrigações eclesiásticas, recebe do papa, em dois breves de Janeiro de 1517, a confirmação do apoio aos seus estudos e obras, para além da dispensa completa de ter de andar com o hábito de canónico regular agostinho e de outras obrigações eclesiásticas, que o impediam de receber, por ter sido um filho ilegítimo, certos benefícios.
John Colet
Desiderius Erasmus, no ponto máximo da sua produtividade e reconhecimento, numa época áurea da humanidade, sente-se finalmente livre para fazer circular a sua mensagem regeneradora ou revivificadora da religiosidade europeia, como lhe era reconhecido pelos mais ilustres pensadores cristãos da época, tal como John Colet (1467-1519), em Junho de 1516 numa carta, a propósito do Novo Testamento e das Paráfrases dos Evangelhos: «Compreendo o que escreveste a propósito do Novo Testamento; regozijo-me actualmente com a luz derramada pelo sol da tua inteligência, para além de admirar a tua fecundidade... Se deres o sentido das Escrituras, o que ninguém pode fazer melhor do que tu, farás um grande benefício à humanidade e tornarás o teu nome imortal...». Colet profetizava, pois as Paráfrases acabariam em 1545 de ser traduzidas em inglês e desde 1547 tornavam-se obrigatórias em todas as paróquias de Inglaterra.
Era verdadeiramente um ano luminoso, pois Thomas More, que se encontrava como embaixador nos Países Baixos, dera à luz a genial Utopia, em Lovaina, no impressor Thierry Maertens, graças aos cuidados de Pierre Gilles, um amigo muito prestável e acolhedor de Erasmo e que lhe publica no mesmo impressor a sua primeira recolha de cartas, que com o tempo muito crescerá, pois Erasmo alargava-se verdadeiramente na correspondência epistolar, um dos principais meios da circulação e apoio mútuo ideológico e afectivo na grande República das Letras (respublica litterarum), que funcionava graças ao latim e à ampla cultura comum aos humanistas e também graças à própria tipografia, que depois as divulgava, abrangendo dinâmica e crescentemente toda a Europa culta.
Na Utopia, o navegador português Rafael Hitlodeu (para alguns, uma máscara ou persona de More ou de Erasmo, embora a curiosidade e admiração pelos Descobrimentos portugueses existisse mais em Thomas More, que lera pelo menos as Quatuor Navigationes, de Américo Vespúcio e as relações de viagens e as cartas comerciais contidas no Itinerarium Portugallensium, literalmente presentes na Utopia, como nos nossos dias provou Luís de Matos), a partir de uma apreciação e crítica serena dos costumes e realidades dos estados de então, em especial da Inglaterra, propõe princípios e medidas, como o de que a virtude é uma vida ordenada de acordo com a natureza, a guerra é antinatural e nociva, ou ainda, que é melhor criar meios de vida para todos do que castigar os ladrões. A humanidade futura desenvolver-se-á assim melhor com a igualdade dos sexos na educação, a obrigatoriedade do trabalho, o desaparecimento do dinheiro e do capitalismo e um culto sereno, racional e livre da Divindade. 
Guillaume Budé e a sua principal obra: Da passagem do Helenismo ao Cristianismo.
A sua influência será enorme nas letras europeias, como reconhecerá desde logo o melhor helenista francês Guillaume Budé, autor da epístola prefácio para a segunda edição, de Paris: «uma cidade suspensa sobre o céu e por cima das torpezas humanas», ou o nosso historiador humanista João de Barros, assinalando na época a sua importância na pedagogia política. Anote-se a recente aparição (2006) em Portugal, graças ao empenho de José V. de Pina Martins (que escrevera antes uma Utopia III, actualizando a original) e de Aires do Nascimento, da primeira tradução (e muito bem introduzida por Pina Martins) do original latino de tão paradigmático quão perene ensaio do pensamento político, social , ético e espiritual da humanidade, publicado pela Fundação Calouste Gulbenkian.
Mas nem todas as personagens em acção na cena do pensamento europeu seguiam ou aceitavam os mesmos princípios de uma reforma pacífica, preparando-se antes algumas para quebrar a unidade, certamente frágil e com contradições, da cristandade. Em 31 de Outubro de 1517, o frade agostinho e doutor em teologia Martinho Lutero (1483-1546) afixa na igreja da corte de Wittenberg as 95 Teses acerca das virtudes das Indulgências, vendidas pela Igreja de Roma, levantando grande celeuma e iniciando-se o movimento da Reforma, uma luta contra certos aspectos da orientação doutrinal, governação prática e domínio dos cristãos pelos concílios e pela Cúria e Papado romano. Erasmo ao tomar conhecimento delas, envia-as para Thomas More em Inglaterra e afirmará que, à parte as considerações sobre o Purgatório, quase toda a gente concordava com a maioria delas.
Instalado desde Agosto de 1517, no Colégio Lys, em Lovaina, Erasmo não parara de viajar, enquanto preparava as suas edições dos antigos padres da Igreja, tentando trazer ao de cima e frutificar o que ele entendia ser a piedade sábia, a religião do espírito, transmitida por Jesus, contribuindo para tal com as suas animadas Paráfrases (ou comentários) às epístolas de S. Paulo e aos Evangelhos, dando-nos uma visão fresca e viva de Jesus («onde a palavra do céu vive e respira ainda»), acessível a todos (desde a mulher simples ao sarraceno), e baseada nas obras e doutrinações mais genuínas do cristianismo, como são as dos primeiros padres da Igreja.
Simultaneamente, trabalha na 2ª edição do Novo Testamento, já que a primeira tinha sido levado a cabo um pouco sob pressão e algumas correcções e anotações eram necessárias. Lembremos-nos que na edição do Novo Testamento, em grego e latim, mais de metade do espaço era ocupado pelas anotações de Erasmo. E responde a algumas críticas que lhe são dirigidas, quer a propósito dessa sua tradução, quer do caso de Johann Reuchlin, um humanista de valor (um dos poucos trilingues), estudioso da sabedoria pitagórica e da cabala  como fontes de aprofundamento dos arcanos do cristianismo e por isso fortemente atacado por alguns «homens obscuros», desde que publicara em 1494 em Basileia, na oficina de Amerbach e de Froben, o De Verbo Mirifico, acerca dos mistérios e poderes dos nomes e palavras sagradas, nomeadamente na língua hebraica.
Até a Portugal chegarão estas especulações de Reuchlin, não só referidas entre outros por Jorge Ferreira de Vasconcelos, no prefácio à sua Eufrosina, como por D. Francisco Manuel de Melo, no seu Tratado da Ciência Cabala, (só publicado em 1724), como visíveis na «perturbante marca tipográfica» quinhentista de Valentim Fernandes, conforme as investigações recentes dos especialistas do começo da tipografia portuguesa Artur Anselmo e Maria Valentina Sul Mendes, na qual, segundo a investigadora, o pentagrama ISVWH, unifica o nome de Jesus (IHSVH ou IHSUH) com o tetragrama do nome de Deus (IHVH), ao ser-lhe acrescentado a consonante S, que o torna pronunciável. Era a magia da Palavra mirífica, investigada por Ficino e Pico, Agripa e Reuchlin mas que Erasmo não considerará tão necessária, sobretudo com tanto cabalismo, para se chegar a uma vida piedosa, aquela da boa relação com o Divino e com os seres humanos, tal como aliás John Colet pensava também. Defenderá, todavia, Reuchlin que fora o autor (em 1506) do primeiro dicionário e da primeira gramática hebraica impressa, e consagrá-lo-á, após a sua morte inesperada, num dos Colóquios, intitulado a Apoteose de Capnion.
Quando em Agosto de 1517 morre em Bordéus, a caminho da península Ibérica, o seu amigo Jerónimo de Busleiden, conselheiro de Carlos V, humanista e mecenas, dele se dizendo que o seu «santuário (em Melines, onde recebera em 1515 Thomas More) estava aberto a todos os homens instruídos. Era lá que ele comunicava incessantemente com numerosos visitantes, animados como ele do amor sincero pelos bons estudos; era de lá que mantinha com Erasmo uma correspondência epistolar que era uma troca de visões elevadas e de projectos nobres», o quase sempre desprovido de meios Erasmo recebe um legado providencial para fundar um colégio trilingue.
O colégio seria um local dedicado ao estudo das boas ou belas letras, onde se ensinarão as três línguas indispensáveis aos estudos humanistas e religiosos, o hebreu, o grego e o latim. Até ao fim da sua vida Erasmo dedicará grande amor e diplomacia para manter viva esta instituição de avançada pedagogia e sábias intenções e que, apesar dos muitos ataques de alguns dos professores da Universidade de Lovaina, sobreviverá até ao séc. XVIII. Será em 1528 imitado na península ibérica com a fundação do Colégio Trilingue de San Ildefonso, associado à universidade Alcalá de Henares, por um grupo dinâmico de erasmistas, seguindo-se em Paris, o Collège de France, ainda hoje existente, o Corpus Christi em Cambridge, e ainda outro em Wittenberg, a capital da Saxónia.
