segunda-feira, 10 de junho de 2024

A Ilha dos Amores ou do Amor, da Deusa e de Camões. Hermenêutica da sua espiritualidade perene. Nos 500 anos do seu nascimento.

Heliogravuras de Alfred Bramtot, para a bela edição parisiense d' Os Lusíadas, de 1890.
No canto IX dos Lusíadas Luís de Camões introduz a utópica "ínsula divina", a  ilha do Amor,  que a deusa Vénus, decidira aparelhar  no Oceano  para premiar os navegadores portugueses com descanso, deleite e alegria, após os seus esforços e feitos, que culminam com a vitória sobre o Adamastor (o guardião do umbral), e os inimigos dos nautas e a abertura da circulação e corrente pelo  mar entre o Ocidente e o Oriente.
Conta com o seu filho Cupido, ou Eros, que tem ao seu serviço muitos Cupidos preparadores e lançadores de flechas,  para inflamarem o amor nas ninfas ou nereidas com que povoa a Ilha Namorada levada pelas ondas,  até ficar firme na rota dos portugueses, a fim de se juntar o "ardente amor lusitano com a flama feminina". São uma núpcias especiais que se preparam, a coroação da demanda lusitana da união do Ocidente com o Oriente e que se realizou pluridimensionalm
ente e como fruto da história de uma terra e sua gente, com tantas esforçadas, corajosas e engenhosas almas.
A descrição da ilha e o episódio de ensino ético, amor e iluminação
congraçaram  os comentadores em hermenêuticas diferentes quanto ao seu simbolismo, ideologia e intencionaliade, pois a genial epopeia e este riquíssimo episódio são os de um experimentado viajante e cavaleiro, infatigável fiel do Amor, de certo modo um humanista, formado, presume-se, que em Coimbra e com um tio sacerdote,  em grande parte na tradição greco-romana, em especial Homero, Virgílio e Ovídio, e logo conhecedor do orfismo e pitagorismo, platonismo e neoplatonismo, ainda que sobretudo por antologias, oficinas e florilégios, e pelos mestres italianos do dolce stil novo, tal Dante, Guido de Cavalcanti e em especial Petrarca, e talvez ainda pelo teorizador do Amor Marsilio Ficino e o seu seguidor Leão Hebreu, além dos poetas citados na sua obra: Pietro Bembo, Garcilaso de la Vega e Juan Boscán. 
Conhecia ainda tanto a historiografia portuguesa, nomeadamente de  André de Resende, Damião de Góis, João de Barros (que refere a Utopia de Thomas More, de 1517), Fernão Lopes de Castanheda e Diogo de Teive (tendo sido grande amigo do então jovem  Diogo de Couto, o continuador das Décadas, de João de Barros, as III primeiras bastante usadas  por Camões), como a tradição literária, satírica (quem sabe se o Elogio da Loucura, de Erasmo) e visionária portuguesa, castelhana e europeia (tais as medievais viagens às ilhas Afortunadas e das Mulheres), para além do que acolhera na sua universal experiência, sobretudo oriental, persa e indiana, pois por tais terras e gentes esteve uns dezassete anos seguidos, extraordinariamente ricos e sofridos, seja em expedições e batalhas, amores e inspirações, perseguições e prisões, pobreza e naufrágio, e assim pode cantar o peito ilustre lusitano, e o saber feito de experiência.
O episódio chave acolheu he
rmenêuticas frequentemente conflituosas quanto à localização da Ilha dos Amores (Bombaim, Angediva, Zanzibar, S. Helena, Mediterrâneo, Chipre, Atlântico ou antes  utópica), quanto às fontes literárias clássicas (Argonautas, Odisseia, Ilíada, Eneida, Metamorfoses de Ovídio), ao erotismo carnal ou terrestre e o urânico ou metafísico, ao platonismo e ao aristotelismo, ao  esoterismo  e ao catolicismso,  e ao cabalismo, neste último aspecto destacando-se três pessoas que conheci, Fiama Hasse Pais Brandão, Maria Antonieta Soares Azevedo e António Telmo, mas sem conseguirem contudo fundamentar tal hipótese.
É bem m
ais simples e cristão o que  nos é transmitido, certamente com influências do paganismo clássico e renascentista, e com passos mais elevados e sublimes de ressonância neo-platónica (também assimilada pelo cristianismo), os quais metaforizam  num mundo paralelo, ou intuem do mundo espiritual, o que merecem e alcançam os seres que lutam ardorosamente pelo bem, a verdade  e o amor. Há assim estâncias com ideias valiosas acerca do Amor,  Divindade e do ser humano, para além de uma história de Portugal, retrospectiva e futurante, onde Camões pode exercer  os seus vastos conhecimentos de geografia, etnografia, história, mitologia greco-romana, cosmografia e teologia, e exercer a sua missão de vate, de poeta vidente, tal como os rishis dos Vedas, capazes de discernirem Rita e Dharma, Ordem e Dever, o mundo da ideias e valores perenes, e poder ser   um guia, um crítico social e ético , dirigindo-se tanto aos rei e governantes, como aos religiosos, guerreiros, comerciantes  e povo para que despertem do seu sono e lutem como esforçados seres desejosos da beleza, da virtude, do conhecimento, da verdade, da liberdade, do amor. 

