sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Elza Paxeco, a 1ª doutorada da Faculdade de Letras de Lisboa, notável investigadora e professora. Biografia pela sua filha, Maria Rosa Pacheco Machado.

                                                     

 Tendo recentemente dialogado (numa rede social) na página da Associação Cultural Sebastião da Gama com Maria Rosa Pacheco Machado, a propósito dos alunos e alunas da sua mãe a escritora Elza Paxeco (e neta do abnegado diplomata e escritor Fran Paxeco), infelizmente hoje pouco lembrada e estudada, ofereci-me para divulgá-la no blogue, tendo recebido então a biografia dela, partilhada em 14-X-2010, na Academia Maranhense de Letras, Brasil, no discurso (conforme a fotografia) de tomada de posse da mesma Cadeira Académica nº5 que pertencera a sua mãe e que passamos a transcrever:
                                 

Elza Fernandes Paxeco Machado

2ª ocupante da cadeira nº 5 Académicos Correspondentes, Academia Maranhense de Letras.

«Nasceu em São Luís do Maranhão, a 6 de Janeiro de 1912 na Rua da Palma, nº 38 1 – na casa de seu avô materno Luís Manuel Fernandes, sócio da Firma “Luis Manuel Fernandes & Irmãos, importadores e
exportadores”.
Aí passou sua infância com seus pais, ele Manuel Fran Paxeco (1874-1952) português de Setúbal - jornalista e diplomata, ela maranhense de São Luís que lhe propiciaram um ambiente requintado, culto, de padrão bastante elevado. Para além do ensino normal 2, aprendeu a tocar piano, a dizer poesia, a desenhar etc, com professores das especialidades.
Ainda não consegui saber onde ela terá estudado em criança, embora tenha andado a bater a várias portas; Colégio Santa Teresa, Secretaria da Educação, Inspecção Escolar, mas os arquivos não estão muito disponíveis.
Sua Mãe, minha Avó Isabel Eugénia Cardoso de Almeida Fernandes (1879-1956) natural de São Luís, também era filha de um português, mas de Lamares, Vila Real (o meu bisavô acima referido) e de uma maranhense de São Luís, minha bisavó Rosa Cândida Cardoso de Almeida Fernandes (1845-1912) que por sua vez também era filha de outro português (de Cascais) e de outra maranhense, mas de Santa Maria de Icatú. Ele, Máximo Cardoso de Almeida (1816-1876) foi dono de engenho de açúcar, capitão de longo curso, dono do barco “Rosabella” e ela, Ana Joaquina Jansen da Silva (1827-1872) era, segundo nos contaram, sobrinha de “Donanna” Jansen.
Tudo isto e muito mais nos foi transmitido oralmente, por minha Avó Isabel e por minha Mãe que veneravam São Luís e todos os antepassados que por cá ficaram sepultados.
Quando minha Mãe partiu com seus pais, definitivamente do Brasil para a Europa (em 1925), foi carregada de recordações poéticas, musicais, etnográficas; de histórias, cheiros e cores, sabores e sons... de que falará com saudade, desgosto, ciente que nunca mais voltaria a São Luís. Citava Gonçalves Dias mal chegava a Primavera...
Lembro-me que, ao decorarmos poesia para as visitas,além de Afonso Lopes Vieira e outros, também vinha Gonçalves Dias:

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Inteligente, imaginativa, sonhadora, boa aluna, estudou com sucesso num convento católico jesuíta no Reino Unido, o Upton Hall School a Nordeste 3, até entrar para a Universidade de Gales, onde se formou em Filologia Românica e Filologia Germânica com altas classificações – Honours Summa cum Laudes. Mais tarde, durante dois anos para a Universidade de Londres para fazer outro curso, de especialização, Master of Arts. Tudo para grande contentamento de seu Pai, que muito admirava e venerava; e de sua Mãe que lhe marcou muito a vida pelos objectivos demasiado ambiciosos que lhe traçou e que lhe marcaram toda a vida.
Quando foi para Portugal, frequentou durante dois anos a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a fim de tirar as cadeiras de equivalência que lhe faltavam, as de Literatura e Filologia Portuguesas, História de Portugal e Descobrimentos.

