sábado, 15 de junho de 2024

A Sabedoria dos cavaleiros do Amor portugueses do séc. XVI: as Sentenças de D. Francisco de Portugal, 1º conde do Vimioso.


SENTENÇAS DO 1º CONDE DO VIMIOSO DOM FRANCISCO DE PORTUGAL
Frontispício, fac-similado por Mendes dos Remédio.

D. Francisco de Portugal foi um dos cavaleiros do Amor que floresceram em Portugal no século XVI, o último em que eles puderam livre, criativa e criticamente manifestar-se, já que a introdução do Tribunal da Inquisição começaria em breve a censurar, prender e castigar quem fosse considerado menos conforme às doutrinas e dogmas da Igreja. Não sendo D. Francisco um cristão gnóstico, menos seguidor escrupuloso dos preceitos e ideias, não teve que recear problemas e tal como ele, ao longo dos séculos seguintes, continuou a haver cavaleiros ou fiéis do Amor, guerreiros, corajosos, esforçados, nobres, dedicados à honra e ao amor, capaz de terçarem armas pela pátria e escreverem ao amor da dama ou à liberdade da Sabedoria.

Nascera filho natural de D. Afonso de Portugal, e de uma descendente de Nuno Álvares Pereira (quando D. Afonso ainda não era religioso, onde chegou a bispo de Évora) e era neto do 1º marquês de Valença. Em 1505 foi legitimado pelo rei D. Manuel, que em 1515 fundou para ele o condado do Vimioso, e desde cedo se destacou pelas suas qualidades, tendo sido um dos cavaleiros que acompanhou D. Manuel a Castela quando este foi jurado príncipe, ou ainda a sua filha D. Isabel à Alemanha quando foi casar-se com o imperador Carlos V. No campo das armas brilhou em Arzila em 1509 e em Azamor em 1515, dirigindo tropas e chegando a dirigir Azamor. Foi depois Vedor da Fazenda e por fim educador ou Camareiro-mor dos filhos de D. João III, D. Manuel e D. João.
Foi casado duas vezes, primeiro com D. Brites Vilhena e depois com D. Joana de Vilhena, de quem teve quatro filhos, e destacou-se, além das armas e no conselho do Estado,nas obras de beneficiência que exercia, e na sabedoria que desenvolveu e que soube concentrar em máximas ou sentenças, escritas tanto em prosa como em quadras, sendo chamado o Catão português. Veio a morrer em 8 de Dezembro de 1549 em Évora bem preparado, pois sempre fora dedicado à oração, onde tinha o padroado da igreja de N. S. da Graça e o da capela mor do Convento de Santa Catarina de Siena, que protegia. A sua memória foi preservada por vários escritores, tais Damião de Goes, Jerónimo Osório, Pedro de Mariz ou Simão Coelho, na sua Crónica da Ordem do Carmo, I, 20: «Foi muito esclarecido em prudência, Cavalaria,  e todo o género de virtudes, pessoa de muita verdade com o seu Rei do qual com grande razão foi muito estimado, e juntamente com isto era muito justo com todos, e piedoso com os pobres». Já Soares Toscano, no Paralelo dos Varões Ilustres, cap. 125, descreveu-o assim: «Foi Varão de muito grande governo, confiança, autoridade, verdade, e cortesia por o qual alcançou grandes cargos, e ofícios nas Casas Reais... era naturalmente eloquente, e cheio de excelentes sentenças».
Em 1605, um seu neto, D. Henrique de Portugal, resolveu publicar a pedido de um amigo, D. António de Ataíde, a obra do varão ilustre e generoso que corria em manuscrito, e assim surgiu a 1ª edição impressa, em Lisboa, por Jorge Rodrigues, que leva dois textos (e bem valiosos) e dois sonetos dos dois amigos a antecederem a obra: D. António de Ataíde, confessa só compreender o atraso da publicação por o primo Henrique «(...) ver o mundo tão descomposto que não merece perfeições, e tão perdido que lhe não aproveitarão estes remédios, mas se Deus dilatara a Redenção até quando universalmente se houvessem os homens de aproveitar dela, eternamente estaria o Céu fechado.» Quanto a D. Henrique explica que introduziu no prefácio a carta encorajora de António de Ataíde «pela honra que a mesma pátria ganha em se saber que houve nela um homem tal sujeito, e para que nos desperte e anime o estímulo da emulação honrada a seguir com mais gosto o difícil caminho do melhor (...)»
Fim da apresentação da obra, pelo neto de D. Francisco de Portugal.
Trezentos anos depois o prof. Mendes dos Remédios resolveu reeditar a obra, no famoso editor conimbricense França Amado, com XIX páginas de um bom prefácio onde considera que «no género paremiológico, a que pertence, o trabalho de D. Francisco de Portugal era entre nós original e novo. Foi ele quem primeiro, entre nós cultivou esse género», e não Pedro Supico de Morais como um crítico alegara, e assim se tornou de novo acessível, num in-8º de XIX-124 p. A obra está dividida na I parte Sentenças, II parte, Outras sentenças em verso, III parte,  Poesias do Cancioneiro Geral, ou seja, colhidas dessa valiosa obra colectiva na qual  lhe estão atribuídas cinquenta e oito, a maioria trovas palacianas, de amor, elogio e sátira.
São inegavelmente as Sentenças o que é mais perene, pois encontramos nelas valiosa sabedoria psíquica, ética, moral, e vamos transcrever algumas delas, sem comentários, tanto mais que ainda  hoje são válidas e actuais:

