A segunda edição dos Adágios, bem mais alargada, impressa em Veneza, com Aldo Manuzio, em 1508, como Graal da Sabedoria perene, e sobre a empresa aldina: Festina lenta. Apressa-te lentamente. |
Os Adágios foram uma das mais difundidas obras nos séculos XVI e XVII e nela Erasmo exerce a sua função de transmissor da sabedoria perene da Antiguidade pagã ao serviço de uma formação mais tolerante, ecuménica e universal dos estudantes e humanistas europeus e duma crítica libertadora das ignorâncias, erros e superstições na religião, nos governantes, instituições e pessoas. Entre a primeira edição, de Paris, de 1500, Adagiorum Chiliades, e a oitava e última edição corrigida em vida e, como todas as outras em Basileia, em 1536, a recolha passou de cerca de 818 a 4.151 adágios ou ditos da sabedoria antiga.
Escolhemos um adágio importante por ser consagrado a Momo, um deus greco-latino pouco conhecido e que simboliza a capacidade crítica independente e justa, por vezes satírica, tão valiosa face aos falsos valores, cultos de aparências, desmandos, manipulações e opressões das autoridades, ideologias e mentes humanas, com as suas vaidades, egoísmos e fanatismos de pensamentos, actos e hábitos.
Ao longo dos séculos Momo foi apresentado e caracterizado por diferentes autores, que Erasmo leu e que nas suas obras cita por vezes, ainda que escrevendo parcamente sobre ele, e poderíamos citar no adágio Spartam nactu es, hanc orna, (II. v. 1) Esparta existe, orna-a [ou honra-a], referindo-se à educação dum príncipe que "devia ser erudita e com pequenos dentes, tingidos com o sal brilhante [candido] de Mercúrio, e não com o negro de Momo" Contudo isso não o impediu de ser chamado de Momo, de ser um pagão ou um céptico que duvidava da fé cristã e seria mesmo irreligioso, e quem o assim o acusou foi nada menos que Lutero. Mas claro também houve vários sectores católicos que nunca aceitaram as críticas de Erasmo aos monges, a certos aspectos e aparências da Igreja, ou ainda à sua investigação crítica textual dos Evangelhos e por isso o evitaram (tal S. Inácio de Loiola que aconselhou os primeiro jesuítas a não o lerem, pois esfriava a devoção, quando de facto Erasmo tanto valorizou uma devoção sábia, a que chamava uma piedade douta, baseada na philosophia christi) ou atacaram-no mesmo mais ou menos fortemente, tais o síndico Nöel Beda, o cardeal Aleandro e os dominicanos espanhóis.
A partir da recepção europeia no século xv da tradição greco-romana, sucessivos humanistas de várias nacionalidades transmitiram os potenciais, sobretudo críticos e satíricos, do carácter de Momo, em obras literárias, filosóficas e artísticas, sendo Erasmo um elo entre eles. Para contextualizar mencionemos dos elos ou fontes greco-romanas Hesíodo (750-650 a. C.), Esopo (620-564, duas fábulas sobre ele) Platão (427-347), Ovídio (43 a 17 d. C.), Filostrato (170-250) e sobretudo o sírio Luciano de Samosata (125-180), pois Erasmo leu e traduziu as suas obras, sorridentemente, com Thomas More, nas quais os aspectos piores ou mais fracos dos deuses da teologia poética e popular, ou ainda as pretensões, vaidades e superstições humanas, são fortemente satirizadas.
O sábio humanista, arquitecto, tratadista, espiritual e poeta Leon Baptista Alberti, 1404-1472. |
Entre os humanistas, além de Erasmo, Leon Baptista Alberti (com a tão genial vida de Momus, expulso do céu para a Toscana, já de 1450 embora só publicado, prudentemente, em 1496), Johann Reuchlin (1455-1522), Anton Francesco Doni (1513-1574) e Giordano Bruno (1548-1600, com o Spaccio de la bestia triomfante, 1584, Londres) serão talvez os mais importantes de se lerem, sobretudo o primeiro e o último que escreveram profundas obras na sua forma mentis e face à contemporaneidade que os rodeava.
Entre nós, se Gil Vicente teve algo ou bastante de Momo, ou se o Momo sobreviveu como rei satírico do Carnaval, já o menos conhecido humanista Jorge Ferreira de Vasconcelos (acima numa pintura recente), que põe Momo a falar no prólogo da comédia Aulegrafia, deverá ser lembrado pela sua sabedoria e cavalaria de Amor em luta face ao começo da Inquisição e da Censura, tanto mais que tem sido tão trabalhado por Silvina Pereira e o seu Teatro Maizum, não sendo claro porém em que fontes, de Ovídio e Luciano a Erasmo e Reuchlin, mais bebeu.
Recebamos então Erasmo o adágio que é consagrado a Momo, Momo satisfacere, & similia (I.v.74) embora nas obras e noutros adágios haja mais referências, traduzido partir do confronto da anglo-americanizada tradução da Margaret Mann Philips, para a University of Toronto Press, de 1984, com a edição parisiense de Robert Estienne, de 1558, numa tradução final (e mais fiel, creio) bem portuguesa.