    Para o colégio trilingue de Lovaina atrairá colaboradores notáveis, entre os quais Rescius e Konrad Goclenius (1485-1539), de quem dirá «o juízo de Goclenius é penetrante; seu saber, pouco comum; seu zelo, infatigável; seu espírito, de escol; suas maneiras, urbanas; sua palavra, exacta, e tem, além disso, a experiência das coisas da vida que falta, normalmente, aos homens dedicados ao estudo». Tanto um como outro enviarão ao longo dos anos jovens ou homens, para trabalharem e viverem com Erasmo, mestre exigente mas também afectivo, constituindo a sua família de ajudantes, os fâmulos, empregados, mensageiros e secretários, ascendendo depois muitos deles, graças a tal formação e protecção humanista, a postos importantes. E receberá também alguns 
O humanista português André de Resende conviverá com Rescius e Konrad, em 1528 e 1529, entrando no círculo dos erasmianos e ganhando forças para pregar uma partida na noite do solstício do Inverno de 1531 a um dos perseguidores de Erasmo, o legado papal Girolamo Aleandro. E assim representam, na Embaixada de Portugal, diante dele e do Imperador e a corte uma peça de Gil Vicente, o Jubileu dos Amores, com tantas críticas irónicas às indulgências e excomunhões que «todos riram tanto que parecia que todo o mundo se desfazia em júbilo. A mim contudo estalava-se o coração. Julgava achar-me dentro da Saxónia e ouvir Lutero ou estar no meio dos horrores do Saque de Roma». Assim escrevia uns dias depois ao papa descrevendo essa «sátira manifesta contra Roma, e punha os pontos nos ii (designando as coisas claramente): que de Roma e do papa não vinham senão traficâncias de indulgências...». Anote-se que a presença de Damião de Góis, grande amigo de Erasmo, a este evento poderá não ser alheia a algumas das perseguições de que será vítima posteriormente por parte dos jesuítas e dos mais ortodoxos.
Em Dezembro de 1517, a pedido da tendência pacifista (nomeadamente do chanceler Jean Le Sauvage) na corte de imperial, onde Erasmo é um conselheiro, publica no seu amigo Froben um tratado político em defesa da concórdia e da não-violência, a Querela Pacis undique gentium ejectae profligataeque, a Lamentação da Paz, onde condena a guerra, em especial entre os príncipes cristãos e o próprio papado, e desmascara as suas motivações ímpias, propondo vários meios de se a evitar e demonstrando como a Natureza, possuidora do sentido de paz e de harmonia, da pedra ao pessegueiro que se dá bem com a vinha, ou com «os golfinhos que se protegem com serviços recíprocos», predispôs para o amor e a unidade a Humanidade (que significa mútua boa vontade) mas que, corrompida  por paixões infames, acaba por utilizar mal «o poder racional e a intuição divina com que está presenteada». A paz dada por Cristo aos cristãos por quantos é mantida viva? E tal como no Elogio da Loucura, mostra-nos a Paz a discursar e a perguntar libertadoramente: «Não ensina a concórdia a oração do Senhor? Como podereis vós dizer Pai Nosso, se mergulhais o aço na garganta do vosso irmão?»
Em 1517 e 1518, as exigências de Roma de mais impostos, bem como a venda das indulgências (muitas vezes extorquidas), sob o pretexto de ser necessário mais dinheiro para as construções pontificais e para a luta contra os turcos, começam a incendiar os Estados Alemães e Erasmo não pode deixar de concordar que se trata de um embuste para sustentar a vida luxuosa da cúria romana, que «está a perder todo o pudor», chegando mesmo a dizer: «a dominação dos turcos será mais tolerável que a dos cristãos». Numa carta de 13 de Março de 1518 ao sábio Beatus Rhenanus, exclama lucidamente: «constato que chegamos de facto à tirania. O papa e os reis tomam o povo não como seres humanos mas como rebanhos que se compram». Assim à cupidez e à degenerescência dos costumes, da moral e do ânimo cristão assaca Erasmo as culpas da crescente contestação de Lutero.
Mas continua a trabalhar e publica a sua edição dos Colóquios, em 1518, corrigindo as não autorizadas anteriores, escreve o prefácio a uma nova edição do Manual do cavaleiro cristão e dá à luz em 1519 a 2ª edição do Novo Testamento, que de novo recebe os cumprimentos do papa, considerando-a «um elemento muito benfazejo para a teologia e a fé ortodoxa». Erasmus, contudo, não está contra muitas das teses de Lutero e muito menos apoia outras armas da Igreja que as da fé, da palavra e do exemplo, como aliás ensinavam os primeiros padres ou teólogos da Igreja, na esteira do caminho estreito de Jesus. O Deus dos cristãos não pode ser bélico. O Deus dos Exércitos, como se denominava no Antigo Testamento, é o das virtudes, as dunamei, as potências ou potestades angélicas. E quem é morto são os nossos defeitos. E quanto aos controversos cultos a Nossa Senhora e aos santos, que eles não sejam tanto por ritos exteriores e interesseiramente mas pela imitação das suas qualidades interiores.
Em 30 de Maio de 1519 a carta resposta de Erasmo, ao convite de Lutero para se unir a ele na Reforma, é negativa (embora tivesse escrito antes ao príncipe Frederico da Saxónia e ao Arcebispo de Mogúncia no sentido de o protegerem), pois a sua via é a dos estudos e da concórdia, privilegiando a paz na Igreja católica ou universal, denominando-se irenismo (do grego eirene, paz) a esta posição doutrinária, a partir da qual aconselha Lutero a pregar a doutrina evangélica com grande doçura e a seguir o diálogo pacífico. Por outro lado, exercendo o seu fino discernimento dos espíritos, não está certo nem fica convencido da inspiração divina de Lutero, nem dos métodos violentos empregados, pelo que recomenda ao impressor Froben não lhe editar as obras. E vai trabalhando em Lovaina, embora num ambiente cada vez mais difícil pelo extremar de posições, nas edições comentadas dos principais padres da Igreja.
Nesse mesmo ano de 1519, quando Huldrych Zwinglio o convida em nome da cidade de Zurique a estabelecer-se lá, responde com uma frase (traduzida em diversas versões...) que se tornará paradigmática da universalidade do humanista e espiritualista de outrora e de sempre: «Agradeço sumamente o teu afecto e o da tua cidade por mim. Desejo ser cidadão do mundo, imparcial com todos, ou mesmo mais sendo  um peregrino».                                              

Biografia de Erasmo de Roterdão, 1º parte, por Pedro Teixeira da Mota. Publicada no "Modo de Orar a Deus" e algo ampliada...

Neste 12 de Julho, dia em que Erasmo em 1536 partiu do seu corpo físico, começamos a partilhar  uma biografia que escrevi para o Modo de Orar a Deus, impresso nas Publicações Maitreya, levemente ampliada. 
                                                      Biografia de ERASMO DE ROTERDÃO
                                                        1ª parte, de 1469 a 1505.
O nascimento do fino e arguto Erasmo, aliás Desiderius Erasmus Roterodamus, ainda hoje continua um mistério, pois não se sabe se terá nascido em 28 de Outubro de 1467 ou de 1469 ( sendo este o ano mais provável), embora se conheça o local: Roterdão, nos Países Baixos, hoje a Holanda. De igual modo pouco se sabe acerca do seu pai, Gerard, um jovem religioso itinerante, sendo este o seu segundo filho, e acerca de sua mãe, Margareta Brandt. Deram-lhe o nome de Erasmo, um santo popular na região, mas que também quer dizer em grego, amado. Já Desidério é um acrescento posterior voluntário e significativo dele próprio, pois quer dizer desejo, prazer, talvez na aspiração a ser amado da Divindade e quem sabe preservando alguma individualidade desiderativa...
Foi educado pela mãe em casa da avó materna, frequentando a escola de Gouda desde os quatro anos, em seguida a da catedral de Utrech, onde foi menino do coro e, desde 1478, a de S. Lebuíno, em Deventer (Sete Montes), esta última de um grupo cristão então importante, os Irmãos da Vida Comum (ou Simples), nascido em meados do séc. XIV, da acção de Geert Groot (1340-1384), um amigo do famoso místico, nascido perto de Bruxelas, Ruysbroeck.
