Em Junho de 1912, há 111 anos, Teixeira de Pascoaes (1877-1952), em plena pujança do seu idealismo português e nortenho, proferia no Ateneu do Porto uma conferência publicada logo em brochura do movimento da Renascença Portuguesa, acerca do Espírito Lusitano ou o Saudosismo.
Publicara já nove dos seus 59 livros, talvez os principais em termos de poesia, e nesses anos após a Revolução do 5 de Outubro abriam-se grandes potenciais de transformação e sorriam ardentes esperanças de ressurreição. O movimento da Renascença da Portuguesa e mais concretamente a sua revista Águia (1910-1932) foram o principal dínamo e até ela afluíram de Lisboa, entre outros, Fernando Pessoa, Augusto de Santa Rita e Mário de Sá Carneiro, mas por pouco tempo e em breve Lisboa geraria o Modernismo, com a revista Orpheu, e o Futurismo, sintonizando com certas tendências europeias, e o sonho da Renascença Portuguesa dum Portugal tradicional, ligado às suas raízes cristãs e pagãs, e não dominado nem pelo catolicismo nem pelo europeísmo e francesismo iria apenas continuar em algumas individualidades que receberam o magistério dos seus fundadores Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra e Jaime Cortesão, e que chegaram até aos nossos dias, e destacaremos Álvaro Ribeiro, Sant'Anna Dionísio, Agostinho da Silva e Dalila Pereira da Costa, os quais naturalmente geraram outros elos, sobretudo o primeiro em tertúlias lisboetas.
Celebrando-se hoje 2 de Novembro (embora tenha sido na realidade a 8 de Novembro) o 147º aniversário de Teixeira de Pascoaes, aliás Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos, e para o
homenagear como elo importante da Tradição Espiritual Portuguesa, decidimos revisitá-lo lendo e
comentando a sua conferência pois, nos nossos dias em que já fomos tão
engolidos e descaracterizados pela entrada na União Europeia e tão
manipulados e desnacionalizados pelos meios de informação ao serviço do globalismo massificante da Nova Ordem Mundial transhumanista-infrahumanista-animalista, é sempre útil
qualquer reflexão que aborde questões como a alma portuguesa, ou o espírito de Portugal, pois os dois termos embora diferentes, são utilizados como referindo-se ao mesmo, no
sentido de podermos discernir melhor onde está, como está
constituída, como se caracteriza nos seus níveis e estados dinâmicos (o que foi bem especulado por Fernando Pessoa na sua carta ao conde Keyserling, por mim comentada já há alguns anos), e qual é a relação actual ou possível entre nós e ela.
Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes, seis anos mais velho. Luz e Amor!
Pujante da sua genialidade, e inserido numa dinâmica de grupo tão poderosa, nada menos que uma sinergia com valiosos seres como Leonardo Coimbra, Jaime Cortesão e outros, Teixeira Pascoaes ousou pensar que poderia na
época «em breves palavras dizer o que é o nosso espírito, na sua
vida original e criadora dum alto critério religioso e filosófico»,
e ao que se poderia acrescentar até o critério iniciático ou espiritual, se até ele se conseguir chegar ou merecer...
Todavia, ao dizer o nosso espírito ele não está a referir-se ao espírito ou arcanjo de Portugal, à
entidade celestial de Portugal mas mais a uma espécie de alma
colectiva, a um conjunto de forças, tradições, modos de sentir,
pensar, ver e ser que nos especificariam, e que ele depois em sucessivas conferências e escritos aprofundará.
Não está a vê-la apenas como um inconsciente colectivo, pois atribui-lhe (ou aos que a souberem sintonizar ou dar-lhes formas e altas ideias) uma missão no
domínio dos valores e logo das escolhas voluntárias e esforçadas e assim se
criar, estabelecer um alto critério psico-espiritual pelo qual
sabemos discernir melhor o que devemos valorizar, apoiar, realizar...
Teixeira Pascoaes vê então como caminho para tal uma
reconquista de independência moral, o vivermos não pela matéria mas "pelo espírito",
e acrescenta "nosso", pois certamente que a sua palestra e mensagem é
de recusa das opressões e influências alheias, e de assumir o espírito que
é vida e não a matéria, que ele classifica de morte.
Haverá talvez um
dualismo entre espírito e matéria algo exagerado, já que estão tão imbrincados, e que ele próprio e ao
longo da sua vida e obra irá perdendo ou amenizando em parte, pois ao espectrizar, eterizar e espiritualizar tanto a matéria
este dualismo inicial dissolver-se-á a certos níveis de sensitivo poeta e escritor, mas não tanto filosófica e religiosamente em que a luta polar, supremamente entre o bem e o mal, estará sempre presente...
Pascoaes não vai contudo falar dum Arcanjo de Portugal, nem num campo unificado específico psicomórfico de Portugal, mas mais na génese étnica dual e nas qualidades e aspirações que alguns seres ou o povo conseguiram e conseguem desenvolver e manifestar.
Se está a exagerar ou a mitificar quanto à aspiração transcendente em Portugal, única, especial, ligada à Saudade, já que tal se verifica noutros povos, nomeadamente com o idealismo e messianismo de que se reveste, cada um sentirá ou investigará...