 «O Bem se deve crer de todos e de ninguém o mal sem prova.

O grande espírito é igual, e rigoroso.

O freio do bom é Amor, e o do mau é temor.

Os bons sabem bondades, e os maus sabem malícias

Os pusilânimes prezam-se do que tem, e os magnânimos das obras que fazem.

Ouvir maus é criar maldades. 

Os fracos morrem após a vida.

O saber sem inteireza é uma roda de vento. 

Os magnânimos tem a honra dos seus por sua. 

Quem segue a alma sacrifica o esforço

A ignorância escandaliza o entendimento.

A desestima dos bons dá ousadia aos maus.

Para aconselhar, e ser aconselhado convém o entendimento nu da vontade.

Corrupto governo é usar primeiro do formoso que do necessário.

Se culpa a vida alheia seja com o teu exemplo, e não com o teu entendimento.

Quem muito estima coisas pequenas nunca faz nenhuma grande.

O fiel servidor não deve servir a quem dele senão fia.

Ninguém se fia de quem dele se não fia.

Onde as verdades falecem os enganos prevalecem.

As más suspeitas destroem as verdades. 

Apetito é grande vício.

O coração confiado e a razão desconfiada são para feitos grandes.

Os homens que não sentem são tanto pior que as bestas, quanto neles degenerou a natureza.

Ao bom somente o obriga o que a virtude obriga.

Não há buraco no mundo para escapar do mundo se não Deus.

Onde a razão se não ouve, doido é quem se não cala.

Quem não emudece vendo quem fala com as orelhas dos homens, e não com os corações dos homens.

O primeiro conceito do bom é cuidar de todos bem, e o do mau de todos mal.

As obras sem esperança são como corpo sem alma.

A ambição não ouve a razão alheia.

O coração livre despreza tudo o que errando se ganha. 

Ao ignorante sempre aborrece o sabedor.

Com grandes determinações, não lembram inconvenientes.

A quem não crê verdades dizem mentiras. [Tão actual, pla manipulação geral]

O poderoso deve ser sujeito à razão dos seus, e livre à sem razão dos estranhos.

O verdadeiro, a si mais que a todos deseja satisfazer.

As fracas conversações enfraquecem o forte.  

Quem quiser emendar o mundo seja em si. [Muda-te, que o mundo mudará]

Sem o uso da fortaleza, tudo é perigoso.

A ignorância obra monstros. [Saibamos detê-la]

Aonde a ignorância manda a malícia se assenhoreia.

A boa fortuna não somente faz as obras mas autoriza as palavras

O Y pitagórico, ou o bívio do discernimento: "Ao bom somente o obriga o que a virtude obriga."   Outro texto sobre o Y: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2024/04/reflexoes-sobre-y-pitagorico-com-um.html

Sem comentários: