sexta-feira, 7 de junho de 2024

22 dos melhores sonetos de Luís de Camões. Com breve introdução e comentários. Nos 500 anos do seu nascimento.

Luís de Camões, visto por José Malhoa. Museu Militar de Lisboa.

Os sonetos de Luís de Camões (1524-1580) são um hino constante à beleza feminina, ao enamoramento, ao Amor, às vicissitudes que ele provoca nos amantes e ainda aos Elementos e à Natureza animada, particularmente os rios e suas ninfas. Certamente, há também sonetos não líricos, ou menos líricos, dedicados aos heróis, aos mortos, à religião, à Fortuna, Destino e Tempo e à sua precariedade e mutabilidade, mas a base, o fundamento, a força maior inspiradora é o amor que ele sente e que em geral não é correspondido, ou então que sentiu e foi reciprocado mas já terminou. São dadas muitas razões para esse amor nascer subitamente, quase que por encanto do destino, ou pelo encontro dos olhares, ou por o amor ser cego, ou ainda por assim o ordenar o Amor.

Contudo, o que ressalta como  o mais despertador do amor, ou da sua intensificação em Camões, pois certamente ele foi um homem sempre em amor, ardente, com a irradiação do peito, do coração, da voz, dos sentidos e da sexualidade sempre vivos, são os aspectos ou conformações da beleza das mulheres por quem se apaixona: a face, o riso, os olhos, os gestos, - e nisto está muito da alma delas -, os cabelos ou ventos, as vozes, os dentes, e, com prudência ou pudor, muito pouco declarando ou poetizando os outros atractivos corporais, tais como os seios ou o que seja.

A poesia lírica de Camões é profunda de sentimento, de desejo, de amor, de dádiva e submissão, muito rica de conhecimentos da  cultura e literatura greco-romana e riquíssima de analogias humanas e divinas ou de captação dos sinais de afinidades ou de esquivanças, mas não é, nos Sonetos, erótica e sensual, o que já não se pode dizer, por exemplo, de várias oitavas do episódio da ilha dos Amores, bastante mais explicitas dos deleites e buscas da unidade anímica e corporal.

Também não se discernem projecões futurantes em tais sonetos, pois  não apelam a cenários futuros luminosos ou positivos. Há como que uma certa horizontalidade e sujeição a um destino de amador com poucos amores correspondidos e não há sequer invocações das musas,  dos anjos, dos deuses ou da Divindade para que consiga alcançar a união desejada, ou para que o seu amor pela amada frutifique em actos, em eventos.

Os sonetos camonianos não são cartas de amor emotivas, nem são orações pelo sucesso do amor, embora sejam muito intensos de amor e tingidos por ele, seja na descrição do valor e beleza das mulheres seja  na descrição dos efeitos que sente em si, ou das lutas que o dilaceram entre o desejo e a razão, a esperança e a desilusão, raramente  conseguindo estabelecer uma comunicação da razão e do coração, e sobretudo de coração a coração reciprocando.

Não há pois apelos ao Céu e a Providência, a Causas segundas,  Anjos ou às afinidades de almas,  para que eles abençoem o amor que ele sente por quem ame, embora haja uma constante relação com o Amor, Cupido, Vénus, numa certa invocação, culto, luta. Em alguns sente-se a gratidão, por ter havido um amor correspondido, a brilhar por entre o panorama mais frequente  de desejos,  mágoas e desilusões. Será no episódio da ilha dos Amores que a chama do seu amor atinge a plenitude do Amor, que une a terra e o céu, a acção e a contemplação, a Vénus terrestre e a Vénus Celestial.

Vejamos então, - com a 1ª numeração do Brasil, e a 2ª dos Sonetos editados pela sábia amiga Cleonice Berardinelli -, alguns dos melhores sonetos do grande poeta do Amor, e que senti com mais força espiritual do Amor, ou com mais Amor, Bem e Beleza e que transcrevi e levemente comentei em homenagem a um esforçado e sacrificado Cavaleiro e Fiel do Amor, vate mestre da Tradição Espiritual Portuguesa...

Camões, numa pintura ao natural por Fernando Gomes, em 1570.

                                                   001 ou 1.

 Enquanto quis Fortuna que tivesse
esperança de algum contentamento,
o gosto de um suave pensamento

me fez que seus efeitos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse
minha escritura a algum juízo isento,
escureceu-me o engenho com tormento,
para que seus enganos não dissesse.

Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos
a diversas vontades, quando lerdes
num breve livro casos tão diversos,

verdades puras são, e não defeitos;
E sabei que, segundo o amo
r tiverdes,
tereis o entendimento de meus versos
!

Saibamos despertar o entendimento sobre o amor, mas para que não o diminuamos ou percamos e antes aprofundamos o seu contentamento.

 009 ou 017
Quando da bela vista e doce riso,
tomando estão meus olhos mantimento,
tão enlevado sinto o pensamento
que me faz ver na terra o Paraíso.

Tanto do bem humano estou diviso,
que qualquer outro bem julgo por
vento;
assim, que em caso tal, segundo sinto,
assaz de pouco faz quem perde o siso.

Em vos louvar, Senhora, não me fundo,
porque quem vossas coisas claro sente,
sentirá que não pode merecê-las.

Que de tanta estranheza sois ao mundo,
que não é de estranhar, dama excelente,
que quem vos fez, fizesse Céu e estrelas.

A comunhão anímica e inspiradora pelo Amor faz-nos entrar na dimensão etérea,  celestial, divina.

 010 ou 60
Quem pode livre ser, gentil Senhora,
vendo-vos com juízo sossegado,
se o Menino que de olhos é privado,
nas meninas dos vossos olhos mora?

Ali manda, ali reina, ali namora,
ali vive das gentes venerado,
que o vivo lume e o rosto delicado,
imagens são, nas quais o Amor se adora.

Quem vê que em branca neve nascem rosas
que fios crespos de ouro vão cercando,
se por entre esta luz a vista passa,

raios de ouro verá, que as duvidosas
almas estão no peito trespassando,
assim como um cristal o sol trespassa...

Saibamos sentir e ver os raios dourados do Amor que passam pelos olhos e atravessam as almas cristalinas.

 080 ou 19
Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo desta vida descontente,
repousa lá no Céu eternamente,
e viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento Etéreo, onde subiste,
memória desta vida se consente,

não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
alguma cousa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder-te,

roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo de meus olhos te levou.

Um belíssimo poema de comunhão no corpo místico da Humanidade e mais particularmente no sub-campo dos que se amaram mais intensamente.Sente-se como uma oração sentida, eficaz, mágica: há raios de amor partindo da terra para o mundo etéreo ou subtil onde está a alma amada, reafirmando-se a fidelidade do amor e a vontade, sacrificial até, de reunificação. Dos mais poderosos de Camões.

 004 ou 09
Tanto de meu estado m'acho incerto,
qu'em vivo ardor tremendo estou de frio;
sem causa juntamente choro e rio,
o mundo todo abarco, e nada aperto.

É tudo quanto sinto, um desconcerto;
da alma um fogo me sai, da vista um rio;
agora espero, agora desconfio,
agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando,
numa hora acho mil anos, e é de jeito
que em mil anos não posso achar uma hora.

Se me pergunta alguém porque assim ando,
respondo que não sei; porém suspeito
que só porque vos vi, minha Senhora.

Uma bela descrição do estado paradoxal, extático, da alma fortemente apaixonado: fora das delimitações do espaço e do tempo, soprada pelo espírito do Amor que é cego.

005 ou 81
Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Um dos mais excelentes sonetos, com quase todos os versos verdadeiros ou exactos na descrição do Amor e da sua misteriosa natureza paradoxal contudo desafiante e capaz de unir os opostos.

 020 ou 10
Transforma-se o amador na cousa amada,
por virtude do muito imaginar;
não tenho, logo, mais que desejar,
pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,
que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
pois consigo tal alma está ligada.

Mas esta linda e pura semideia,
que, como um acidente em seu sujeito,
assim com a alma minha se conforma,

está no pensamento como ideia:
O vivo e puro amor de que sou feito,
como a matéria simples, busca a forma.