Erasmo, por Quentin Massys, em 1517, num altar europeu... |
«Satisfazer Momo, & paralelos. É hipérbole proverbial. Hesíodo na sua Teogonia menciona um certo Momo, que tem a Noite como mãe e o pai o Sono como progenitores. Este Deus tinha o carácter de nada produzir por si mesmo, mas contemplar com os olhos curiosos as obras dos outros deuses, e se algo está omisso ou está incorrectamente feito, criticar com suma liberdade.
Por outro lado, Momus, quer dizer em Grego [Μῶμος] repreender. Aristóteles, no De partibus animalium 3.2, fala dele como alguém que reprovava a Natureza por ter dado aos bois chifres na cabeça quando seria preferível adicioná-los nos flancos ou ombros, sem dúvida para poder ferir mais veementemente. Luciano aludiria a isto quando escreve (Verae Historiae, 2) que viu alguns bois cujos cornos não estavam na testa como é usual, mas debaixo dos olhos. Esta era a visão de Momo.
O mesmo Luciano evoca-o em vários outros lugares, especialmente no diálogo Das Heresias, contando esta história dele: Minerva, Neptuno e Vulcão competiam entre si para o melhor artífice. Cada um deles produziu uma espécie notável da sua arte: Neptuno modelou um touro, Minerva excogitou uma casa, Vulcano compôs o ser humano. Momo foi escolhido como árbitro do certame e examinador da habilidade artística. Ele inspecionou a obra de cada um; à parte das deficiências que repreendeu nos trabalhos dos outros, ele queixou-se principalmente que na feitura do homem o artista não adicionara algumas janelas ou portinholas no peito [Este aspecto da visão do coração foi entre nós realçado por Jorge Ferreira de Vasconcelos, e aponta para uma linha de aperfeiçoamento gnóstico], para que se possa examinar o que está escondido no coração, cavidade que fez com muitos recessos sinuosos. Platão menciona também esta fábula. Filostrato, na carta para a mulher, escreve acerca de Momo a sua maneira de ver: "Não conseguira encontrar nada a repreender em Vénus, excepto ter caluniado a sua sandália por ranger, com um som perturbante, como se fosse muito tagarela. Se Vénus tivesse vindo sem as sandálias, como tinha saído do mar, toda nua, Momo não teria descoberto de modo algum oportunidade de a deitar abaixo."
Este deus não é tão apreciado como os outros, porque poucas pessoas admitem livremente as suas repreensões, contudo não sei se qualquer um da turba dos deuses dos poetas é mais útil. Nos nossos dias contudo, o nosso Júpiter exclui Momo e apenas ouve a Euterpia [a musa da Música e da poesia lírica], antepondo o brando ao que é salutar.
A forma celestial de inspiração ou musa, musical e lírica, Euterpe, por Egide Godfried Guffens. |
Consequentemente este Momo providencia várias formas de adágio, quer em Platão que escreve na República, 6, que o estudo da filosofia é tal que nem Momo o pode repreender. Ou quando a Vénus de Luciano (Dearum Judicium 2), prestes a enfrentar o julgamento, diz que nega hesitar mesmo que Momo seja o juiz. Ou quando Cícero escreve a Aticus, livro 5.20.6: "Quanto ao que diz respeito ao objectivo principal das vossas exortações, o mais importante ponto de tudo em que laboras, que eu satisfaça mesmo esse Momo Ligurino, morra se algo pudesse ser feito mais elegantemente!" Portanto as espécies deste provérbio terão todas este género de forma: "Não hesitarei em lutar contigo mesmo se o Momo entre na disputa." "inculpável é a vida da pessoa que o próprio Mono não pode deitar abaixo [carpere]." "Esta face nem o próprio Momo poderia repreender." Nem recusaria o julgamento de Momo." Ou "essas coisas satisfazem o próprio Momo". E assim se pode modelar qualquer co-símile. A esta forma pertence aquela expressão de Ovídio acerca da forma [bela] de Adónis: "Mesmo a inveja louvaria tal face".
Brevemente, todo género desta hipérbole obtém uma espécie de provérbio, tal como quando Terêncio diz de uma família miserável: "A própria Saúde se desejasse salvar esta casa não poderia." Igualmente, acerca dum lugar fortemente municiado: "Esta cidadela nem mesmo Marte a expugnaria." Sobre uma pessoa firme e pertinaz: "Nem sequer o próprio Vertumnus [deidade das estações e transformações] poderia alterar o seu ânimo."
Sobre
uma mulher demasiado desejosa do homem, "O libido dessa mulher nem o
próprio Priapo saciaria." Quanto a algo muito improvável, "Nem a própria
Peitho persuadiria tal pessoa."
Angerona, desenhada para a sábia Isabel d'Este, no séc. XV. |