Constituem um subreptício testamento autobiográfico  algumas partes dos discursos do episódio, seja na personagem ardorosa em busca do amor, Leonardo, seja quando Camões fala, através da ninfa Téthys, aconselhando o Rei e a Grei, sentindo-se bem confessionalmente nos dois cantos finais o seu alto amor e engenho artístico, alem de esforçada capacidade luta, de sacrifício, de aprendizagem e de síntese, e que todos nós devemos desenvolver.
Sem entrarmos no simbolismo possível das árvores, fru
tas, flores (onde a obra do Visconde de Ficalho é ainda referência), minerais e pedras, ou nos feitos, virtudes que os mais heroicos portugueses manifestaram,  destaquemos então os principais ensinamentos espirituais, começando no canto IX, onde observamos a alegria dos nautas encetando finalmente a viajem de saída da Índia e regresso à Lusitânia, assim descrita de modo a assinalar o culto dos antepassados e da família (os "penates") e  a importância do coração espiritual como um graal que se expande tanto que o coração físico é diminuto:                                  
                                               17-18 e 19
O prazer de chegar à pátria cara,
A seus penates caros e parentes,
Pera contar a peregrina e rara
Navegação, os vários céus e gentes;
Vir a lograr o prémio que ganhara,
Por tão longos trabalhos e acidentes:
Cada um tem por gosto tão perfeito,
Que o coração para ele é vaso estreito.

Porém a Deusa Cípria, que ordenada
Era, pera favor dos Lusitanos,
Do Padre Eterno, e por bom génio dada,
Que sempre os guia já de longos anos,
A g1ória por trabalhos alcançada,
Satisfação de bem sofridos danos,
Lhe andava já ordenando, e pretendia
Dar-lhe nos mares tristes, alegria. (...)

Buscar-lhe algum deleite, algum descanso,
No Reino de cristal, líquido e manso.

Para isso conta a deusa Cípria, ou do Chipre, com o seu filho Cupido e os seus servidores cupidos, mais eficazes "quando as setas  acertam de levar ervas secretas" e por "palavras subtis de sábias magas", agora para frecharem as nereidas ou ninfas, e que assim inflamadas esposarão os argonautas portugueses:

«quero que sejam repousados,
Tomando aquele prémio e doce glória
Do trabalho que faz clara a memória.»

A "formosa ilha alegre e deleitosa" com  "o cume,  que a verdura tem viçosa" ou esverdeado, é um paraíso terrestre, o local ideal para o amor se manifestar plenamente, no qual um cipreste é um eixo entre o mundo físico e o espiritual, apontando ao "etéreo paraíso", e em tal "insula divina" os nautas portugueses deslumbram-se, extasiam-se e buscam a união com as ninfas, o que acaba naturalmente por acontecer, destacando-se a extensa descrição dessa busca da reciprocidade fusional do amor,  até então não encontrado no, por isso magoado, marinheiro Leonardo, identificável com Camões, até que por fim a ninfa: 

                                                                                 82
Toda banhada em riso e alegria,
Cair se deixa aos pés do vencedor,
Que todo se desfaz em puro amor.
 

Essa aceitação e comunhão geral é bela e elevadamente descrita na estância 84, pois tais uniões são para eterna companhia, ecoando seja a teoria da alma-gémea platónica, seja talvez mais a anterior, dos persas, das fravashis, as mulheres-anjos que cada homem encontra em vida ou ainda, se o merecer, na ponte da passagem para o além.