Talvez o soneto que descreve mais a operatividade mágica da alma idealista numa linha platónica: a que acredita no mundo das ideias e das almas e a que ele se dirige e se conforma, mas que por fim concretiza também na matéria, corpo e forma, numa  linha aristotélica ou realista, num amor que une os três mundos: o divino, o anímico e o material, e faz a ideia, a sub-ideia e a matéria do corpo conformarem-se, unificarem-se.

042 ou 08

Amor, que o gesto humano n'alma escreve,
vivas faíscas me mostrou um dia,
donde um puro cristal se derretia
por entre vivas rosas e alva neve.

A vista, que em si mesma não se atreve,
por se certificar do que ali via,
foi convertida em fonte, que fazia
a dor ao sofrimento doce e leve.

Jura Amor que brandura de vontade
causa o primeiro efeito; o pensamento
endoudece, se cuida que é verdade.

Olhai como Amor gera num momento,
de lágrimas de honesta piedade
lágrimas de imortal contentamento.

Outro soneto brilhante dos efeitos subtis do amor, e dos estados paradoxais que gera, bem expostos igualmente por Erasmo no Elogio da Loucura, que é também o do Amor.

 152 ou 117
Depois que viu Cibele o corpo humano
do fermoso Átis seu, verde pinheiro,
em piedade o vão furor primeiro
convertido, chorou seu grave dano.

E, fazendo a sua dor ilustre engano,
a Júpiter pediu que o verdadeiro
preço da nova palma e do loureiro,
ao seu pinheiro desse, soberano.

Mais lhe concede o filho poderoso
que, as estrelas, subindo, tocar possa,
vendo os segredos lá do Céu superno.

Oh! ditoso Pinheiro! Oh! mais ditoso
quem se vir coroar da folha vossa,
cantando à vossa sombra verso eterno!

Um dos sonetos de hermenêutica mais exigente, exigindo bons conhecimentos da lenda de Átis, narrada no Canto II dos Fastos de Ovídio, e dos Mistérios da Antiguidade, e que mostra o amor na sua dimensão trágica, sacrificial e metamórfica unindo poderosamente a terra e o céu, o humano e o divino.

 006 ou 108
Doces águas e claras do Mondego,
doce repouso de minha lembrança,
onde a comprida e pérfida esperança
longo tempo após si me trouxe cego;

de vós me aparto, mas porém não nego
que ainda a memória longa, que me alcança,
me não deixa de vós fazer mudança,
mas quanto mais me alongo, mais me achego.

Bem pudera Fortuna este instrumento
d'alma levar por terra nova e estranha,
oferecido ao mar remoto e vento;

mas [a}alma, que de cá vos acompanha,
nas asas do ligeiro pensamento,
para vós, águas, voa e em vós se banha.

Outro soneto bastante neo-platonizante, realçando a capacidade anímica de comunhão acima das limitações do tempo e do espaço, num meio etérico de ondas, vibrações, asas, pensamentos, numa bela descrição da telepatia e viagem astral da alma espiritual reminiscente das águas doces e claras do seu amado rio Mondego.

 091 ou 38
Fermosos olhos que na idade nossa
mostrais do Céu certíssimos sinais,
se quereis conhecer quanto possais,
olhai-me a mim, que sou feitura vossa.

Vereis que de viver me desapossa
aquele riso com que a vida dais;
vereis como de Amor não quero mais,
por mais que o tempo corra e o dano possa.

E se dentro nest'alma ver quiserdes,
como num claro espelho, ali vereis
também a vossa, angélica e serena.

Mas eu cuido que só por não me verdes,
ver-vos em mim, senhora, não quereis,
tanto gosto levais de minha pena.

Um dos mais exigentes sonetos já que nos convida e desafia a olhar a alma por dentro e no espelho claro do encontro do Amor ver nele a sua própria alma angélica ou espiritual, em paz ou serena com tal comunhão e visão unitiva.

 073 ou 56
Náiades, vós, que os rios habitais
que os saudosos campos vão regando,
de meus olhos vereis estar manando
outros, que quase aos vossos são iguais.