Dada a influência deste grupo no movimento da pré-reforma da Cristandade, bem como no humanismo de Erasmo e do norte da Europa, mais corporativo e prático, na combinação da fé, moral e obras, do que o humanismo pioneiro da Itália, mais aberto ao singular estudo e concórdia de todas as tradições culturais e religiosas, deter-nos-emos um pouco nele, tanto mais que foi um dos muitos fermentos da passagem da Europa medieval para o Renascimento e a Modernidade
Geert Groot, natural de Deventer, doutorou-se em Artes em Paris e aprofundou estudos e a prática de medicina e astronomia, magia e teologia. Desenvolveu uma grande paixão pelos livros antigos, procurando manuscritos, fazendo-os copiar e emprestando-os. Em 1374 converteu-se pela acção de Aeger, prior de um convento dos Cartuxos e, depois de doar os seus bens e oferecer a sua morada para uma casa de Irmãs, com a vida em comum, partiu para uma via de interioridade e desprendimento. Em 1377 conheceu o sacerdote e notável místico Jan van Ruysbroeck, a quem visitou várias vezes, inebriando-se na ardência espiritual que ele, então com 84 anos, depois de ter escrito em holandês alguns tratados, tal como as famosas Núpcias Espirituais, reveladores do alto grau de união a Deus a que chegara, transmitia no seu convento agostinho nos bosques, tão frequentados pelos eremitas, de Groenendael (onde o místico Taulero também esteve) mostrando como era possível um coração abrir-se à luz e ao amor divino, ou, como Erasmo dirá na Instituição do Matrimónio Cristão, «o Espírito santo habitar no coração das pessoas devotas».
Ordenou-se Geert Groot diácono em 1379 para pregar e reformar a religião cristã, o que fez estimulando a virtude e a oração, e criticando os clérigos dissolutos, os heréticos e o excesso de mendicantes em vez de apóstolos. Um dos seus amigos e discípulos, o sacerdote Florens Radewijns, propôs em 1381 que se juntassem os copistas (de manuscritos) e colaboradores numa casa comum e deste modo ficaram mais protegidos os Irmãos da vida comum, nome este designando em especial, na linha de Ruysbroeck, tanto a comunidade de bens como o facto da realização contemplativa ser partilhada, tornada comum, na vida activa.
Morrendo Geert Groot em 1384, Florens funda, em 1387, uma congregação de Canónicos regulares de S. Agostinho, cuja primeira abadia é em Windesheim, e que chegará a ter mais de cem casas irradiando por toda a Europa graças à sua piedade moderna, ou seja, autêntica e activa, sem superstições, assente na oração, nos Evangelhos e na caridade de Cristo vivo, acessível a todos, fermento de renovação das almas.
Livro de Horas que pertenceu a Geert Groot
Nas suas obras devocionais, Groot cita os clássicos antigos e, em especial, os mais religiosos, Séneca e Cícero. Critica a escolástica, o sistema teológico da época demasiado baseado na arte da disputa, de sentenças e proposições abstractas, e valoriza a realização interior dos simples, que pela fé, a pureza e a oração conseguem receber a graça santificadora e libertadora. Assim, os irmãos e cónegos vão aliar ao culto das letras humanas uma ligação afectiva e interior com Jesus, o regresso à pureza do cristianismo primitivo e um trabalho social de assistência aos desvalidos e de ensino às crianças, nessa época a serem acolhidas assim nas primeiras escolas públicas abertas a todos, numa vida simples, de humildade e de partilha.
Chamou-se Devotio moderna a este movimento porque, em contraste com a devoção anterior, muito condicionada pela armadura especulativa e escolástica, tão dependente das autoridades e sentenças, libertou a condição de religioso e a metodologia da oração e da meditação de várias dessas peias limitantes, aprofundando o sentido vivencial interior, renovando-o e incarnando-o num modo de vida ao serviço de Deus e da comunidade, pois a caridade dinâmica com o próximo era a principal prova do amor a Deus.
A orientação dos Irmãos da Vida Comum, laicos ou religiosos, ao tempo de Erasmo tinha já duas linhas: a que pouco valorizava ou mesmo desdenhava dos estudos clássicos, poesia e filosofia, mormente dos autores pré-cristãos, e a linha mais avançada que privilegiava a interioridade espiritual ou mística mas acompanhada ou fortalecida pela cultura e sabedoria antiga, e que teve mestres como os humanistas Rudolfo Agricola e Alexandre Hegius, com milhares de alunos.
A obra que circulará mais por toda a Europa foi a Imitação de Jesus, escrita por Thomas von Kempis, discípulo de Florens Radewinjs, um diálogo pleno de humildade, submissão e devoção amorosa, mas de qualquer modo propondo a imitação de Jesus, o que era até ousado para a época. Houve mais irmãos a distinguirem-se na literatura de espiritualidade, como Gerlac Peters, também discípulo de Florens, autor de um valioso Soliloque Enflammé avec Dieu, pour rapeller son esprit de ses dissipations et le ramener vers le bien unique et suprême, Geert Zerbolt de Zutphen, autor das Ascensões Espirituais, e Jean Wessel Gansfort, que ensinou o método da escada meditatória onde, em relação à comunhão, afirmava ousadamente a presença de Cristo em qualquer pessoa que o invocasse sincera e merecidamente, numa linha já próxima da justificação ou salvação sobretudo pela fé e pela graça. Queria aprender o hebreu, valorizava os estudos bíblicos e morreu em 1499, pelo que Erasmo poderá tê-lo conhecido ou recebido algumas forças anímicas dele.
Os anos em que o jovenzinho Desiderius desabrochou para a inteligência num meio como Deventer, um grande centro cultural e do começo da tipografia, onde se publicaram cerca de 450 “incunábulos”, ou seja, livros do berço (cuna) ou início da tipografia (o que se considera ir até 1500), devem ter sido determinantes na sua vida e seria interessante sabermos quando terá, pela primeira vez, espreitado ou entrado numa oficina tipográfica a funcionar, com todo o entusiasmo que o dar à luz os filhos do espírito gera em todos os que participam ou presenciam, ouvem e cheiram, e o que sentiram os seus sentidos interiores e alma, ele que viria a ser um dos primeiros escritores europeus a fazer a sua vida e fortuna nas obras das tipografias...
Teve então a felicidade de contactar os humanistas Jan Synthen, Alexander Hegius (1433-1498), director do colégio de St. Libuíno, bem como o seu mestre, que admirou, como se lerá num dos Adágios (Canis in balneo), Rudolph Agricola (1442-1495), discípulo do notável místico e matemático Nicolau de Cusa, pioneiro no norte da Europa do aprofundamento da tradição greco-latina unida ao Cristianismo que caracterizava o Humanismo, recebido ou aprendido na Itália durante onze anos, destacando-se Agricola como renovador da dialéctica e da retórica, ao empregá-las no estudo da poesia e da literatura (nomeadamente no De inventione dialectica, estudado e divulgado por Erasmo, tornando-se mesmo, com uma obra congénere de Lorenzo Valla, a nova metodologia então adoptada pelo ensino mais humanista). Rudolfo Agricola terá até um dia, lendo uma composição premiada de Erasmo, então com 14 anos, e encarando-o demoradamente, profetizado que viria a ser um grande homem, como nos refere Pierre Bayle no seu Dictionaire Historique et Critique, embora haja também a versão do humanista Beatus Rhenanus de que teria sido outro professor, Jan Synthen...
Até 1483, aprende nessa escola perto de Roterdão, onde certamente foi bem impulsionado no desabrochar do seu génio literário. Mas, depois, com a morte dos pais, numa epidemia de peste, em 1484, os tutores forçam-no a partir para a escola dos pobres (domus pauperium) de Hertogenbosh (a cidade onde viveu até 1516 o misterioso pintor Jerónimo Bosh), também dos Irmãos da Vida Comum, mas que, já sem abertura humanista e antes pelo contrário muito na linha da humildade, da penitência e do afastamento do mundo e da cultura não religiosa, atrasaria de certo modo durante três anos o seu desabrochar cultural, como ele próprio dirá.
Em 1487, com dezoito anos, algo forçado pelas circunstâncias e alguma pressão dos Irmãos, pelo pudor ou temperamento tímido e pelas febres («desde a minha infância tive sempre um corpo frágil, de uma textura muito pouca densa, como os médicos dizem, facilmente exposto às agruras climáticas»), aceita ingressar no convento dos cónegos regulares de S. Agostinho, em Emaús, Steyn, perto de Gouda, ligado aos Irmãos da Vida Comum e à devotio moderna, pronunciando os votos de religioso no ano seguinte. Pode aí, apesar das tarefas e horários da regra de vida comunitária, dedicar-se à leitura e ao estudo dos autores clássicos (Virgílio, Horácio, Ovídio, Juvenal, Séneca e Cícero, cujo livro De Officiis, Os Deveres, sempre valorizará) e até dos humanistas italianos (como Lorenzo Valla, Enea Silvio Piccolomini, Guarino de Verona e Poggio), para além de cultivar, como era então moda, o amor ou a amizade ideal na forma epistolar, com alguns amigos mais íntimos animados do mesmo zelo estudioso, tornando o convento num foco de estudo das letras antigas e humanas e não só divinas e cristãs, numa espécie de comunidade ideal dos cultores das letras e das virtudes, ou seja, uma República Literária.