 «Desta arte, enfim, conformes já as fermosas
Ninfas co'os seus amados navegantes,
Os ornam de capelas deleitosas
De louro e de ouro e flores abundantes.
As mãos alvas lhe davam como esposas;
Com palavras formais e estipulantes
Se prometem eterna companhia
Em vida e morte de honra e alegria


Em seguida surge a apresentação, amor e união de Vasco da Gama com a deusa ou ninfa principal Téthys : 

                                                                                86
Que, depois de lhe ter dito quem era,
Cum alto exórdio, de alta graça ornado,
Dando-lhe a entender que ali viera
Por alta influição do imóbil fado,
Pera lhe descobrir da unida esfera
Da terra imensa e mar não navegado
Os segredos, por alta profecia,
O que esta sua nação só merecia,
87
Tomando-o pela mão, o leva e guia
Pera o cume dum monte alto e divino,
No qual uma rica fábrica se erguia,
De cristal toda e de ouro puro e fino.
A maior parte aqui passam do dia,
Em doces jogos e em prazer contínuo.
Ela nos paços logra seus amores,
As outras pelas sombras, entre as flores.

Em seguida a este amor natural e total, e descrito extensa, e ora detalhadamente ora mais secretamente ("doces jogos e em prazer contínuo"), numa certa apoteose do amor pleno entre "a formosa e a forte companhia",  introduz Camões, por si ou por pressão dos censores e familiares do Santo Ofício, um passo hermenêutico que reduz o perigo de suspeita de paganismo ou de uma ilha paradísiaca (do persa avéstico, pairidaeza, jardim protegido) erótica algo influenciada pelo Islão:
                                                     88
«Que as Ninfas do Oceano, tão fermosas,
Téthys e a Ilha angélica pintada,
Outra cousa não é que as deleitosas
Honras que a vida fazem sublimada.
Aquelas preeminências gloriosas,
Os triunfos, a fronte coroada
De palma e louro, a glória e maravilha:
Estes são os deleites desta Ilha.

e assim tais deleites ou estados mitificados de deuses ou semi-deuses correspondem a seres humanos que tal alcançaram:
                                                      90
Por obras valerosas que fazia,
Pelo trabalho imenso que se chama
Caminho da virtude, alto e fragoso,
Mas, no fim, doce, alegre e deleitoso.
Há então que lutar e esforçar-nos por sairmos da nossa condição de adormecidos, manipulados, enfraquecidos, escravizados:
                                                       92
Por isso, ó vós que as famas estimais,
«Se quiserdes no mundo ser tamanhos,
Despertai já do sono do ócio ignavo.
e após ter aconselhado a pôr-se  «na cobiça um freio duro, e na ambição também», e a dar-se «na paz as leis iguais, constantes, que aos grandes não deem o dos pequenos», termina  magistralmente o canto, perenizando o estado de habitante da ilha do Amor para os que vierem a ser heróis esclarecidos:
  95
E fareis claro o Rei que tanto amais,
Agora com os conselhos bem cuidados,
Agora com as espadas, que imortais
Vos farão, como os vossos já passados.
Impossibilidades não façais,
Que quem quis, sempre pôde; e numerados
Sereis entre os Heróis esclarecidos
E nesta Ilha de Vénus recebidos
.
 
 O canto X e último começa com a descrição do banquete dos casais conformes, unificados e reluzentes, ou espiritualmente desvendados, ou mesmo de almas gémeas, se é que esta complementaridade existe mesmo na primordialidade descrita no Banquete por Platão com as imaginações formais que ele pode intuir ou imaginar: 
2
Quando as formosas Ninfas, com os amantes
Pela mão, já conformes e contentes,
Subiam pera os paços radiantes
E de metais ornados reluzentes,
Mandados da Rainha, que abundantes
Mesas d'altos manjares excelentes
Lhe tinha aparelhados, que a fraqueza
Restaurem da cansada natureza.

Segue-se a descrição profética e órfica, por uma Ninfa dos sucessos futuros dos Portugueses no Oriente, heróis que receberão a glória, as honras e os gostos da Ilha, segredos ques ela soubera do sábio e auto-metamorfoseador Proteu, filho do Oceano e de Téthyis, que os vira clarividentemente numa espécie de órgão, taça ou globo transparente, interior ou exterior, uma boa imagem operativa religante para se contemplar: 
                                                         7
«Com doce voz está subindo ao céu
Altos varões, que estão por vir ao mundo,
Cujas claras Ideias viu Proteu
Num globo vão, diáfano, rotundo,
Que Júpiter em dom lho concedeu

Em sonhos, e depois no Reino fundo,
Vaticinando, o disse, e na memória
Recolheu logo a Ninfa a clara história.

Após esta valorização duma clarividência profética outorgada pelo Supremo Deus, Jupiter Optimus Maximus, ainda que com um recurso a uma taça ou globo, narra a heroicidade doutros lusitanos, tal Duarte Pacheco Pereira, e não se esquece de referir mais uma vez a ajuda da santa guarda Angélica, pela qual a fundamental Providência divina do mundo se exerce, no caso fortalecendo a alma e intensificando o coração espiritual: 
                                                      20
Ou que os celestes Coros, invocados,
Descerão a ajudá-lo e lhe darão
Esforço, força, ardil e coração
 
Nomeia e sumariza a vida no Oriente de outros heróis, tais D. Francisco de Almeida e seu filho D. Lourenço, dando ainda conselhos e bênçãos a Camões que os pedira face aos poucos apoios que recebia.
Vem por fim
o ponto alto da comemoração do Amor e da demanda unitiva dos navegadores, sendo apresentada a capacidade de  se alcançar a visão beatífica da Ordem do Universo, da máquina do mundo e do que da Divindade ou Bem supremo se pode captar, pois após os longos e prazentosos momentos do amor venusiano terrestre, a Vénus Celestial, através de Téthys como guia, qual Beatriz para Dante na Divina Comédia, gera o momento mais sublime dos Lusíadas, quando chegados ao cume do alto monte do Amor Vasco da Gama pode contemplar o uniforme e perfeito globo, gerado "pelo Saber alto e profundo, que é sem princípio e meta limitado".
Avancemos na aproximação à Sapiência Suprema
, com que Camões nos inicia com estas visões (mais subtis que físicas) e palavras, ou logoi, outorgadas pela Vénus celestial ou urânica através da revelação da deusa Téthys a Vasco da Gama, com quem já se unira amorosamente e que se comove agora com a desvendação clarividente da grandeza do Cosmos, que significa um todo harmonioso:

                                    

        76
–«Faz-te mercê, barão, a Sapiência
Suprema de, cos olhos corporais,
Veres o que não pode a vã ciência
Dos errados e míseros mortais.
Segue-me firme e forte, com prudência,
Por este monte espesso, tu cos mais.»
Assi lhe diz e o guia por um mato
Árduo, difícil, duro a humano trato.
79
Uniforme, perfeito, em si sustido,
Qual, enfim, o Arquétipo que o criou.
Vendo o Gama este globo, comovido
De espanto e de desejo ali ficou.

Diz-lhe a Deusa: – «O transunto, reduzido
Em pequeno volume, aqui te dou
Do Mundo aos olhos teus, pera que vejas
Por onde vás e irás e o que desejas

80
«Vês aqui a grande máquina do Mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assi foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.