Antero de Quental visto pelo profundo intimista António Carneiro. |
E anuncia depois que «o Saudosismo tem ainda um admirável filósofo: Leonardo Coimbra com a sua teoria do criacionista» (consagrando-lhe um bem esclarecedor parágrafo), depois passando a António Carneiro e Cervantes Haro na pintura, e Soares dos Reis, na escultura, concluindo: «Eis os artistas e os Poetas a quem a Saudade falou, eis a lírica falange libertadora da alma portuguesa, desde séculos no cativeiro, desde séculos no esquecimento...
O Saudosismo encontrará, estou certo, a sua forma musical no Orfeon do Porto e de Coimbra, dirigidos por António Joyce e Fernando Moutinho. Só no seio da Harmonia se poderá realizar o perfeito casamento da luz e da sombra, da alegria e da tristeza, do beijo e da lágrima, da vida e da morte. A própria harmonia não é a combinação dos contrastes? Não é ela a irmã-gémea da Saudade?»
Passa em seguida à sua teoria da nossa originalidade criativa, muito bem talhada (e apta a ser meditada) neste parágrafo: «Nós somos, na verdade, o único povo que pode dizer que na sua língua existe uma palavra intraduzível nos outros idiomas, a qual encerra todo o sentido da sua alma colectiva. A alma lusitana concentrou-se numa só palavra, e nela existe e vive, como na pequena gota de orvalho a imagem do sol imenso. Sim, a palavra saudade é intraduzível. O único povo que sente a Saudade é o povo português, incluindo talvez o galego, porque a Galiza é um bocado de Portugal sob as patas do leão de Castela. A Galiza é a nossa Alsácia.»
Admitindo contudo que haja noutras línguas uma espécie de Saudade, realçará como ela se espargiu no léxico luso: «sendo a Saudade a própria essência do espírito lusitano, ela existe ainda esparsa e difundida em outras palavras do nosso vocabulário, igualmente intraduzíveis» e dará como exemplo nevoeiro, e que «todas as palavras da nossa língua que têm além, isto é, um segundo oculto e transcendente sentido, encerram em si, embora em formas vagas, a Saudade, como, ainda, por ex., as palavras remoto, ermo, luar, etc.»
Culminará esta breve mas incisiva passagem pela magia e força operativa espiritual do sermo-verbo-logos e dos mantras, meditações e encantamentos possíveis, sugerindo: «Seria um estudo interessante a análise psicológica de tantos vocábulos da nossa língua, nos quais a ideia ou sentimento que significam, se tornam infinitos e indefinidos, esfumando-se em íntimas nebulosas de sonho [ou, diríamos, em formas subtis e imagens intuitivas na visão espiritual interior], e revelando assim a tendência da alma portuguesa para o mistério [e nesta linha andaram muito Augusto de Santa Rita e Fernando Pessoa], para a religiosidade [ou para as dimensões energéticas, subtis e espirituais dos sons e dos seres], - tendência que criou a geração de Poetas a que me referi e que não é mais do que uma forma da Saudade.»
Concluirá apontando os momentos mais valiosos da nossa história em que foi a Saudade, «transfigurada em acção e Vitória no corpo de Afonso Henriques, que riscou na Ibéria as fronteiras de Portugal», ou como «zéfiro remoto que enfunou as velas das nossas naus descobridoras», ou foi vencedora em Aljubarrota, cantora nos Lusíadas, transmutadora do Adamastor, criadora nos tempos de luto do Encoberto e, por fim, «despedaçou as nossas grilhetas em 1640, e, com um relâmpago dos seus olhos, fulminou o leão castelhano. Foi ainda ela que animou a alma popular no ia 5 de Outubro (...) essa última esperança que não devemos deixar de morrer.»
Se sempre houve muita gente que discordou desta excessiva valorização da Saudade, não podemos negar que nesses momentos o amor da Pátria, ou da Honra, ou de se cumprir o seu dever ou dharma esteve fortemente dinamizante em alguns seres. Logo, se virmos a Saudade enquanto força da lembrança das raízes e do possível fim glorioso, unido ao desejo, aspiração e vontade de o realizar, já conseguiremos compreender melhor esta hipérbole da Saudade e não ficaremos limitados pelo saudosismo passadiço e doloroso com que tantos seres apegados se deixaram enredar e entristecer na ausência do passado ou do presente desejado e amado.
E depois de relembrar que «a alma popular e alguns (bem poucos) livros sagrados da nossa literatura são hoje os únicos depositários da alma pátria» (e quais veria ele, nos últimos tempos? Alguns da Dalila Pereira da Costa, tanto mais que foi talvez quem realizou mais a saudade da origem espiritual e Divina?) Pascoaes clamará para não deixarmos morrer a esperança do 5 de Outubro, numa república não portuguesa, mas afrancesada, constitucionalista. Para não nos deixarmos governar por bacharéis desnacionalizados hoje burocratas ou peões de brega dos partidos submetidos à direcção da União Europeia ou a grupos de pressão transnacionais). Para não nos deixarmos enfeudar as leis e sistemas de ensino estrangeiros, perdendo tanto o nosso municipalismo como uma instrução que conduza à alma própria e portuguesa de cada um.
Anote-se que no mesmo ano de 1912, uns meses depois da publicação da conferência de Pascoaes, certamente com o imprimatum dele e de Leonardo, saía também, num opúsculo da Renascença Portuguesa, uma conferência do catalão Ribera y Rovida (1880-1942), pronunciada em 1907 no Real Instituto de Lisboa e intitulada A Educação dos Povos Peninsulares, a qual levava na 1ª página um passo dessa conferência de Pascoaes, por sinal um dos que transcrevemos, quanto à intraduzível palavra Saudade e à nossa ligação à Galiza. A obra é porém mais uma história da Catalunha, ou como ele chama, "a escola de educação política dos catalães", e a proposta dum Federalismo democrático, e só nas duas últimas páginas se dirige aos portugueses: «Vivificai o patriotismo pelo são e romântico entusiasmo, que não exclui a ponderação reflexiva e serena, longe da impulsividade doentia» e acrescenta:«Educar pelo Patriotismo, pelo Entusiasmo, pelo Civismo! Levando à entranha das democracias a convicção dos seus direitos sacratíssimos e dos seus deveres indeclináveis».
Ora se os princípios de sã formação individual e organização social e política propostos por Pascoaes, embora ou porque muito ideais, acabaram por soçobrar em grande parte, mesmo com a publicação da sua obra, três anos depois, a Arte de ser Português (antecedida até pelas duas conferências de 1914, inseridas na Era Lusíada), em que os desenvolveu mais sistematicamente, embora sempre com as limitações próprias do seu ambiental nacionalismo rural e católico, embora aberto ao mais espiritual da Europa e até à Índia de Tagore, face ao crescimento constante das urbes citadinas, da burguesia e do proletariado e do internacionalismo, talvez a parte mais revolucionária da sua proposta, segundo «a nossa Verdade e a nossa Redenção» de revitalização ou de reassumir-se a Alma Lusitana fosse a seguinte, compreensível até como moderada na contextualização da época, em que havia radicalismos muito mais iconoclastas e anti-clericais, já que tal visão transmutadora, se na prática era praticamente impossível, na justificação psico-espiritual e logo interior e iniciática tinha bastante logos em si, ainda que de novo, e numa linha em que Fernando Pessoa e outros se deixaram ainda enlear, nacionalisticamente, numa dimensão que teórica e operativamente deveria ser já também a universal da religião do Espírito, realizada interiormente antes de missionada exteriormente, algo de que Fernando Pessoa se deu também conta referindo o valor das formas de representação mais frustes da Divindade mas que têm o seu valor para os que as criaram e a elas se afeiçoaram utilmente. Aqui Teixeira de Pascoaes valorizará um dinamismo maior de uma Religião portuguesa provalmente liderada por filósofos, poetas, artistas, espirituais:
«É necessária a fundação definitiva da Igreja Lusitana, devendo ela ficar integrada no Estado, e por ele superiormente dirigida, sendo o Estado representado, é claro, por autênticos portugueses de inteligência e coração [sublinhado nosso. Onde os encontramos, em que conselhos ou níveis?] Eu ligo uma grande importância à fundação da Igreja Lusitana porque entendo que o sentimento religioso é próprio do homem, faz parte do seu ser moral, como por exemplo, as orelhas e o nariz fazem parte do seu ser corpóreo. É mesmo o que de mais alto há na alma do homem; é força que o eleva acima da sua animalidade e que, em dados momentos, produz as grandes obras de heroísmo e as grandes virtudes. O sentimento religioso é a única força criadora do homem: o sinal que o homem vive moralmente (...) As teorias materialistas e negativistas já caíram lá fora, com William James, Jaurés, Bergson, e outros grandes Filósofos. Um novo mundo espiritual está a aparecer ao olhar ansioso do homem. E bom seria que fosse Portugal a mostrá-lo.»
O último parágrafo segue nessa linha de intensa aspiração e expectativa, algo mitificante na dimensão missionária que deseja ou culmina (e relembre-se como Teixeira Pascoaes foi então muito traduzido), talvez advertindo-nos ainda que nos dias de hoje não devemos envolver-nos e encerrar-nos em grupos mais ou menos religiosos ou esotéricos apenas por serem estrangeiros, poderosos, de muitos aderentes ou grandes segredos mas que, a partir da nossa Tradição Espiritual e estudando alguns dos seus elos, como os fundadores da Renascença Portuguesa Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra e Jaime Cortesão, ou os seus continuadores, deveremos saber alcançar tanto o íntimo como incluir ou mesmo abraçar o universal, em que pela gesta dos Descobrimentos do Oriente fomos aliás já por certos seres e modos iniciados:
«Que a gente moça se penetre do espírito lusitano original e belo, e se enamore dele, e lhe dê todo o entusiasmo dos verdes anos e da saúde, e o implante na terra portuguesa, a fim de que ela viva uma vida própria e superior, e ilumine para além das fronteiras. - Disse.»
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