É ordenado sacerdote em 25 de Abril de 1492 por David da Borgonha, arcebispo de Utreque, começando a redigir então o seu primeiro livro De contemptu mundi, Do menosprezo do mundo, na linha do De vita solitaria de Petrarca (1304-1374, autor com quem se considera começar o Humanismo, sincrónico com a vinda de vários gregos para Florença). Neste ensaio demonstra, com grande cópia de citações da tradição pré-cristã, de Pitágoras às fabulosas Sibilas, como o desprezo dos bens mundanos, ilusórios e fugazes é natural em quem segue o caminho da sabedoria, e como o caminho da felicidade consiste sobretudo na visão do mundo espiritual e divino, para a qual o estudo e a contemplação sossegada da sabedoria antiga e da cristã são o melhor meio.
Neste sentido afirmará «os pagãos que só conheciam a luz da Natureza não estavam na escuridão mas eram iluminados pelos raios que brilhavam da luz imortal e nós podemos usá-los como escadas. Porque aquele que tenta escalar as ameias do céu cai no desagrado de Deus, mas o que sobe degrau a degrau não será derrubado». Na parte final, fazendo de advogado do diabo da causa que defendera tão persuasivamente, tenta dissuadir os que pensariam que só num convento se pode atingir tal estado, tanto mais que na época muitos entravam por pressões familiares, emocionais, reactivas e pouco fundamentadas numa verdadeira vocação...
Num ambiente propício ao estudo mas também eriçado pelas barreiras dos cerimonialismos, costumes e ignorância, Erasmo sente fortemente as limitações da vida monástica, tanto mais que o prelado superior, assustado com o desabrochar humanístico de alguns membros da comunidade, o proibira de estudar e de escrever nessa linha. Este Antibarbarorum liber primum, o Antibárbaros, só será publicado e bastante corrigido mais tarde, em 1520, em Basileia, constituindo uma crítica aos que se opunham aos estudos seculares, um repto contra a ignorância e preguiça intelectual dos fechados na escolástica das discussões e deduções, dos baseados em dados pouco exactos ou falsas alegorizações, ou, ainda, dos que não queriam subir degrau a degrau a escada do aperfeiçoamento pela combinação da erudição e elegância humanista com a devoção e a revelação, e não queriam aceitar o acordo possível entre as letras profanas e as sagradas, entre a cultura pagã e a cristã, algo que, pelo contrário, caracterizava a comunidade das letras ou a Respublica Litterarum.
Aí ousará questionar certas verdades: «Dizes-me que não devíamos ler Virgílio porque está no inferno. Achas que muitos cristãos, cujas obras lemos, não estão no Inferno? Não nos compete discutir se os pagãos antes de Cristo não foram condenados. Mas, se me autorizarem a raciocinar, ou eles estão salvos, ou ninguém se salva». 
Ao seu lado defendendo a causa da união entre as belas letras e as letras divinas, entre a piedade e a cultura elegante, estão sobretudo S. Agostinho e S. Jerónimo, e também os padres da igreja helenistas Basílio e Crisóstomo. E escreve ainda uma Vida de S. Jerónimo, um exemplo para muitos humanistas e pintores que trabalharam esse santo e doutor da Igreja, de quem transcrevera todas as cartas, num trabalho paciente de copista de manuscritos, valorizando a separação ou o retiro em relação ao mundo dos bárbaros, para que, na quietude, as fontes da Sabedoria eterna manem e ressuscitem.
     A sua intensa dedicação ao estudo, a qualidade do seu domínio do latim e da sua inteligência e talvez o seu desassossego aspiracional, levam o abade Wernar a sugerir ao bispo de Cambrai, Hendrik van Bergen, a convidá-lo para seu secretário, e assim Erasmus parte em meados de 1492, com autorização do abade do seu mosteiro de Steyn, acompanhando-o durante cerca de dois anos pelos Países Baixos (Holanda, Bélgica e Flandres). Gorada a hipótese do bispo se tornar cardeal, é autorizado em 1495 a aperfeiçoar os estudos, ou a doutorar-se mesmo, na Universidade de Paris.
Erasmo inicia-se então na vida errante de peregrino independente do conhecimento, partindo para Paris e inscrevendo-se como estudante pobre no colégio de Montaigu, do qual, anos mais tarde num dos Colóquios, intitulado a A refeição de Peixe, retrata o fanatismo idealista e ascético que o regia, e por onde ainda passarão Rabelais ou S. Inácio de Loiola.
Este colégio era então dirigido por Iohann Standonck que, tal como Erasmo, aprendera numa escola dos Irmãos da Vida Comum, tendo-se, após um percurso árduo, doutorado na Sorbonne, a famosa universidade parisiense, onde chegou a ensinar. Animado de grande entusiasmo religioso e ascetismo (mas por vezes roçando a humilhação exagerada dos seus alunos), quis ajudar a reforma dos costumes do clero e fez vir expressamente da então grande abadia de Windesheim, tanto Jean Mombaer, autor do Rosetum Exercitiorum Spiritualium, de 1501, um livro devocional importante e pioneiro, como um amigo de Erasmo, Cornelius Gerard, criando-se um grupo de reforma cristã no qual o jovem Erasmo também participou e com cujos membros se foi correspondendo.
Não se sentia, porém, nada bem com a salubridade do alojamento, nem com as condições gerais mortificantes e pouco favoráveis aos estudos das letras humanas, nem com a parca (só se comia depois das 11 horas da manhã) e má alimentação, à base de ovos já estragados e peixe, que Erasmo, de saúde frágil, pouco apreciava.
Também as temíveis epidemias mortíferas repetiam-se, pelo que não se deteve no Colégio muito tempo, voltando à Holanda para estar de novo com o seu patrono, e regressar ao mosteiro de Steyn. Aí decide, apoiado pelo bispo, hospedar-se numa casa particular em Paris, onde regressa em Setembro de 1496, podendo agora mais facilmente escrever poesia, estudar e, como estava sem dinheiro, receber alunos, logo atraídos pela sua inteligência e ironia, afabilidade e idealismo evangélico.
Para eles, ou impulsionado por eles, escreverá alguns manuais de aprendizagem humanista, que se tornarão mais tarde tanto o De conscribendis epistolis, Como redigir cartas, publicado em 1521, segundo os exemplos dos grandes escritores, o De ratione studii, Da metodologia do estudo, publicado em 1512, e o De duplici copia verborum ac rerum, Da dupla abundância de palavras e de ideias, publicado em 1511 e dedicado ao sábio inglês John Colet, e que era quase um manual de retórica, a arte de bem escrever e persuadir. E vai redigindo os futuros Colóquios, então como Fórmulas para conversas familiares, em que a par do ensino de etimologias, regras gramaticais e um bom pecúlio de frases e provérbios clássicos, há um claro intento de diálogo socrático de auto-conhecimento e transformação bem como de crítica social e civilizacional. Será das obras com mais impacto e sucesso, ainda hoje nos fazendo rir, instruindo...
Convive entretanto com os outros cultores das letras antigas, em especial com um dos pioneiros do Humanismo italiano em França, Robert Gaguin, um trinitário flamengo, fundador da tipografia na Universidade da Sorbonne, deão da Faculdade de Decretos, diplomata, que estivera em Itália, nomeadamente na Academia platónica florentina, e era amigo do genial Pico della Mirandola (que convivera com ele em Paris, em 1485, e de quem traduzira uma importante carta em 1498, que Erasmo terá conhecido). Gaguin aconselha-o literariamente e publica-lhe a sua primeira poesia, o género que Erasmo na época mais cultivava, embora mais erudita ou intelectualmente do que sentidamente. Mas também conviverá muito com o poeta italiano Fausto Andrelini, irreverente e da sua idade.
Lefèvre d'Étaples (1455-1536). 