Dríades, vós que as setas atirais,
os fugitivos cervos derrubando,
outros olhos vereis que, triunfando,
derrubam corações que valem mais.

Deixai as aljavas logo, e as águas frias,
e vinde, Ninfas minhas, se quereis 31
saber como de uns olhos nascem mágoas;

vereis como se passam em vão os dias;
mas não vireis em vão, que cá achareis
nos seus as setas, e nos meus as águas.

Um dos sonetos onde mais ecoa a tradição pagão ou greco-romana, com os espíritos da natureza, Náiades e Dríades, deusas menores animando e alegrando a Natureza e comungando animicamente com o poeta.

 039 ou 77
O culto divinal se celebrava
no templo donde toda a criatura
louva o Feitor divino, que a feitura
com seu sagrado sangue restaurava.

Ali Amor, que ò tempo me aguardava
onde a vontade tinha mais segura,
numa celeste e angélica figura
a vista da razão me salteava.

Eu, crendo que o lugar me defendia,
e seu livre costume não sabendo
- que nenhum confiado lhe fugia - ,

deixei me cativar; mas já que entendo,
Senhora, que por vosso me queria,
do tempo que fui livre me arrependo.

Belíssimo soneto onde se descreve o enamoramento dentro de uma igreja e na celebração da missa, e onde a sacralidade da religião cristã e da religião do amor se enlaçam na dádiva recíproca.

 007 ou 39
O fogo que na branda cera ardia,
vendo o rosto gentil que eu n'alma vejo,
se acendeu de outro fogo do desejo,
por alcançar a luz que vence o dia.

Como de dois ardores se encendia,
da grande impaciência fez despejo,
e, remetendo com furor sobejo,
vos foi beijar na parte onde se via.

Ditosa aquela flama, que se atreve
 apagar seus ardores e tormentos
na vista de que o mundo tremer deve.

Namoram-se, Senhora, os Elementos
de vós, e queima o fogo aquela neve
que queima corações e pensamentos.

Um dos poemas mais ardentes e arrebatados e que é fundamentado na própria operatividade dos quatro ou cinco elementos da natureza.

 076 ou 44
Pelos extremos raros que mostrou
em saber, Palas, Vénus em fermosa,
Diana em casta, Juno em animosa,
África, Europa e Ásia as adorou.

Aquele saber grande que ajuntou
espírito e corpo em liga generosa,
esta mundana máquina lustrosa,
de só quatro Elementos fabricou.

Mas mor milagre fez a natureza
em vós, Senhoras, pondo em cada üa
o que por todas quatro repartiu.

A vós seu resplandor deu Sol e Lua,
a vós, com viva luz, graça e pureza,
Ar, Fogo, Terra e Água vos serviu.

Outro poema de comunhão do microcosmo humano com o macrocosmos, quando a graça divina assim dispõem luminosamente numa alma mais harmoniosa.

 089 ou 67
Pois meus olhos não cansam de chorar
tristezas, que não cansam de cansar-me;
pois não abranda o fogo em que abrasar-me
pôde quem eu jamais pude abrandar;

não canse o cego Amor de me guiar
a parte donde não saiba tornar-me;
nem deixe o mundo todo de escutar-me,
enquanto me a voz fraca não deixar.

E se nos montes, rios, ou em vales,
piedade mora, ou dentro mora amor
em feras, aves, plantas, pedras, águas,

ouçam a longa história de meus males
e curem sua dor com minha dor,
que grandes mágoas podem curar mágoas.

Graças à omnipresença e empatia do Amor e da piedade é possível a comunhão e a harmonização dos seres, suplantando as dores.

 036
Presença bela, angélica figura,
em quem, quanto o Céu tinha, nos tem dado;
gesto alegre, de rosas semeado,
entre as quais se está rindo a fermosura;

olhos, onde tem feito tal mistura
em cristal branco o preto marchetado,
que vemos já, no verde delicado
não esperança, mas inveja escura;

brandura, aviso e graça, que aumentando
a natural beleza com desprezo,
com que, mais desprezada, mais se aumenta,

são as prisões de um coração que, preso,
seu mal ao som dos ferros vai cantando,
como faz a Sereia na tormenta.