 Após esta primeira focalização no mistério da Divindade e na máquina ou ordem do mundo fabricada segundo o arquétipo  dela, criado pelo Saber alto e profundo, incognocível e só Auto-cognoscível, isto é, Deus, sem princípio nem fim, e que a Deusa apresenta a uma escala humana mas que permite a orientação futura para o que se deseja ela explica ao olhar de Vasco da Gama, humano e na Terra e, logo, correctamente geocêntrica, os níveis sucessivos das dez ou nove orbes,  e das causas segundas ou anjos da celeste companhia ou ainda  "espíritos mil" com que a Providência divina governa e sustenta o universo, e é nas estâncias 81 a 85 que se descreve o nível mais alto do Universo, o Empíreo, onde as almas  puras ou mundas (não imundas) contemplam e regojizam-se com o Bem supremo ou Sumo Deus e a sua Mão providencial, dinamizada universalmente por mil espíritos. Oiçamos então as estâncias 81, 83, 84 e 85, com sublinhados do mais valioso:

Este orbe que, primeiro, vai cercando
Os outros mais pequenos que em si tem,
Que está com luz tão clara radiando
Que a vista cega e a mente vil também,
Empireu se nomeia, onde logrando
Puras almas estão daquele Bem
Tamanho, que ele só se entende e alcança
,
De quem não há no mundo semelhança.

E também, porque a santa Providência,
Que em Júpiter aqui se representa,
Por espíritos mil que têm prudência
Governa o Mundo todo que sustenta

(Ensina-lo a profética ciência,
Em muitos dos exemplos que apresenta);
Os que são bons, guiando, favorecem,
Os maus, em quanto podem, nos empecem;

Quer logo aqui a pintura que varia
Agora deleitando, ora ensinando,
Dar-lhe nomes que a antiga Poesia
A seus Deuses já dera, fabulando;
Que os Anjos de celeste companhia
Deuses o sacro verso está chamando,

Nem nega que esse nome preminente
Também aos maus se dá, mas falsamente.

Enfim que o Sumo Deus, que por segundas
Causas obra no Mundo, tudo manda.

E tornando a contar-te das profundas
Obras da Mão Divina veneranda,
Debaixo deste círculo onde as mundas
Almas divinas gozam
, que não anda,
Outro corre, tão leve e tão ligeiro
Que não se enxerga: é o Mobile primeiro.»

 Após esta notável visão do Empíreo, o plano mais elevado das orbes que circundam a Terra, seguindo a concepção astronómica plotemaica (a tradicional geocêntrica, já que a heliocêntrica de  Copérnico ainda pouco se afirmava), e  as descrições das nove orbes do humanista e cosmógrafo Pedro Nunes, passa à caracterização sumária do Primeiro Móbil, do Céu Cristalino e do Firmamento, neste nível se movendo as Estrelas fulgentes e as doze Constelações animais ou zodiacais, e depois  as sete Esferas, orbes ou círculos dos Planetas clássicos, onde se inclui o Sol, e por fim os quatro Elementos. Aterrará na Terra, com as suas diferentes partes, gentes e  e costumes, dentro de uma certa unidade benigna ou universalidade fraterna e multipolar ainda que algo ainda eurocêntrica e cristocêntrica, conforme o pioneirismo e missionarismo lusitano da época.

 Narrará, após a descrição da Arábia e da Pérsia, bem mais extensamente a da Índia, desenvolvendo longamente (da est. 108 à 118) a história do provavelmente mítico fundador do Cristianismo na Índia, S. Tomé, e em contrapartida não refere o missionário jesuíta do Oriente S. Francisco Xavier, e que tanto sacralizaria Velha Goa, quem sabe se por alguma rivalidade da ordem dominicana com a Companhia de Jesus. A est. 118 merece ser transcrita porque  ecoará em outros autores e pregadores (tal Sebastião Toscano, a propósito de Afonso de Albuquerque) e porque mais uma vez enaltece a fraternidade inspiradora e providencial angélica, além da, detestada pelos Protestantes, intercessão dos santos, uma forma de fé activa no corpo místico da cristandade e humanidade:

 «Choraram-te, Tomé, o Ganges e o Indo;

Chorou-te toda a terra que pisaste;
Mais te choram as almas que vestindo
Se iam da santa Fé que lhe ensinaste.
Mas os Anjos do Céu, cantando e rindo,
Te recebem na glória que ganhaste.
Pedimos-te que a Deus ajuda peças
Com que os teus Lusitanos favoreças.

E  lança ousadamente uma advertência contra o laxismo ou falta de espírito evangélico exemplar e logo missionário dos religiosos, que abreviará porém logo no primeiro verso da est. 120: «Mas passo esta matéria perigosa», muito provavelmente mencionando veladamente com tal o líder dos humanistas Erasmo, que por mais de uma vez propusera esse tipo de reforma, e muitas censuras e oposições recebera.
Será só após descrever brevemente Benares - a cidade sagrada onde os hindus acreditam que se morrerem e forem banhados nas águas santas e purificadoras do Ganges ao Céu se encaminham -, Bengala,  Pegu, Samatra, Sião, as zonas budistas do Cambodja,  China, Japão Timor,  Ceilão, Madagáscar e  Brasil, que regressa às núpcias carnais e alquímicas e às realizações espirituais dos argonautas portugueses, com estâncias bem valiosas, pois a ninfa Téthys reiteira a eternidade do feito histórico e espiritual dos nautas, e o acesso perene à ilha angélica, e permite-lhes embarcarem de regresso à Pátria e ao Tejo ameno, deixando a Ilha alegre, namorada:
                                                                                142
Até 'qui Portugueses concedido
Vos é saberdes os futuros feitos
Que, pelo mar que já deixais sabido,
Virão fazer barões de fortes peitos.
Agora, pois que tendes aprendido
Trabalhos que vos façam ser aceitos
Às eternas esposas e fermosas,
Que coroas vos tecem gloriosas,
143
«Podeis-vos embarcar, que tendes vento
E mar tranquilo, pera a pátria amada.»
Assi lhe disse; e logo movimento
Fazem da Ilha alegre e namorada.
Levam refresco e nobre mantimento;
Levam a companhia desejada
Das Ninfas, que hão-de ter eternamente,
Por mais tempo que o Sol o mundo aquente.

A Deusa, da ilha do Amor, capaz de penetrar no tempo eterno, ensinar-lhes-á ou desvendar-lhes-á as missões futuras e enaltecerá tais cavaleiros e marinheiros dirigindo-se ao rei de Portugal em versos valiosos (e extensos, pois Camões sabia bem quão desamparado fora tantas vezes e defendia o seu e o bem comum), estimulando-o a favorecê-los (e ainda os religiosos que oram, jejuam se disciplinam e não têm ambições), pois estão prontos a servir o rei, a pátria, a virtude, as musas,  com a sua abnegação e experiência, coragem e sabedoria, que harmonizam e religam a terra e o céu.
Quando já regressados às Tágides e a Por
tugal o que sobreviverá da visão do Cosmos divino e da união com a ninfa Téthys na alma e memória de Vasco da Gama, bem como das uniões dos marinheiros portugueses com as suas contrapartes femininas, ninfas eternamente jovens, ou formas espirituais conhecidas, pois não sabemos a que níveis as quis e projectou Camões: como virtudes, como amadas, como musas, como almas-gémeas, como ligação espiritual?  Talvez se possa dizer que tais potencialidades vibram desafiante e benignamente no mundo imaginal e espiritual para os que tentam subir ou estabilizar-se no alto monte do Amor ou no seu cume.

E quantos portugueses, ou mesmo descendentes dos nautas, conseguem hoje actualizar os seus feitos, recuperar a vivência da Ilha do Amor, seja consortemente seja íntima e clarividentemente, e lutar para que ela não seja tão sangrada ou impedida no mundo pelos governos e fóruns mais insidiosos e criminosos, assim alcançando  a intuição comungante com a Ordem e Providência Divina, Rita e Dharma na Índia, e manifestando-a criativa e fraternamente com os animais, os humanos, os espíritos, os santos e santas, mestres e Anjos?
Avancemos em invocação e comunhão corajosa com Luís de Camões, Vasco da Gama, Nicolau Coelho e os outros portugueses que pelos esforços e feitos, arte, gentileza e engenho se alinham com a Providência Divina e as Causas segundas e se tornam merecedores da ilha e monte do Amor...

Sem comentários: