Heliogravura de Alfred Bramtot, para a bela edição d' Os Lusíadas de 1890. |
Sofia do Roure Auffdiner, Viscondessa de Vila Maior ao casar-se em 1839 com Júlio Máximo de Oliveira Pimentel, reitor da Universidade de Coimbra e 2º Visconde de Vila Maior, nascera em Lisboa a 17 de Março de 1821 e foi já após a morte do marido e com cinquenta e cinco anos de idade que deu à luz as suas primícias na Imprensa da Universidade de Coimbra: um in-8º de XL-227 páginas, intitulado Poesias Lyricas selectas de Luiz de Camões, destinado a proporcionar ao público e aos estudantes do secundário uma selecção das melhores criações do genial vate e começar a comemorar os 300 anos da sua morte. E assim sucederia pois, dado o sucesso da obra, em 1880, sairia a 2ª edição. Colaborara antes no jornal A Semana, e na Revista Popular, dirigidos respectivamente por Silva Túlio e Latino Coelho. Em 1896 veio a colaborar ainda na antologia Parnaso Mariano, coligida por Abílio Augusto da Fonseca Pinto, ombreando com Camões, Antero (À Virgem Santíssima) e tantos outros poetas e escritores que cantaram Maria mãe de Jesus, com um belo conto A Flor Milagrosa. O Parnaso Mariano encontra-se online na Internet Archive.
Em seguida justifica-se: «Se ousamos escrever uma notícia, e fazer uma apreciação livre da vida e carácter de Luís de Camões, esperamos que a mais profunda admiração sirva de salva-guarda a tamanha ousadia, e nos resgate de atrevimento», e adianta: «Depois tentamos ainda mais: fizemos selecção do mais apurado das poesias líricas do nosso imortal Poeta, formando delas um só volume, por julgar que assim ficam mais ao alcance de muitas inteligências, que têm sem dúvida a capacidade de as entender, mas não a paciência necessária para indagar, por entre milhares de versos, quais os seduzem e lhes agradam mais», sem dúvida uma tarefa meritória, tal como eu fiz recentemente, muito diminutamente, em: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2024/06/os-melhores-sonetos-de-luis-de-camoes.html
Após uma citação preliminar de Edgar Quinet, na época mestre também de Antero de Quental, e anote-se que Antero possuía este livro da Viscondessa de Vila Maior (anotado com oito discordâncias da autoria quanto ao que o Visconde de Juromenha estabelecera), segue-se um valioso prefácio, Ao Leitor, assim iniciado:
«Através das vicissitudes da existência, no meio dos mais dolorosos transes, sentimos quase sempre alguma esperança que nos socorre, vemos alguma luz que nos guia, e achamo-nos ligados ao mundo não só pelos laços da família, da amizade, mas também por essa oculta e invisível simpatia, que é um dos ímanes da vida, que misteriosamente nos atrai, e nos leva a crer - que as lágrima sinceras são as pérolas que Deus aceita, que um eco responde pelo mundo a nossos lamentos, que as ideias se reproduzem de espaço em espaço, formando essa mágica cadeia que liga um pensar a outro pensar, um sentir a outro sentir, e que nos dá a certeza de que ao nosso espírito correspondem outros, silfos benfazejos que não vimos, mas que pressentimos.»
Após esta belíssima aproximação sentida ao mistério do corpo místico da Humanidade, ou à comunicação, acima das limitações corporais e espaço-temporais, entre espíritos, anjos, ou silfos, como escreverá talvez usando a linguagem da antiguidade, na linha de Camões, para deuses menores, daimons, génios benfazejos, a nossa homenageada prossegue com outra linha de força tão sentida por alguns de nós nesta travessia da vida:
«Daí nos vem esta necessidade da palavra escrita, que vai, qual semente levada pelo Oceano, procurar um abrigo onde frutifique, quer seja porque um pensamento a decifrou, ou porque um coração lhe deu alento. Assim, nada mais natural e perdoável do que esta expansão dos que sofrem, já pelos revezes da sorte, ou pelos padecimentos que lhes vão roubando depressa a vida; e não menos por esta natural aspiração da alma, que sempre ao longe tenta procurar o seu infinito!»
E esta aspiração anímica a que infinito seu é, perguntaremos à Viscondessa de Vila Maior? O infinito de máximo conhecimento, o infinito da vida no além, o infinito como absoluto, como plenitude, do Amor? Meditemos então nesta aspiração de tentar encontrar, sentir, ver, realizar o nosso Infinito...