 
Dos outros conhecimentos destacamos tanto Jean Mombaer (formado como ele nos Irmãos da Vida Comum, e autor do tal texto de meditações e exercícios espirituais que influenciará o fundador dos jesuítas, S. Inácio de Loiola), como o teólogo e reformista Lefèvre d’ Étaples, que fora mesmo a Itália na busca do conhecimento. Lefèvre unia o estudo da ciência (matemática, geometria, lógica) ao misticismo (em 1499 publicara uma tradução comentada da obra do pseudo-Dionísio Areopagita, e mais tarde de Ricardo de São Victor, Ruysbroeck e Nicolau de Cusa), valorizando o bom honesto, o silêncio meditativo e a adesão ao Espírito pela leitura e divulgação dos Evangelhos. Poderá ter provocado em Erasmo um maior interesse no estudo dos textos sagrados originais, desiludido como este estava do ensinamento escolástico reinante então na Universidade e no meio teológico parisiense, e cuja excessiva ortodoxia o fizeram mesmo profeticamente recear vir algum dia a ser condenado como herético (como de facto veio a suceder, ao censurarem partes da sua tradução dos Evangelhos e algumas posições ou proposições religiosas em vários dos seus livros, ou mesmo no seu todo). O sonho de uma viagem à Itália acalenta-o e tenta arranjar patrocínios mecenáticos, mas não consegue, apesar das cartas e insistência.
Um dos seus alunos, William Blount, o futuro conde de Mountjoy, convida-o entretanto a partir para Inglaterra no Verão de 1499, onde conhece e se torna muito amigo dos primeiros humanistas ingleses Thomas More, John Colet, Thomas Linacre e William Grocyn, tendo estes três últimos ido mesmo acender a vela na fonte do Humanismo, a Itália, e mostrando-lhe as suas insuficiências na língua e na cultura helénica, o que o levou a começar desde logo a aprendê-la com Grocyn.
John Colet (1466-1519), que regressara de Itália em 1496, explicava então em Oxford as Epístolas de S. Paulo com grande profundidade e misticismo. Erasmo dirá mais tarde numa carta «que lhe parecia então ouvir o próprio Platão», pois Colet estava bem por dentro da teologia platónica e neoplatónica, através do pseudo-Dionísio Areopagita, e dos pioneiros do platonismo florentino, Marsilio Ficino e Pico della Mirandola, que cita e comenta.
Por todas estas experiências dá-se em Erasmo uma intensificação da consciencialização do valor da imanência divina e da combinação da mensagem de Cristo, enquanto auto-conhecimento, ligação ao Pai ou Divindade e à caridade, com o amor à sabedoria e literatura antiga ou pagã, sobretudo transmitida com pureza e elegância de estilo, impulsionando-o numa senda de estudo crítico e livre das fontes sagradas antigas, em especial dos Evangelhos.
          Em 1500 regressa ao continente, sem não deixar de ser desapropriado do dinheiro ganho, ao atravessar a fronteira inglesa, como narrará ironicamente em cartas mas mesmo assim prosseguindo cheio de força e entusiasmo graças à fermentante combinação dos ensinamentos de Jesus com os estudos humanistas de raiz clássica, platónica e neoplatónica, e vindo decidido antes de mais a aprofundar o estudo de grego, indispensável à leitura dos manuscritos antigos dos Evangelhos, ou dos primitivos Padres da Igreja bem como dos autores antigos greco-latinos.
Publica nesse ano de 1500 em Paris a primeira edição da Adagiorum Collectanea, dedicada a Mountjoy, onde colige 800 adágios e provérbios da sabedoria antiga, de vários autores, nomeadamente do sacerdote e iniciado Plutarco, com grande sucesso, e até uns meses antes de morrer estará sempre acrescentando e corrigindo aquele que se torna o livro de referência da sabedoria greco-latina e humanista, um verdadeiro manual, tanto nas escolas (sobretudo na forma abreviada, o Epítome, desde 1521) como nas pessoas cada vez mais despertas para a cultura, uma obra que assentando em exemplos antigos é completada com reflexões ou críticas irónicas de factos e mentalidades actuais. Será talvez a obra geradora de maior número de exemplares no século XVI, com mais de cento e vinte edições. 
E em 1501 publica a sua primeira edição anotada de um texto da sabedoria antiga, o De Officiis, Sobre os Deveres, de Cícero, autor romano muito valorizado durante toda a sua vida, inaugurando assim a sua longa carreira de filólogo e comentador de autores clássicos e patrísticos (dos primeiros Padres da Igreja), que se enquadra bem na sua missão de restaurador da filosofia perene ou crística, piedosa (face a tanto dogmatismo e violência) e libertadora (face a tanta ignorância e superstição).
Viaja bastante entre Paris, Steyn (onde lhe concedem mais um ano de itinerância estudantil) e Saint-Omer, onde convive no Outono de 1501 com o guardião franciscano Jean Vitrier, um homem «cheio de ardor pela piedade», entrando quase em êxtase nos sermões e fazendo-o sentir aos ouvintes, como descreverá mais tarde no seu extenso e profundo elogio, e que era grande adepto de S. Paulo e de Orígenes, tendo confidenciado acerca deste a Erasmo: «não é possível que o Espírito Santo não tivesse habitado esse peito donde saíram tantos livros sábios, redigidos com tanto ardor». Este amor a Orígenes e à sua sabedoria é significativo, até pelo seu aspecto corajoso, pois uma das treze, das 900 Teses propostas por Pico della Mirandola nas suas Conclusiones para serem discutidas em Roma com qualquer teólogo, consideradas heréticas pelo papa e uma comissão, afirmava: «é mais racional crer que Orígenes está salvo, de que crer que ele esteja condenado (dannatum)».
Vitrier, um sábio e místico, ou um espiritual, vai impulsioná-lo na busca das verdadeiras bases do cristianismo em espírito e em verdade, ou seja, dos sentidos mais profundos e transformadores dos Evangelhos, através do estudo, meditação e publicação dos primeiros padres da Igreja, sobretudo os que receberam ou aceitaram mais a cultura ou paideia grega (e nesse sentido os mais próximos do Humanismo), e que valorizaram também os sentidos místicos e alegóricos na interpretação dos textos: antes de mais Orígenes (185-254), e depois Clemente de Alexandria (m. 212), Cipriano (m. 258) Ambrósio (333-397), Crisóstomo (347-407), S. Jerónimo (m. 419) e S. Agostinho (354-430), a maior parte deles vindo a ser publicados e comentados ou anotados por Erasmo. É possível que tenha sido deste contacto com Vitrier, com as suas Homilias sobre os Evangelhos, e através dele com Orígenes, que começaram a germinar em si as futuras Paráfrases aos Evangelhos, e antes de mais o Enchiridion.
Começa então de facto a redigir o Enchiridion militis Christiani, o Manual do cavaleiro Cristão, repleto de salubérrimos preceitos ou, se quisermos ainda, o Manual do militante Cristão, ou do soldado Cristão, para indicar a rota da virtude que leva à tranquilidade da alma, que sairá em 1503, no meio da Lucubratiunculae,  Miscelânea, ou seja, várias pequenas obras ou lucubrações de carácter religioso e ético, impressa em Antuérpia (que continha uma oração a Maria, mãe de Jesus e outra ao seu filho), e onde expõe a sua concepção da filosofia de Cristo, uma designação dos primeiros Padres da Igreja mas desafiante já que a filosofia e a essência do ensinamento de Cristo estavam soterradas pela pesada e indigesta escolástica medieval (discutindo interminavelmente sentenças e dogmas tão abstractos), e pelo excessivo cerimonialismo, de tal modo que pouco se conseguia viver e transmitir do espírito de Jesus Cristo e da sabedoria amorosa e libertadora que ele encarnara e suscitava.
Serão os pioneiros como Lorenzo Valla, Pico della Mirandola, Erasmo, Lefèvre d’ Etaples, John Colet, John Fisher e Thomas More que vão tentar impulsionar o despertar crítico e espiritual da humanidade, através de uma melhor preparação cultural e moral, através do retorno ou recurso à teologia patrística, em substituição das sumas e sentenças escolásticas, e através de um olhar mais penetrante e livre sobre os textos antigos, a par de uma vida piedosa e misericordiosa.
Daí o esforço e a dedicação de Erasmo ao estudo científico filológico e comparativo dos textos antigos e das escrituras sagradas, no fundo à investigação racional e livre da verdade (sem limitações de imposições exteriores), de modo a que a transformação e a intuição interior aconteçam, não pela imposição mas pela compreensão, a qual deriva de um estudo e aprendizagem baseados na assimilação inteligente pessoal em vez da mera acumulação na memória do que se decora. Disto resulta uma sã investigação, pioneira criatividade, estímulo a melhores interpretações e até respeito pelos trabalhos e conclusões dos outros, conduzindo à tolerância e à concórdia entre as diferentes visões, compreensões ou mesmo facções ou religiões, ideias estas que transmitirá na sua missão pedagógica ao longo de toda a vida.