O ser amado, na sua formosura, reflecte bem os dons divinos ou celestiais, e por isso atrai, prende, liga-nos e faz-nos por ele clamar.

 138 ou 175
Quando a suprema dor muito me aperta,
se digo que desejo esquecimento,
é força que se faz ao pensamento,
de que a vontade livre desconcerta.

Assim, de erro tão grave me desperta
a luz do bem regido entendimento,
 mostrando que é engano ou fingimento
dizer que em tal descanso mais se acerta.

Porque essa mesma imagem, que na mente
me representa o bem de que careço,
faz-mo de um certo modo ser presente.

Ditosa é, logo, a pena que padeço,
pois que da causa dela em mim se sente
um bem que, inda sem ver-vos, reconheço.

Mais uma comunhão da alma supra limitações corporais, no sentir e amar internamente, que suplanta a pena da ausência da plena presença do bem que se carece ou ama.

 150
Quem presumir, Senhora, de louvar-vos
com humano saber, e não divino,
ficará de tamanha culpa digno
quamanha
[quão grande] ficais sendo em contemplar-vos.

Não pretenda ninguém de louvor dar-vos,
por mais que raro seja e peregrino,
que vossa fermosura eu imagino
que Deus a ele só quis comparar-vos.

Ditosa esta alma vossa, que quisestes
em posse pôr de prenda tão subida,
como, Senhora, foi a que me destes.

Melhor a guardarei que a própria vida;
que, pois mercê tamanha me fizestes,
de mim será jamais nunca esquecida.

Valorização extrema da amada, vista na contemplação amorosa como divina.

  090 ou 035
Um mover d'olhos, brando e piedoso,
sem ver de quê; um riso brando e honesto,
quase forçado; um doce e humilde gesto,
de qualquer alegria duvidoso;

Um despejo quieto e vergonhoso;
um repouso gravíssimo e modesto;
üa pura bondade, manifesto
indício da alma, limpo e gracioso;

Um encolhido ousar; üa brandura;
um medo sem ter culpa; um ar sereno;
um longo e obediente sofrimento;

esta foi a celeste fermosura
da minha Circe, e o mágico veneno
que pôde transformar meu pensamento.

Belíssima descrição de um ideal de mulher que, presente numa dama, a torna maga, capaz de influenciar e metamorfosear o amante.

 166 ou 102
Verdade, amor, razão, merecimento,
qualquer alma farão segura e forte;
porém, fortuna, caso, tempo e sorte,
têm do confuso mundo o regimento.

Efeitos mil revolve o pensamento
e não sabe a que causa se reporte;
mas sabe que o que é mais que vida e morte,
que não o alcança humano entendimento.

Doctos varões darão razões subidas,
mas são experiências mais provadas,
e por isso é melhor ter muito visto.

Cousas há i que passam sem ser cridas
e cousas cridas há sem ser passadas,
mas o melhor de tudo é crer em Cristo.

Ás virtudes, valores e merecimentos devemos juntar a instabilidade da fortuna, e a sabedoria da experiência, mas ainda assim o mais valioso é a nossa fé e ligação à Divindade.

 032
Vós que, d'olhos suaves e serenos,
com justa causa a vida cativais,
e que os outros cuidados condenais
por indevidos, baixos e pequenos;

S'ainda do Amor domésticos venenos
nunca provastes, quero que saibais
que é tanto mais o amor depois 
que amais,
quanto são mais as causas de
ser menos.

E não cuide ninguém que algum defeito,
quando na cousa amada s'apresenta,
possa diminuir o amor perfeito;

Antes o dobra mais; e se atormenta,
pouco e pouco o desculpa o brando peito;
que Amor com seus contrários s'acrescenta.

Não sejamos demasiado exigentes no Amor, ou nas qualidades afins no ser amado, e assim veremos Ele crescer através dos próprios obstáculos, limitações e desencontros.

Que a caixinha de Pandora seja no séc. XXI por fim de justiça e multipolaridade, benéfica e amorosa. Por Jules Robert Lefebvre.

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