A selecção lírica é antecedida, e não poderemos saber bem quem a leu e a apreciou, ou mesmo a quem ela deu a ler, por uma Introdução de vinte e seis páginas, das quais resgataremos alguns dos pensamentos e sentimentos valiosos de uma escritora e camoneana completamente ignorada, de grande sensibilidade e auto-conhecimento, maturidade e espiritualidade, fraternidade e universalidade, qual co-discípula de Antero, tal como podemos ler no início:
«Vai-se o pensamento calmando, aquietando logo que se deixam os grandes tumultos, as grandes cidades, os grandes focos da civilização - campo vasto, imenso, onde tudo se elabora, onde as inteligências lutam, sofrem e saem vitoriosas da incessante fusão do espírito humano, fazendo surgir as grandes maravilhas da arte, as descobertas da ciência, e por fim, mostrando ao mundo os fachos luminosos do progresso. Porém, como dizíamos, ao passo que nos desprendemos do turbilhão, e quando já se alarga o círculo das ideias e estranhas, que nos rodeavam, então claramente sentimos renascer uma outra ordem de sensações. À medida que nos isolamos cresce o sentimento da nossa individualidade; à medida que nos concentramos, surgem mais fortes as nossas impressões. A reflexão torna-se mais íntima (...) e pouco a se lhe vai infiltrando um sentimento que em si abrange todos os outros - sentimento que diz humanidade, que diz fraternidade, que diz família, que diz amor, que diz maldição num grito de vingança, que diz morte num grito doloroso, que diz céu, pátria, liberdade, num grito de entusiasmo e sentimento, que nos faz amar as terras, os lares dos nossos irmãos, ainda os mais remotos e afastados; sentimento grandioso e sublime quando o generalizamos e que fica sempre sublime e grande (...)».
Pintura de José Malhoa, contemplável no Museu Militar, em Lisboa. |
É só depois de valorizar muito a conservação dos vestígios do passado, dos monumentos, das casas, dos ambientes, das pedras e árvores de Portugal e de narrar uma sua visita a Aljubarrota e à Batalha, onde sentiu no Graal do seu coração um grande amor pelo poeta de Portugal, que biografa sumariamente a sua vida, lembrando-nos que «foram seus pais Simão Vaz de Camões, e Ana de Sá e Macedo» e, importante, «seu quarto avô foi Vasco Peres de Camões, que em tempo de el-rei D. Henrique de Castela passou da Galiza a Portugal: neste reino casou com uma filha de Gonçalo Tenreiro, general das armadas de Portugal e mestre da Ordem de Cristo».
A feminilidade da Viscondessa de Vila Maior surge bem expressa a propósito de Camões não ter falado dos seus pais, questionando-o: «Pois quê!, poeta; nem uma voz para esses que te deram o ser, a quem devias teu nome, teu saber, teu nobre carácter, teu elevado espírito?», e no destaque amoroso e belo mas talvez algo exagerado que faz: «Dona Catarina de Ataíde é para Camões o símbolo da perfeição, e ousamos dizer que poeta algum na antiguidade elevou o culto do amor a tão brilhante esfera. Nos retratos, que Luís de Camões faz de sua dama, se misturam sempre virtudes e graças, assim em grinaldas de flores, belezas e perfumes. E tal foi o respeito e pureza da sua afeição, que hoje ainda aquele nome é lindo mistério que vemos brilhar através de um prisma.
Foi em Coimbra que ao imortal poeta apareceu essa visão que para sempre o deslumbrou. Comparando a canção IV «Vão as serenas águas / Do Mondego descendo», e o soneto que começa: «O culto divinal se celebrava,» não se duvida em reconhecer esta verdade. A índole do soneto é mais misteriosa; contudo cremos que no recinto divino teve maior desenvolvimento a afeição já esboçada no coração do poeta, a beleza, contemplada assim por entre o trémulo brilho das luzes do santuário, lhe fazia flutuar a imaginação entre a mulher e o anjo. E foi tão certa em Camões a vibração desta ideia fixa, que, no decurso de sua agitada vida, não achou tréguas a tão acerbo mal».
Terá sido assim mesmo, tal sofrimento em toda a vida, ou Camões conseguiu desprender-se de tal paixão inicial não correspondida, e apenas volta e meia a homenageasse, encontrando noutras mulheres, presentes em vários poemas, a mesma visão encantadora da mulher e anjo?
Muito valiosas e belas são as reflexões que a nossa escritora tece a propósito da Providência divina ou Logos spermatikoi, ou Harmonia que tudo rege, e da Voz da Consciência, na génese dos Lusíadas em Camões, e portanto da sua partida para a Índia: «o poeta, desterrando-se agora voluntariamente, obedecia àquela voz interior, que todo o homem e mulher sente vibrar em si e que mais clara se ouve e escuta nos grandes conflitos da existência; voz quase sempre severa e rude; voz por vezes branda, e que parece implorar; voz sempre santa e libertadora: mal vai a quem a não seguir». E mostrará em seguida os aspectos mais valiosos da sua vida de guerreiro e poeta...
Saibamos pois meditar e ouvir mais a voz interior, o som e palavra do espírito divino, e até em comunhão com a Viscondessa de Vila Maior e do vate Luís de Camões, e a quem homenageamos e congraçamos neste dia 10 de Junho de 2024, invocando e evocando ainda a Tradição Espiritual Portuguesa e o Arcanjo de Portugal, para que os portugueses se abram mais a eles e à justiça, fraternidade e multipolaridade harmonizadoras da Humanidade e do Planeta,
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