O Enchiridion, o Manual do cavaleiro Cristão ou do soldado Cristão, o que, alistado na milícia de Jesus Cristo, luta por uma vida sábia e justa de amor a Deus e ao próximo, torna-se uma obra verdadeiramente popular pois era muito prática e nela estão dadas «algumas regras gerais do verdadeiro cristianismo», nomeadamente contra os vícios, como a luxúria, a cupidez e a ambição, «para que guiado por elas, como por um fio de Dédalo, possas facilmente emergir dos erros do mundo, como de um labirinto difícil de se sair, e atingires a luz pura da vida espiritual» e assim recuperares «aquela luz puríssima da face (vultus) divina, que o Originador infundira sobre nós», bela e profunda afirmação a merecer meditação maior nossa. 
Continha a sua visão da verdadeira religião cristã, que culminará mais tarde com a sua grande obra: a tradução, a partir de manuscritos gregos antigos, do Novo Testamento, significativamente intitulada na sua primeira edição Novum Instrumentum, e que será ainda continuada por outras, como o Modo de Orar a Deus. O sucesso internacional do Manual foi grande pois entre a data da primeira edição, 1503, quando estava ainda incluída na colectânea ou miscelânea de escritos (só se autonomizando desde 1515), e o ano de 1533, com Erasmo ainda vivo, publicaram-se sessenta edições, chegando-se às cem, aproximadamente, em 1550.
Uma das grandes luzes da Península Ibérica na época do Renascimento, Cisneros. 
 
Na península Ibérica houve um esplendoroso florescimento humanista graças à visão e acção humanista do cardeal Jiménez de Cisneros (1436-1517), fundador, no ano em que Vasco da Gama chegava à Índia, da Universidade de Alcalá, onde leccionarão notáveis humanistas, a maior parte deles concordando com as ideias de Erasmo, tais como Juan de Vergara, Bartolomeu Carranza de Miranda (autor de um Catecismo da Doctrina Cristã, muito simples e bondoso mas atacado e censurado de tal forma que sobreviverão pouquíssimos exemplares), Antonio de Nebrija, Hernán Núñez e Pablo Coronel. Será o impressor da Universidade Miguel Eguía, protegido pelo Arcebispo Don Alonso de Fonseca, a conseguir publicar não só o Enchiridion mas mais vinte e três obras entre 1516 e 1527, impulsionando a influência erasmiana na península Ibérica (embora já só em 1541 saia a primeira edição em Portugal de uma obra de Erasmo, em Lisboa, na oficina de Luís Rodrigues, o Enquiridio o manual dei caballero Christiano), a qual se prolongará por muitos autores, tal como Marcel Bataillon expôs magistralmente no seu Erasme et l’Espagne e muitos outros investigadores têm comprovado, tais como entre nós Pina Martins, Moreira de Sá, Silva Dias, Manuel Augusto Rodrigues e Cadafaz de Matos.
A vida é então uma luta dentro de cada ser contra as tendências e potências da carne, do ego e do mundo, uma batalha constante, que exige o querer tornar-se cristão de todo o coração (toto pectore, velle fieri christianum), a qual é agraciada com momentos de luz e deleite divino, ou de maior ligação ao mestre Jesus Cristo. As duas asas, a da oração e a do estudo dos textos sagrados, além das boas obras pelo amor ao espírito em cada ser, são apontadas como os meios essenciais de religação a Deus, pois ajudam a vencer a cegueira da ignorância, os desejos ou sensualidade da carne, as fraquezas e enfermidades do corpo. A missa e a paixão e morte de Cristo reproduzem-se em nós pela morte das paixões desenfreadas. O estudo, tal como vinha da tradição clássica, começa pelo conhecer-se a si próprio, na triplicidade corpo, alma e espírito, passa pelo culto interior de Deus e do amor, e derrama-se na vida social lúcida, fraterna e livre.
Numa carta escrita ao seu grande amigo John Colet, deão mestre em Londres, em Dezembro de 1504, diz: «compus o Enchiridion, não para provar a inteligência ou a eloquência, mas só com a intenção de curar do seu erro os que colocam comummente a religião nas cerimónias e nas observâncias mais que judaicas, pode-se assim dizer, respeitantes a coisas materiais, enquanto, para espanto, negligenciam tudo o que diz respeito à piedade. Esforcei-me por dar uma espécie de método à piedade, à semelhança dos que redigem métodos precisos de ciências».
A edição espanhola do Enquírídio, impressão do erasmiano Miguel de Eguia.
 
E de facto era uma obra pioneira, propondo a douta piedade, ou seja, a união do conhecimento e da cultura com a oração e a religiosidade, liberta de todas as gangas e desvios, superstições e hipocrisias, autêntica em si, amorosa com todos e acessível a toda a gente. Da sua ressonância, de certo modo o primeiro verdadeiro catecismo da Europa, escreverá o tradutor (e adaptador...) da primeira edição espanhola (saída em 1526), o arcediago (chefe dos diáconos numa catedral) Alonso Fernandez, de Madrid, escreverá mais tarde: «Na corte do Imperador, nas cidades, nas igrejas, nos conventos, mesmo nas pousadas e caminhos, todo o mundo tem o Enchiridion de Erasmo em espanhol. Até agora lia-o em latim uma minoria de latinistas, e mesmo estes não o compreendiam completamente. Agora lêem-no em espanhol pessoas de todo o género, e os que nunca tinham ouvido falar de Erasmo, sabem agora da sua existência por este livro simples.»
Em 1502 morre o seu protector Hendrik van Bergen e estabiliza em Lovaina, onde convive com o futuro papa Adriano, convidando-o mesmo este a tornar-se professor de retórica na Universidade, mas Erasmo recusa (não tanto talvez por humildade mas mais por liberdade, a sua mais fiel dama), preferindo antes trabalhar só e fazer incursões nos mosteiros à procura de manuscritos antigos, iniciando as suas primeiras traduções dos textos gregos e dos primeiros padres da Igreja.
Em 1504 lê o extenso Panegírico congratulatório ao ilustre príncipe borgonhês Filipe, filho do imperador Maximiliano e pai do futuro Carlos V, regressado triunfante e feliz da ida a Espanha, diante de uma eminente corte em Bruxelas, todos encantados com as virtudes do príncipe, sem pressentirem a sua morte eminente, a qual Erasmo sentidamente comentará mais tarde no adágio Homo bulla, O Ser humano é uma bolha. Erasmo será presenteado com uma soma considerável, que bem falta lhe fazia (pois Bergen prometia muito mas dava pouco...) e entrará no círculo imperial, pelo menos nominalmente. Este Elogio será recomendado no Modo de Orar a Deus como um texto de educação dos príncipes e nele, Erasmo, depois de recomendar várias virtudes, exemplificando com heróis e sábios da antiguidade, denuncia a calúnia e a adulação como os piores perigos que rodeiam o príncipe e apela ousadamente não só ao amor da pátria acima do familiar, como ao diálogo, à não-violência e à concórdia.
No final de 1504 está de novo em Paris e publica as valiosas Anotações ao Novo Testamento de Lorenzo Valla (1407-1457), um manuscrito que descobrira no Verão, «um dia que caçava numa biblioteca muito antiga», na abadia carmelita do Parque, perto de Lovaina, que continha a segunda versão, até então desconhecida, das anotações de Valla ao Novo Testamento. É uma obra pioneira da crítica textual, na qual, a partir da colação de sete manuscritos gregos e três traduções latinas, desenvolvera uma crítica filológica, gramatical e estilística, mais do que um comentário, corrigindo assim a até então intocável Vulgata, a versão do Novo Testamento por S. Jerónimo, consagrada desde os remotos ou iniciais tempos pela Igreja. 
É de certo modo o começo da crítica filológica livre dos textos base do cristianismo, que Erasmo aprofundará e alargará com o seu fino discernimento, até irónico ou céptico, das circunstâncias, contextos e hipóteses, não só nas cinco edições crescentemente anotadas realizadas até ao seu fim da vida, como sobretudo nas suas investigações nas letras sagradas, em especial nesse, para muitos, cavalo de Tróia que é a Bíblia, e mais concretamente no Novo Testamento, realizadas por Erasmo numa busca da verdade, com rigor metodológico,  imparcialidade e ausência de sectarismo ou seguidismo.

terça-feira, 4 de julho de 2017

"Evocando Fernando Pessoa", por Francisco Peixoto de Bourbon. A tertúlia do café Montanha.

    Conheci ainda bem Francisco Peixoto Bourbon (1908-1992), um dos admiradores e amigos de Fernando Pessoa que se reuniam, no café lisboeta Montanha, à volta do genial poeta nos últimos seis anos de sua vida terrena. Natural de Celorico de Basto, engenheiro agrónomo, amigo e da geração do meu pai, vivia junto a Fermil, terra natal de meu pai, e onde me acolheu ainda nos anos 80/90 para animados diálogos. 
Casa de Peixoto Bourbon, em Fermil.
Recentemente numa reunião de família em Frades, Póvoa de Lanhoso, estive com a sua filha Mafalda, agrónoma e professora, com a qual tenho mantido alguns contactos ao longo dos anos e que me ofereceu a recente compilação que a Câmara de Estremoz fez das crónicas escritas por Peixoto Bourbon para o jornal  Eco de Estremoz nos anos de 1972-73 e nas quais partilhou, sob o título Evocando Fernando Pessoa, e com muito sucesso («no café Aviz era aguardado com muita ansiedade», com elogios de Vitorino Nemésio, P. Agostinho Veloso e Rodrigues Cavalheiro) muitas memórias curiosas e valiosas sobre Fernando Pessoa: as que um jovem de 22 anos a formar-se como agrónomo em Lisboa, monárquico e integralista, sincero e com grandes aspirações no seu amor por Portugal conseguiu sentir e admirar, desentranhar e rememorar tanto do amigo e mestre próximo como do  imenso novelo pessoano. A apresentação bem contextualizadora é do José Barreto, um bom investigador de vários aspectos de Fernando Pessoa.
Foi por vários jornais regionais que Francisco Peixoto Bourbon derramou abnegada e beneditinamente as suas memórias,  numa autêntica cruzada pessoana, e ao longo de alguns anos na década de  oitenta e noventa em que nos correspondemos também fui recebendo fotocópias das suas últimas publicações, das quais menciono, tanto mais que se desconhece tal colaboração em certos casos, o Comércio de Gaia,  o Comércio de Gondomar, o Notícias de Guimarães, a Cidade de Tomar, o Monte Farinha  e a Vanguarda, neste elogiando-me, tanto mais que lhe passara alguns textos, inéditos, que fotocopiava no espólio da Biblioteca Nacional, no caso um poema a Don Miguel Primo de Rivera, datado de 13-XI-1931, escrevendo mesmo, certamente com o exagero da sua grande generosidade, «o Dr. Pedro Teixeira da Mota, que tem sido dentre os estudiosos pessoanos quem mais tem contribuído para apresentar uma imagem verídica e exacta do que foi o nosso genial poeta».
Não será agora a altura de partilhar o que ele me disse nas cartas ou conversas, ou algo do que foi dando à luz nos jornais, mas deveremos antes divulgar esta valiosa publicação recente das Edições Colibri, com um preâmbulo de Mateus Maçaneiro e uma sóbria apresentação contextualizante do amigo José Barreto, muito bom conhecedor de muitas das facetas de Fernando Pessoa e que já me assinalara a sua publicação.
Nas trinta e seis crónicas, de Dezembro de 1972 a Dezembro de 1973, há muitas informações, e considerações, verdadeiramente interessantes e nas quais podemos destacar os participantes nessas tertúlias do café Montanha, o aspecto físico e vestuário, alimentação e bebida, hábitos e particularidades de Fernando Pessoa, bem como ainda as expressões mais invulgares utilizadas, as admirações, amizades e inimizades, a maneira de ser e falar, os seus desejos e frustrações, a política, a ideologia e a espiritualidade. 
Francisco Peixoto Bourbon cultivava muito as amizades, era sinceramente um ser bom e generoso e foi ele mesmo que me introduziu a outros amigos de Fernando Pessoa, tais como Moutinho de Almeida e o Manuel Menezes de Vasconcelos, e transmite muito bem nas suas evocações o calor humano que circulava entre eles, realçando bastante a falta do meio condigno do génio de Fernando Pessoa, embora a tertúlia do Montanha fosse quase um refúgio de consagração e onde se podia dialogar com franca troca de ideias, como o jovem estudante de agronomia logo experimentou, tornando-se como que o benjamim acalentado da tertúlia, da qual nomeia como participantes o eng. Rogério Caldeira Santos (seria o maior admirador de Pessoa e posteriormente tentou infrutuosamente transformar o café Montanha num museu Fernando Pessoa), o dr. Manuel de Menezes Vasconcelos (um dos mais íntimos), o Marquês de Penafiel, Da Cunha Dias, o Joaquim Palhares, Victoriano Braga, o dr. Pedro Moreira, o Mário Saa, o Dr. Carlos Lobo de Oliveira, o eng. Pulido Garcia,  o Victoriano Braga, o Gualdino Gomes, o capitão Gastão de Melo de Matos,  e umas poucas vezes o António Botto e  o Almada Negreiros.
O seu aspecto algo triste é apontado: «era de estatura mediana, mais baixo do que alto, franzino, magro e de uma palidez verdadeiramente cadavérica. Vestia com a maior despretensiosidade possível e sempre o vi com fatos escuros (...) nunca o vi de laço, mas sempre de gravata preta (...) Apesar dos fatos estarem coçados, denotando intenso uso, o que sucedia também com as camisas, era de impecável asseio, sem uma nódoa, exibindo camisa impecável e imaculadamente brancas».
Há várias referências à  falta de meios em que vivia e que se reflectia no seu estado psíquico, alimentação, saúde, casamento e projectos do futuro. Quanto ao beber, embora tenha estado com ele apenas uma vez num almoço em que todos beberam muito, em Alcântara, reconhece que, embora seja falsa a ideia que ele se embriagava, o António Navarro lhe dissera por experiência própria que ele não falava, ou seja não respondia às pessoas, se estivesse algo tocado.
Dos seus desejos, surge mais de uma vez o de ter uma remuneração e uma estabilidade de vida que lhe permitissem dedicar-se mais plenamente à sua criatividade e como em 1930 o facto de não ter sido provido do lugar vago de bibliotecário em Cascais ao qual concorrera fora uma enorme frustração.  Também a Ditadura Militar, instaurada a 28-V-1926 («política mesquinha e destituída de interesse»), o Estado Novo e Salazar propagandeados pelo seu  S. Paulo, o antigo amigo António Ferro, o crescimento da Censura, o ataque ideológico de que foi vítima aquando da polémica da proibição das Sociedades Secretas, sem poder responder, surgem com fontes de frustração bem expressa num diálogo curto: «Mas quem nos diz que não estamos já vivendo já a hora do Quinto Império? Fernando Pessoa deu uma das suas gargalhadas tão características e inconfundíveis e disse: - Tire-se disso;  a hora é, sim, de autêntico despaupério».
Realcemos nas descrições dadas por Peixoto Bourbon o seu excelente acolhimento  da palavra e verbo de Fernando Pessoa e que compensam um pouco o trauma nacional de não ter sido gravada a sua voz, nomeadamente quando nos diz da «descontracção e naturalidade» com que que Pessoa respondia às questões ou diálogos mais difíceis, ou ainda como «falava com grande serenidade, desprendido e sempre em tom baixo. Por vezes dava a impressão de quase não mover os lábios. Nunca caía em contradições e focava os elementos os elementos essenciais de um problema»,  ou ainda «falava baixo, e, quando estava mais fluente e inspirado, a sua voz tomava aspectos de melopeia e melodia de um murmúrio, que não traduziam moleza nem eram, tão pouco, a expressão de um temperamento débil. Por vezes, é certo, dava a nítida impressão de estar muito cansado, como se houvesse regressado de uma longa viagem  ou tivesse passado noites em claro de dura vigília. Mas, mesmo nesses momentos de maior depressão, tinha grande sedução e como que um encanto misterioso. Acresce que não raro conseguia sintetizar em muito poucas e sóbrias palavras pensamentos por vezes bem complexos. E sentia-se que o fazia com dedo de mestre e com uma segurança que só o génio permite executar. E não o realizava esforçando-se, mas de forma natural e espontânea. Sentia-se que as suas fulgurações, que nos deixavam deslumbrados, não eram obra de longa maturação nem de uma incubação sem fim».
Das pessoas que ele admirava ou gostava refere Sidónio Pais (tendo participado nos anos 1919-20 com o jornal Acção e o sentido e profundo poema À Memória do Presidente-Rei Sidónio Pais), P. António Vieira, Mário de Sá Carneiro (o seu melhor ou mais afim amigo), Rocha Martins, António Botto, António Sérgio [sic] e Gaspar Simões.