Alunos da Faculdade de Letras de Lisboa, bolseiros do Instituto de Alta Cultura, no Centro de Estudos Filológicos, então na Rua Júlio de Andrade, em 1937, rodeando o professor e arabista David Lopes, com a Elza Fernandes Paxeco à sua esquerda e, atrás, José Pedro Machado, de óculos, seu futuro marido e notável linguista. Ao fundo, à direita na porta, Maria de Jesus Pacheco, que viria a ser a mãe do professor de Direito (e fui seu aluno) Sousa Franco. 

É nesta fase da sua nova vida académica que conhece outro aluno, que alguns anos mais tarde se tornaria seu marido; José Pedro Machado, que frequentava o mesmo curso de Filologia Românica.
Foi a primeira senhora doutorada pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (Outubro de 1938), tendo obtido aprovação por unanimidade 4. Era, nessa altura, o mais novo dos doutores, com
apenas vinte e seis anos.
Fez um estágio de dois anos no Liceu Pedro Nunes e foi chamada para a Faculdade de Letras da mesma Universidade, onde ensinou como leitora de Francês entre Fevereiro de 1940 e Outubro de 1948, quando foi exonerada a seu pedido; igualmente regera as cadeiras de Literatura Francesa e de Língua e Literatura Inglesa, tendo ainda feito parte de júris de admissão ao Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Depois de minha Mãe, duas senhoras entraram para a Faculdade, a Dra. Andrée Crabbée Rocha 5 e a Dra. Virgínia Rau.
Casou em 4 de Setembro de 1940 com meu Pai, José Pedro Machado, tendo dessa união nascido três filhos: Maria Helena (1941), João Manuel (1943), Maria Rosa (1946).
Por indicação de Alfredo de Assis 6, representou em Portugal a Associação das Academias Brasileiras de Letras 7. Foi eleita sócia correspondente da Academia Maranhense de Letras, exactamente para a cadeira Número 5.
No ano lectivo de 1960-1961 ensinou Francês na Escola Industrial Afonso Domingues, escola onde o meu Pai era professor efectivo e se bem me lembro, nesta altura tinha o cargo de Director.
Nunca deixou de ter contacto com São Luís, nomeadamente com a família do Dr. Aníbal de Pádua, com quem sempre se correspondeu, através de quem ia tendo notícias da sua terra natal. Desde criança que eu ouvia falar de Dª Cotinha, de Regina, de Regininha....
Com a família Guedes de Azerêdo que também estava em Portugal, compartilhava laços de São Luís e também laços de família, pois Alfredo (filho) foi o padrinho de baptismo de minha irmã.
Doou a esta cidade, mais propriamente à Associação Comercial do Maranhão, dois quadros pintados a óleo que lhe eram muito queridos, um representando o seu Avô, Luis Manuel Fernandes 8, da autoria de Franco de Sá, e o outro seu pai, Fran Paxeco, da autoria de Paula Barros. Eu era criança, mas recordo perfeitamente a entrega das grandes caixas ao Sr. José Tércio de Oliveira Borges que os trouxe para São Luís, isto em 1957 9.  
Se me permitem gostaria de compartilhar convosco alguns episódios da minha vida:
As crianças aprendem línguas com muita facilidade e eu sou a prova disso: estava a minha Mãe doente e acamada, e como eu era a mais pequena (eu teria 2, 3 anos) e muito irrequieta, chamava-me para o pé dela e ensinou-me a falar francês; foi graças a um mau momento da sua saúde que eu sempre tive uma grande facilidade em falar, compreender francês; a ela o devo, porque ensinou-me essa língua praticamente ao mesmo tempo que o português. Com as outras disciplinas sucedeu a mesma coisa, mas não desta maneira, pois aprendemos os três a ler e a escrever em casa, muito cedo. Recordo perfeitamente a minha luta para mudar a data para 50, nas cópias. Porque sou do tempo em que se faziam cópias.
Nos anos 60, quando minha Mãe ia para os Reservados da Biblioteca Nacional (que na altura ainda estava instalada no Convento de S. Francisco, ali ao Chiado) trabalhar no Colocci Brancuti – O Cancioneiro da Biblioteca Nacional, muitas vezes eu ia com ela.
Aqui permitam-me entrelinhar um testemunho: o trabalho de meus Pais não foi nada fácil, pois tiveram que copiar tudo à mão, não havia os recursos que hoje todos temos à nossa disposição.
Como eu ia dizendo, eu ia muitas vezes com minha Mãe para a Biblioteca Nacional; e como morávamos na Graça, costumávamos regressar a pé para casa. Não que eu gostasse muito, mas como ela andava bem, que remédio tinha eu! Ora numa determinada tarde, voltávamos nós para casa e parámos num miradouro que há sobre Alfama e que tem uma vista soberba, mesmo ao lado do miradouro de Santa Luzia, se alguém conhece a zona. Olhei para baixo, e nos telhados vi um gato (sempre gostei destes animais): chamei-o e ele olhou. Uns dias depois tinha uns versos 10 escritos por minha Mãe, a lembrar esse momento. A sua veia poética vinha à tona muitas vezes, sobretudo com as netas.
A ela devo o meu gosto pela investigação, pelo Medievalismo, pela Literatura Francesa. Todos estes gostos foram sendo burilados ao longo dos anos e muitas vezes com a preciosa ajuda de meu Pai.
Também herdei dela o ouvido musical, pois cheguei a aprender a tocar piano enquanto estive no colégio in
terno.

Neste momento encontro-me a envidar esforços para que o seu nome conste nas comemorações do Centenário da Universidade de Lisboa, isto já em 2011; considero ser mais do que justo que o nome da primeira senhora doutorada na Faculdade de Letras daquela Universidade aí possa constar; possuo fotos, o diploma do doutoramento, recortes de jornais da época.
Estou em contacto com a equipa organizadora, para facultar todo o material necessário.
Dizem-me que a Universidade está com problemas financeiros para a publicação do álbum, espero que os consigam superar.»      [Lamentavelmente nada se publicou...]

       Bibliografia:

  • Alguns aspectos da poesia de Bocage (1937). - Acerca da tragicomédia de Dom Duardos (1937). - Essai sur l'oeuvre de Samain (1938) Dissertação de Doutoramento em Filologia Românica, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. - Graça de Júlio Dinis (1939). - O mito do Brasil-Menino (1941). - Camões e Elisabeth Barrett (1942). - Negação dupla em português (1944). - Um dos últimos trabalhos de Hércules (1944). - Aucassin e Nicolette (romance dramático do séc XII, tradução anotada em versão em verso e prosa portugueses do texto medieval picardo), (1946). - Da glottica em Portugal (1948). - Estudos em Três Línguas (1948). - Cancioneiro da Biblioteca Nacional (Leitura, comentários, notas e glossário), em colaboração com seu marido, José Pedro Machado. Esta obra ocupa oito volumes e é acompanhada pela reprodução fotocopiada do manuscrito; edição crítica e integral, realizada por Edições Ocidente que a editou sem quaisquer apoios oficiais ou particulares em folhas mensais apensas à Revista de Portugal (1949-1964). - Galicismos Arcaicos (1949).

Deixou colaboração dispersa por numerosas publicações nacionais e estrangeiras de entre as quais se destacam as revistas da Faculdade de Letras de Lisboa, Brasília, de Coimbra, da Academia Brasileira de Letras, do Rio de Janeiro, Revista de Portugal, Ocidente, etc. Era sócia da Sociedade de Geografia de Lisboa e da Sociedade de Língua Portuguesa.
Faleceu na madrugada de 28 de Dezembro de 1989 na sua casa em Lisboa, na Rua Leite de Vasconcelos, vítima de uma úlcera no duodeno.

Gato Preto em Telhado de Alfama
 
«Gato preto de Alfama no telhado
Lá em baixo, ao longe.
No terraço nu de ladrilho vermelho
Cá em cima, ao lado
Uns tufos pendentes verde-brancos hoje
Folhas e flores no invernal e velho
da Cerca Moura troço desencantado. 
 
Sorriso curvo de Reims, o do Anjo
(Ou o da Gioconda, porém meio tortelho),
Olhar longo de amêndoa voltado.
Vê a trocista o vulto e lisonja:
“Biche-biche” e já surge um espelho
Verde radiante pró norte alçado

Na cabeça virada tão séria do monge.
Chispa o Raio verde do Sol sobranceiro
Aos antigos Paços do Limoeiro.»

Visto 26-XII-61. Escrito 1-I-62
 
[O Anjo sorridente da catedral de Reims evocado por Elza Paxeco sobre o casario de Alfama. Quanto à Gioconda, com o seu sorriso algo torto ou irónico, era a sua filha Maria Rosa...]

1- Hoje é o nº 360, onde vai ser o Museu do Azulejo.

2- Não consegui saber onde ela estudou em criança; os arquivos de São Luís ainda não me deram esse prazer.

3- Fundado em 1849, ainda existe, transformado em Escola: http://www.uptonhallschool.co.uk

4- Cópia do diploma em anexo.

5- Esposa de Miguel Torga.

6- Desembargador Alfredo de Assis Castro, outro dos fundadores da Academia, casado com Filomena Jansen Pereira, prima de minha Avó, Isabel Eugénia de Almeida Fernandes Paxeco.

7- Em anexo, cópia da acta da sessão de 3 de Julho de 1943.

8- Comerciante português(1828-1881) que viveu em São Luís do Maranhão. Em 1874 consta como vogal da 17ª Directoria da então Comissão da Praça, in Jerónimo de Viveiros – História do Comércio do Maranhão, 1612+1895, p 452.

9- Possuo a carta (na sequência de outras) de Joaquim Pinheiro Gomes de 25.10.1956, onde informa minha Mãe que Arnaldo de Jesus Ferreira vai falar com António da Silva Borges ao tempo Vice-Consul, sobre o transporte dos quadros.

10-Versos em anexo.»

                                  

Fiquemo-nos, para concluir, e para comungarmos no corpo místico da Tradição cultural e espiritual de Portugal, com o que Elza Paxeco, com o seu génio tão sensível e sábio, escreveu no seu principal livro, antológico, Estudo em Três Línguas,  acerca da imortalidade da alma, ou Graça de Júlio Dinis:
«Joaquim Guilherme Gomes
Coelho, se ainda vivesse, faria hoje cem anos. Rol bem mais bonito que o da Moleirinha de Junqueiro. Há perto de 14 lustros, porém amado pelos deuses [que arrebatam os que amam], morreu em plena juventude. Lá foi a enterrar, perto da velha igreja de Cedofeita, perdida entre campos solitários [Alberto Pimental, O Porto há trinta anos, p. 4), o professor da Escola Médica, com grande acompanhamento de lentes, estudantes e antigos condiscípulos. Partiram também as andorinhas, levadas por um outono precoce.

                                            Agrupamento de Escolas Ovar Sul - Júlio Dinis

Mas Joaquim Guilherme, como tantos magos, possuía outro eu, «qui lui ressemblait comme un frère», e esse ficou aqui fora, neste mundo de mentiras, apesar de não ser fantástico, fingido ou mentiroso. Continua cada vez mais vivo e verdadeiro. Tem cem anos e é sempre jovem: prodígio bem simples para ele - Júlio Dinis, poeta da mocidade e da graça

Saibamos viver com juventude e na graça, como Júlio Dinis, Fran Paxeco e Elza Paxeco, e que o Amor e a Sabedoria do Espírito Divino nos interligue e inspire, harmonize e eleve!

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