Nicolas Berdiaev, "O Mal do Tempo".
Transcrição das anotações, que escrevi num diário de já há bastantes anos, da leitura do Mal do Tempo (traduzida do francês por João Rui de Sousa, para a editora Delfos nos anos 60), e agora um pouco mais ampliadas ou comentadas.
Nikolai Berdyaev - (1874-1948) - é um dos mais importantes filósofos russos, com uma obra vasta e bastante inspiradora e fortificadora das almas que o leem e admiram. De família aristocrata e de militares, de mãe russo-francesa, estudou na Universidade de Moscovo e aderiu à filosofia do materialismo histórico e ao marxismo, sendo por isso exilado três anos para o norte. Mas cedo se afastou do materialismo histórico e já em 1909 era um valioso filósofo no Cristianismo Ortodoxo, destacando-se pela valorização da criatividade, liberdade, amor, persona, e do Logos, ser, sentido e mundo Divino, apesar de que, pela sua religiosidade independente e libertadora, chegou a ser condenado pela Igreja Ortodoxa como herético e com destino à Sibéria. A revolução bolchevique libertou-o e permitiu-lhe escrever livremente, dar aulas na Academia Livre Cultura Espiritual que fundara, ou mesmo em 1920 ser convidado para professor na Universidade de Moscovo. Todavia, o crescente ateísmo do programa do governo comunista teria de confrontar a sua independência e religiosidade, resultando disso um encontro- interrogatório e a previdente decisão de o deixarem partir com outros intelectuais (tais Fyodor Stepun, Bulgakov, Ivan Ilyin), para o Ocidente, em Setembro de 1922, num barco a vapor de Petrogrado ou São Petersburgo para a Alemanha, onde ainda funda a Academia de Filosofia e Religião que transferirá para a França, quando em 1924 se muda para os arredores de Paris com a família.

O barco a vapor alemão que "exportou" por ordem de Lenine e de Trotsky, por mais de uma vez, intelectuais russos anti-bolcheviques, o Oberbürgermeister Haken, para a Alemanha.
Em França a estabilizará de 1924 até ao fim da vida terrena em 1948 e alcançará grande sucesso com o seu carisma e mensagem, em palavra e escrita, sobretudo nos meios cristãos, católicos e ortodoxos, existencialistas e dos emigrados russos, sendo traduzido para várias línguas e estudado por vários escritores e filósofos, entre nós, por exemplo, Leonardo Coimbra, que a ele, a Soloviev e sobretudo a Bulgakoff dedicou algumas reflexões, na sua última obra, A Rússia de hoje e o Homem de Sempre, em vários aspectos profética ou actual. Ou posteriormente José V. de Pina Martins, que traduziu O Marxismo e a Religião, em Coimbra, 1948, e escreveu um valioso prefácio, embora hoje datado, ou para ele mesmo umas décadas depois.
O último livro e testamento espiritual, Reino do Espírito e Reino de César, é ainda hoje de grande actualidade face às novas formas de totalitarismo que se pretendem impor, e nele Nicolas Berdiaev destaca o valor da persona humana e da sua capacidade mística, ou seja, de unir ou ultrapassar as dualidades, nomeadamente sujeito-objecto, eu-outro, mente e espírito, humanidade e divindade, e contrapõe aos colectivismos exteriores e forçados o comunitarismo fraterno, e à religiosidade da descida da graça divina, a mística da realização do princípio divino no interior das pessoas, o qual se manifesta pela criatividade livre, para ele a essência do ser em si. Oiçamo-lo então, por anotações de leitura, levemente comentadas:
«A acção criadora e a actividade realizam [ou geram] inovações e ganhos positivos que contribuem para alargar os sentidos [ou dimensões] do Ser. O tempo possui assim um valor ontológico, dá-nos a revelação do sentido [ou seja, tanto do Logos como do desabrochar ou enriquecer dos sentidos-órgãos, ou seja, dos sentidos-cosmovisões logoicas da vida, e ainda das subtis antenas e níveis do Ser, ou ente em si.]
