segunda-feira, 24 de junho de 2024

In Memoriam de José Teixeira da Mota, e da sua livraria Antiquário do Chiado. E pequena meditação-oração por familiares e amigos que deixam a Terra, em vídeo.

                 

Um dos bons livreiros alfarrabistas de Lisboa, José António de Lencastre Teixeira da Mota, acabou de deixar o seu posto de conselheiro de almas e cuidador e transmissor de livros, funções que exerceu com grande sensibilidade e disponibilidade, gosto e erudição, desde 1990, quanto tomou conta da antiga Livraria Moreira & Almeida, sita na Rua Anchieta, nº7,  perto da centenária Livraria da Bertrand e,  acrescentando-lhe o nome de Livraria Antiquário do Chiado e devolvendo-a à sua traça setecentista, a metamorfoseou luminosamente num espaço acolhedor e harmonizador, com gravuras,  mapas, obras de arte, manuscritos, folhetos de cordel,  e naturalmente  bons livros de Literatura, nomeadamente séc. XX e modernistas e surrealistas, História, África, Oriente, Viagens, Estrangeiros sobre Portugal, Etnografia, Religião e outros temas. Em simultâneo à actividade de livreiro, na qual publicou oito catálogos de notável qualidade de obras, descrições e grafismo, e em que participou em Bienais e exposições, fez investigação histórico-genealógica, editando um Brasonário da Nobreza de Portugal,  inédito, do século XVII, e elaborou um precioso catálogo (ainda por publicar) das edições ao longo dos séculos do mítico Livro das Sete Partidas do Infante D. Pedro.

Foral de Vila Verde (dos Francos), dado por D. Manuel em 1513 e assinado por Fernão de Pina

 Este catálogo de Outubro de 2008 continha algumas obras extraordinárias, tais documentos reais dos séc. XIV e XV, dois manuscritos de Almada Negreiros e José Régio e uma Iluminura excepcional, assim descrita: «Estêvão Gonçalves. Iluminura sobre pergaminho de 14,9 x 10,0 cm. Assinado "Stepha Gonçalves".
Estêvão Gonçalves foi Abade de Serem e capelão d
o Bispo de Viseu. Nasceu no século XVI e morreu em 1627, como diz Taborda nas Regras da Arte da Pintura. Foi o célebre artista que fez as iluminuras do notável Missal de Estêvão Gonçalves, que se guarda na Biblioteca da Academia das Ciências em Lisboa. Nas palavras de Esteves Pereira, falando deste missal, "Este primoroso manuscrito iluminado, com quanto já pertença ao século XVII, merece o lugar mais distinto, o mais eminente entre os manuscritos iluminados".
Era sobre o missal de Estêvão Gonçalves que juravam os no
ssos reis quando eram aclamados. Do nosso conhecimento é o único [grande] iluminador português que assinava por vezes as suas miniaturas. Muito raro e de grande beleza.» Quem será o feliz custódio?

Já no catálogo de Setembro de 2009, a apresentação dizia: «Cada uma das obras que faz parte deste catálogo, foi cuidadosamente escolhida pelo seu interesse, raridade, estado de conservação. Gostaria de partilhar a sua história, a sua iconografia, ou a beleza da sua composição ou encadernação com todos os verdadeiros bibliófilos.
Quero aproveitar também para agradecer aos meus clientes, colegas e amigos, todos os encorajamentos recebidos, que me incitam a continuar o trabalho começado, esforçando-me sempre por melhorá-lo.
Não me esquecendo que somos todos muito solicitados pelos n
umerosos catálogos que recebemos, dei maior realce à representação gráfica das obras, tendo voluntariamente restringido a descrição das mesmas com apenas um pequeno comentário», mesmo assim razoável e bem esclarecedor...

De destacar foi também sempre a qualidade das suas montras, e no ano de 2013 foi mesmo considerada como a melhor montra livreira do Natal, bem se diferenciando, por exemplo, dos livros cor de rosa, ou romances históricos ou outros repetitivos, presentes em todos os aeroportos e bookstores do mundo. Consagrei-lhe um artigo neste blogue: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2013/12/melhor-montra-de-natal-alfarrabista.html

O ambiente antigo e estético da livraria, os livros e obras nela contidos e a sua sensibilidade e boa bagagem de conhecimentos sobre antiguidades (já que fora antiquário, com a sua mulher, na Clepsidra), livros, manuscritos, cartas pré-filatélicas, cédulas antigas, gravuras e mapas, permitiu-lhe ser um excelente descobridor de obras boas e raras e um valioso conselheiro para investigadores, colecionadores, bibliófilos e colegas de profissão, que o visitavam e conversavam,  e ora lhe compravam ora lhe pediam a opinião (nomeadamente sobre mapas antigos, e gravuras de Lisboa), havendo ainda a registar o convívio durante uma certa época num almoço semanal com alguns dos livreiros.

 Destacar nomes dos que passaram mais tempo em convivência é sempre melindroso, mas António Barreiros (Cardoso), Sigismundo Bragança, Almeida Dias, João Alarcão, Jorge Brito e Abreu, Lourenço de Sousa, Daniel Pires, João Esteves, Filipe Loulé e Sérgio Moreno foram dos que mais apreciaram e desfrutaram a sua alma e livraria. Mas como amigos, visitantes, compradores e dialogantes, houve muitos desde José V. Pina Martins, Mariano Gago, Martim de Albuquerque, Carlos Monjardino, D. Diogo de Bragança, Miguel Faria, José Castelo Branco (Fornes), Eng. Melo Mendes, Perry Vidal, Gustavo Andersen, Ricardo Sá Fernandes, Paulo Falcão Tavares, Silvina Pereira,  José Francisco de Noronha, Paulo Waschman, Rízio, ou os confrades Isabel Maiorca, Margarida Teles da Silva, Margarida Rebelo, Luís Burnay, Alfredo Gonçalves, Ernesto Martins, Richard Ramer, Comandante Palma, Luís Gomes, Nuno Franco, Carlos Bobone, Freitas e o já mencionado Lourenço de Sousa, e perdoem-me os que esqueço, tanto mais que na rua e quase à porta da livraria realizava-se (e realiza-se) aos Sábados a Feira dos Alfarrabistas. Do livreiro e leiloeiro José Manuel Rodrigues ouvimos hoje a sua afirmação sentida: «era um joia de pessoa. Quantas vezes me ajudou em certas identificações ou descrições mais difíceis...»

Luís, José, Pedro e Francisco, há uns bons anos, aquando dum casamento.

Sendo irmão mais novo, ele o quarto e eu o sétimo, duma família de nove irmãos e irmãs, e de pais e antepassados ligados à cultura e ao amor de livros, logo com boas bibliotecas, dele não poderia deixar de referir como como nos apoiou, seja em estadia na sua casa, já que esteve alguns anos em França, seja ainda em livros e conselhos, tanto mais que trabalhei para ele em algumas feiras de livros ou mesmo na livraria. Do seu grande amor pelos livros falam ainda eles próprios, agradecendo as muitas encadernações boas com que ele os revestiu, preservou e embelezou, nomeadamente através dos encadernadores Vasco Antunes e Império Graça, este também o preferido do prof. Pina Martins, que visitava com regularidade as livrarias do Manuscrito Histórico, Biblarte, Olisipo, Arte e Letras,  a Campos Trindade e Antiquária do Chiado, referindo o meu irmão, nomeadamente por adquirir-lhe um dos primeiros manuscritos sobre a livraria real em Portugal, na sua tão erudita quão divertida obra Histórias de Livros para a História do Livro, editada pela Fundação Calouste Gulbenkian, onde o prof. Pina Martins trabalhou vários anos, marcando a época mais humanista desta tão valiosa e histórica Fundação.

A mulher  Margarida Teixeira da Mota, notável antiquária e empreendedora, foi uma excelente e amorosa companheira, praticamente toda a vida, tal como os dinâmicos quatro filhas e filhos, Maria e Teresa, Filipe e Tomás, e nos últimos anos com os netos e netas. O Zé era basicamente um pater familias, e os seus melhores momentos eram com eles, tendo-lhes dado muito de alegria e lucidez, exemplos e valores. Muita amizade dinâmica e bem disposta viveu ainda com primos, primas e amigos nas casas do Outeiro em Mondim e na casa da Cruz Gagos, nas Terras de Basto dos seus avoengos paternos, e com amigos e amigas em Vila de Conde, Lisboa e Paris, tais os pintores Luiz da Rocha, Cargaleiro, Rodrigo Ferreira e a poetisa Merícia de Lemos, ou muitos dos atrás referidos.

Neste catálogo realçou, num caderno manuscrito de 94 p, intitulado Exterminio da Inglaterra. Trovas alegres por Camilo Castelo Branco, Visconde de Correa Botelho,  «a muito comovente descrição da morte de Camilo Castelo Branco narrada pelo seu filho Nuno», e «as duas maquetas de António Pedro para o Nº3 da revista Variante, mostrando as ligações deste ao surrealismo internacional».

O que se poderá mais dizer senão que o José Teixeira da Mota foi mais um amante e sábio dos livros que ilustrou e beneficiou a pátria e a gente lusa e que partiu rumo ao mundo Espiritual, onde já se encontra, no plano de luz e de amor e com a consciência que lhe corresponde e que só os desígnios da Providência Divina conhecem plenamente, restando-nos desejar-lhe ou orar para que a sua alma espiritual esteja numa luminosa ascensão, tal como eu fiz, durante dez minutos e gravei em vídeo, neste interim entre a sua desincarnação física - que foi calma e desprendida, diante da estante dos seus livros preferidos e da qual peguei na altura num do Herberto Hélder, um dos seus autores preferidos e abri à sorte, o istixara persa, uma página lendo-lhe o início dum poema que referencia um dos míticos antepassados de muitos portugueses, Carlos Magno -, e a velada a realizar-se Quarta-feira, 26 de Junho, a partir das 18 horas, e missa a 27, às 15 horas, na Basílica da Estrela, consagrada ao sagrado coração de Jesus, e que encontrará num barro português também no vídeo-áudio (pois é na realidade para se ouvir e sentir), e que desejamos que esteja bem aceso na sua e nossa alma...

Ps.Acrescente-se que na noite anterior à sua partida, recebendo a extrema unção do padre Vasco Magalhães, primo direito da mulher, a propósito deste lhe falar em "descansar na mão de Deus", o Zé recitou de cor o belo soneto de Antero, Na mão de Deus, capacidade que ninguém da família sabia, e que manifesta a sua inserção na tradição anteriana e espiritual portuguesa, tal como eu já referira quanto a este poema: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2016/07/antero-de-quental-e-nos-na-mao-de-deus.html, e na sua utilização como bom encaminhar em: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2022/11/antero-de-quental-um-bardo-thodol-um.html.

                        

2 comentários:

Anónimo disse...

Deixará muitas saudades!

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Para algumas pessoas, certamente, mas para outras já não, quer pela franca, instrutiva ou bem disposta conversa ou convivência realizada plenamente, quer porque estando cientes da imortalidade do espírito não sentem tanto o desaparecimento físico dele, agora a viver nos mundos psico-espirituais, onde desejamos ou oramos que a luz e amor divinos e os seus intermediários o vão impulsionando na sua ascensão. Graças.Lux.