Dos que ele não gostava, para além dos famigerados políticos Afonso Costa, António José de Almeida e Brito Camacho, encontramos Teófilo Braga, Joaquim Manso, João de Barros, Afonso Lopes Vieira, Álvaro Maia, Alfredo Pimenta, António Sardinha, Pedro Teotónio Pereira, e António Ferro e Alfredo Guisado, estes dois desde o episódio do salto de um eléctrico (pensando que o estrondo e o clarão de uma curto circuito era um atentado) do assustado Afonso da Costa, em 3-VI-1915, bem troçado por Fernando Pessoa dois dias depois em carta para o Jornal A Capital em resposta a menções do futurismo da revista Orpheu «seria de mau gosto repudiar ligações com o futurismo numa hora tão deliciosamente mecânica em que a própria Providência Divina se serve dos carros eléctricos para os seus altos ensinamentos», escrito do qual esses dois co-participantes do Orpheu se dissociaram. Escusado será dizer que Fernando Pessoa ainda escreveu uma outra carta bastante mais explicita quanto aos defeitos do chefe do Partido Democrático, muito conhecido como o "mata-frades", a qual o jornal não publicou. No fim da vida de Fernando Pessoa, de novo tal sucedeu, mas então quando estava a defender, em cartas aos jornais, a liberdade de pensamento e das Associações Secretas, em especial a Maçonaria perante um projecto de Lei opressivo do deputado José Cabral.
Dos que não gostavam dele, refere Guilherme Faria, Mário Beirão, Pedro Teotónio Pereira e os meios católicos e até neo-monárquicos ou integralistas, aos quais pertencia contudo o jovem Peixoto Bourbon. E assim o choque maior entre ele  e Fernando Pessoa deu-se quando este defendeu a Maçonaria e atacou alguns jornais e pensadores católicos nos últimos meses da sua vida, afastando-o da tertúlia e fazendo com que ambos estivessem mais só e menos luminosos nos últimos meses de vida terrena de Fernando Pessoa, algo de que Francisco Peixoto Bourbon confessa ter-se depois arrependido amargamente. 
Menciona três vezes o esoterismo ou ocultismo de Fernando Pessoa e a linha profética de Bandarra e Vieira, esta talvez ligada à sua boa fé: «um dos traços fundamentais de Fernando Pessoa era o de se sentir mal amado e ressentido e por uma série de razões, sendo a principal de se lhe impor uma espécie de vida para a qual sentia que nunca havia sido talhado. E daí o sucumbir ao peso de tantas incompreensões e egoísmos./ Mas, após o sucumbir e ter momentos de tão negra depressão, breve voltava a interessar-se pela vida e por vezes, por acontecimentos vários, por vezes pueris. Eu, por vezes, até ficava escandalizado por o ver absorvido por problemas e factos que considerava ridículos e de somenos importância. Convém a propósito referir que Fernando Pessoa  era dos seres de mais boa-fé que jamais conheci, dando pleno crédito a notícias sem qualquer fundamento». Será que poderemos admitir que Fernando Pessoa terá se deixado entusiasmar em parte pela crença, visão e a correnteza sebastianista e até do V Império, porque era uma pessoa de muita boa-fé ou ingénua?
Dos dados que Peixoto Bourbon nos transmite  acerca de Fernando Pessoa quais serão então os mais interessantes e menos conhecidos: o de ter estado ligado (com Simeão Pinto de Mesquita Magalhães) com a Junta Governativa do Reino, na movimentação de Paiva Couceiro e da Monarquia do Norte, o de ter tido em mira alguns lugares profissionais mas que se goraram, o de «procurar actuar no sentido de ocultar onde morava», o seu receio da velhice e da miséria, e o de frequentemente pedir mais 10 anos de vida para acabar a sua obra e dos quais só recebeu três, . 
O ter trabalhado como guarda-livros e correspondente comercial, quando apenas esta última faceta é reconhecida em geral (como anota José Barreto, pondo a outra em causa), embora os artigos que escreveu para os seis números da revista Comércio e Contabilidade, do seu cunhado Caetano Dias, em 1926, façam admitir ou deduzir tanto a sua preparação ou capacidade para em certas circunstâncias juntar as duas numa ou mesmo de o ter feito.
O sentir o que ele chamava de «revolta sagrada» perante o ter de sobreviver nesses trabalhos menores face ao génio que nele se manifestava ou o inspirava, e que o faziam descer do cerebral ao medular,  algo que o Livro do Desassossego bem transparece, tendo mesmo um dia dito: «A minha profissão não me ajuda, pois - não sei se compreendem - tenho trabalho dobrado, visto que só consigo após muito esforço que a inspiração surja e a medo, depois de completamente esvaziado durante o dia o entulho./ Um dia estava tão desesperado o cérebro das minhocas que caiu de borco em cima da mesa do Café e chorou. O Palhares e eu estávamos tão comovidos que nem palavras nos ocorreram para o consolar. E foi ele quem finalmente disse: - Se tivesse conseguido o lugar na Biblioteca, acabaria este meu tormento». E sabemos realmente como esse trágico erro em 1932 da recusa da atribuição do modesto mas seguro cargo de conservador ou bibliotecário no Museu Conde Castro Guimarães, em Cascais, acabou por ser fatal para Fernando Pessoa. 
São valiosas ainda algumas confissões feitas em conversas com Peixoto Bourbon, tais como: «só sabemos espezinhar no mesmo lamaçal e nada demandarmos horizontes novos e de percorrer novos trilhos  e ter novas visões», ou «eu bem me esforcei por espiritualizar a jovem República, por dar-lhe mesmo um fundamento filosófico...», ou ainda o seu empenho «em dotar o género humano de uma linguagem nova que ultrapasse em muito a linguagem actual, como esta última ultrapassa os sons dos animais». 
Alguns episódios da sua vida, as excursões botânicas com Caldeira Santos à Tapada da Ajuda,  o conteúdo dos seus bolsos (lápis pequeninos, cascas de castanhas assadas), a compra dum cofre, a visão da cara de Mário de Sá Carneiro num gato a morrer, uma projectada mas abortada visita a Fermil, a casa de Peixoto Bourbon, e em que iria encontrar-se com o pai dele e com Fernão Moura, descendente do lendário Magriço, a participação de Carlos Lobo de Oliveira na publicação da Mensagem são ainda bem vibrantes.
E ainda a defesa dos milagres, descrita «mais ou menos nestes termos»: «O restrito racionalismo, de vistas curtas e horizontes ultra-acanhado, negando a possibilidade de em dado momento surgir ou se dar o milagre, cai afinal, no domínio de um autêntico e bem pouco esclarecido preconceito. Há emanações do Além que de todo em todo não sabemos explicar e fenómenos que nos escapam. Devemos admitir o milagre, pois que pelo menos tem o raro condão e mérito de encantar a alma e impregnar o homem, profunda e definitivamente, da maior doçura e religiosidade», esta última frase certamente algo tingida pela aura mais religiosa que ocultista de Peixoto Bourbon.
Quando estava para ir encontrar-se com Peixoto Bourbon pai e Fernão Moura exprimiu a necessidade «que Portugal descubra as origens e as fontes e as verdades eternas  da sua grandeza. E teremos então o supra-Camões e o Quinto Império./ E é por isso que preciso de evocar, e em romagem no próprio local a presença dessas figuras tutelares que nos insuflam coragem na alma para o duro combate. E uma dessas excelsas figuras é a de Magriço».
Terminemos esta homenagem amiga e grata tanto a Francisco Peixoto Bourbon como a Fernando Pessoa, dois valiosos elos da Tradição Cultural e Espiritual Portuguesa, e aos que permitiram ser dado de novo à luz as crónicas para Estremoz  Evocando Fernando Pessoa, com mais duas transcrições das caracterizações dessa palavra e verbo que passou brilhantemente, a primeira sendo a sua afirmação, bem digna de se meditar e aprofundar, e sabemos como Fernando Pessoa trabalhou tal em alguns dos seus ensinamentos e mantras, de que «as palavras têm a sua temperatura e fazem mais parte de nós que as próprias fibras nervosas»... 
Évrard d'Espinques, c. 1475
E a segunda, expressa por Francisco Peixoto Bourbon, em parte como que numa paráfrase do iniciático dito de Jesus "onde dois ou três se reunirem em meu Nome eu estarei no meio deles", no qual se valoriza a convergência de pensamentos e almas e em que Nome significa tanto o Amor como o Pensamento ardente na demanda do Graal da Verdade: «A conversa com Fernando Pessoa, desde que se desenvolvesse com duas ou três pessoas, era sempre de maior interesse, não havendo nunca repetições monótonas, gestos inúteis, palavras insignificantes. Pelo contrário, era um desencadear ininterrupto de pensamentos de maior elevação».
Que os saibamos continuar, no Graal do Nome, Palavra, Verbo, Pensamento elevado,  Logos, Verdade, Comunhão, Unidade e Divindade...