Em relação ao passado a actividade activa é transfiguradora, quando integra o passado no futuro e no eterno, quando ressuscita as coisas e os seres desaparecidos, vencendo assim o fatum ou destino determinado ou já realizado. [E esta tarefa é realizada em proporção do amor com que ora vivemos cada instante activo ora revivemos tais seres ou coisas, sendo este relembrar dos que já morreram mutuamente benéfico.]
Há seres humanos do passado, seres do futuro, seres do eterno, [conforme a intencionalidade, intensidade e abrangência] do instante comungado.
A actividade inovadora é totalmente dirigida para o eterno. Não há passado nem futuro, mas apenas um presente incessantemente criado [e por isso se diz que os seres mais evoluídos oram ou rezam incessantemente, ou seja, estão sempre em irradiação perenizante na alma do mundo e em comunhão com o espírito, a eternidade, a divindade.]
O futuro é a projecção quer da inquietação causada pela queda [ou descida] do mundo [espiritual] quer do acto criativo cujos frutos tombam [ou são direcionados] para o mundo decaído. Alguns seres, tal como Goethe, desenvolveram a faculdade [ou sentido] de reconhecer o todo divino na mais ínfima parcela de vida do Universo.
A Tradição é uma luta contra o império do Tempo, uma comunhão com o mistério da História.
Assim em Platão o conhecimento é reminiscência, e a história só pode conhecer-se enquanto existência interna graças à memória ontológica, graças a uma comunhão com o passado numa activa reminiscência. Por isso é necessário que eu conheça o passado como o meu próprio passado, como a pré-história do meu espírito e assim se integra no presente, como comunhão com o Logos, o saber inicial intemporal ou eterno.
Sendo a mudança evolutiva do mundo algo de secundário no mundo da objectivação, hoje nenhum instante tem valor ou plenitude em si mesmo, ninguém pode deter-se nele, pois é necessário que ele ceda o lugar o mais depressa possível ao instante que se lhe segue. Cada instante é apenas um meio para chegar ao instante seguinte.
Podemos dizer então que a velocidade gerada pela mecanização [e intensificada pelos meios de informação digitais actuais] é destruidora do eu, da sua unidade e concentração interior.
Este mundo mecanizado é obra do ser humano, mas o homem não se encontra nele. A integridade e a unidade do eu estão ligadas à integridade e unidade do presente indecomponível, do instante no seu valor pleno e o que tem como consequência ele deixar de ser um meio para o instante seguinte. [Vive-se plenamente no todo e no instante, do presente, e portanto numa consciência não egoísta, nem oportunista.]
São portanto os momentos de contemplação [ou unificação do sujeito e objecto], os que permitem mais a comunhão com a eternidade [ou a comunhão com a essência eterna ou divina dos seres].
Na sua obra Liberdade e escravidão acentuará o valor do instante vivido criativa e plenamente escrevendo: «A criatividade é a libertação em relação à escravatura. O ser humano é livre quando se encontra num estado de actividade criativa. A criatividade leva ao êxtase do instante. Os resultados ou produtos da criatividade estão dentro do tempo, mas o próprio acto criativo está fora do tempo.»
Nicolas Berdiaev refere ainda a ideia expressa por Karl Jaspers que, embora a existência pertença à eternidade, é o tempo que lhe confere um sentido, ou seja, modela ou conforma a alma, aperfeiçoa-a e, realçando a importante ideia da descontinuidade do tempo [ou seja a não linearidade do devir] alcançada pela física moderna, afirma que é a infinidade qualitativa que supera a morte ou mal do tempo e que apocalipse significa a revelação ou desvendação do que vamos descobrindo ou recebendo no decurso da realização da nossa personalidade, do nosso ser dialogante ou comungante [com a eternidade e a divindade].
Berdiaev neste seu pequeno ensaio intitulado O Mal e o Tempo tenta religar-nos à Eternidade, ao mundo indiviso ou não dual, o qual vivenciado integralmente num instante criativo do presente supera o tempo e a fragmentação do eu e da sua liberdade.
Para tal superação Nicolas Berdiaev acentua ser necessário uma concentração intensa de comunhão com o Logos, com o Amor-Inteligência Divino primordial, nomeadamente pela meditação ou contemplação forte, profunda e pura.
Possamos nós consegui-la interiormente ou em unificação com outros seres, processos ou coisas.
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