domingo, 31 de outubro de 2021

Luís de Almeida, nas "Figuras do Silêncio", de Armando Martins Janeira. Breve resumo do 23º capítulo e dos finais.

  O introdutor da Medicina Ocidental no Japão: Luís de Almeida , constitui o 23º capítulo das Figuras do Silêncio, e a 4ª individualidade destacada, após Jorge Álvares, o autor da 1ª relação sobre o Japão, o missionário santificado Francisco Xavier, o peregrino aventureiro e escritor Fernão Mendes Pinto. Em Almeida  vemos como nascido em 1525 e aprovado como médico cirurgião em 1546, parte para o Oriente a aumentar a sua fortuna pois já era de família de ricos cristão novos em 1548, e em sete anos fá-la crescer bem, mas foice já estava junto à seara e o convívio com os Padre Baltasar Gago e Cosme de la Torre  fá-lo entrar na Companhia de Jesus e entregar os seus bens para a missão e para obras de beneficência, tal como Hospital  que co-funda em Funai, Bungo, apoiado até numa farmácia que se abastecia das ervas medicinais e demais produtos boticários que fazia vir também da China, Índia e provavelmente Portugal, onde exerce os seus dons clínicos e compassivos, tal como o seu superior Cosme de Torres (1510-1570) anuncia numa cartaAqui recebemos um irmão bom sujeito, que tem donum curationis e o sabe muito bem fazer”. O sucesso do Hospital, administrado por uma confraria, de 12 irmãos, com o seu regimento, foi grande em em 1559 foi ampliado e a ele recorria muita gente de todas as partes do Japão. 

Não estava só nesta tarefa, pois diz-nos Armando Martins Janeira: «Sabe-se que Almeida ensinou a medicina e criou discípulos japoneses europeus (...) Ainda ao tempo de Almeida, um outro português exercia a medicina no Japão, começando na província do Hizen e indo depois para Osaka; adoptou o nome japonês de Keiyu. Fróis dá notícia de um excelente cirurgião português, e deve ser este, que veio para o Japão no último quartel do século XVI. Um outro português, ex-jesuíta, Cristóvão Ferreira, atrás mencionado, que depois de apostatar tomou o nome de Sawano Chuan, conhecia e praticava também a cirurgia e instruiu, a partir de 1633, alguns japoneses; escreveu um tratado, Cirurgia dos Bárbaros do Sul, «que pertence  às melhores obras sobre este assunto. Um dos seus alunos foi Nishi Gempo, fundador da escola «Mishi», médico de câmara do xógum e encarregado pelo governo de dar lições de fisiologia.» Acrescente-se que  Cristóvão Ferreira mereceria ter sido eleito, apesar da apostasia, também como uma das figuras...

Em Junho de 1561, o P. Cosme de Torres, decide, graças às vitórias do dáimio seu protector Otuma, que o terreno de evangelização pode ser alargado decide dispensar do hospital, onde já havia bons auxiliares e discípulos,  Luís de  Almeida e enviá-lo a  cristianizar fora de Funai, a capital do Bungo. E vai assim passar a converter, curar e fortalecer os pequenos núcleos de cristãos e as suas capelas, com cenas belas ou comoventes como descreve nas suas vivas cartas, percorrendo várias partes do Japão, resumidas por Armando Martins Janeira assim: «Os actuais historiadores , entre os quais os Padres Dorotheus Schilling e Diego Pacheco, que dedicam a Almeida interessantes estudos, seguem os seus passos e a sua obra de conversões e baptismo: vemo-lo pregar e catequizar activamente em Kagoshima, em Yokoseura, em Arima, regressando depois a Bungo e de novo partindo para Hirado, Kioto, as ilhas de Goto e de Amasuka, e Nagasaki. Do que vê nas suas viagens nos dá interessantes descrições, umas patéticas, como as da destruição de Yokoseura, invadida e queimada pelos inimigos dos cristão, ou o abandono em que viu os cristãos perseguidos de Shimabara; outras brilhantes e entusiastas, como as descrições dos esplêndidos templos e palácio que visita em Nara e Kioto». Anote-se mais recentemente, 2015, a obra de Inês Carvalho Matos, Património de Cristianismo no Japão na qual visitando tais terras, narra e ilustra bem o que se foi fazendo ou se celebra nos últimos anos relacionado com Luís de Almeida e os outros missionários.


Armando concluirá o capítulo falando da perenidade do nome de Luís de Almeida:  «A introdução da medicina ocidental no Japão por Fróis e a sua piedosa obra são lembrados ainda hoje pelos japoneses. Como já vimos, em Oita ergueram-lhe um monumento (na fotografia inicial) e o maior e mais moderno Hospital Central de Oita tomou o seu nome. Em Hondo (...) Em Nagasaki (...) O seu nome é sempre citado nos estudos históricos sobre a introdução da medicina no Japão. A sua acção de espalhar pelo Japão o espírito do Ocidente é inolvidável».

Faltaria resumirmos os capítulos finais intitulados Um grande clássico por descobrir em Portugal: Luís Fróis, Um precursor da sociologia: João Rodrigues, acerca deste intérprete, filólogo e autor de obras sobre a língua nipónica, Um Mártir: Diogo de Carvalho e finalmente O Último dos grandes aventureiros Lusíadas, Wenceslau de Moraes, mas para não estar a resumir e eventualmente a distorcer  ou a enfraquecer intencionalidades de Armando Martins Janeira e porque se espera já há algum tempo que a sua Obra Completa seja finalmente dada à luz na Imprensa Nacional Casa da Moeda, vamos terminar, pelo menos por hora, e neste dia 31 de Outubro de final de ciclo, estes textos de resumo de um livro de leitura bem valiosa e que se encontra todavia ainda em alfarrabistas ou em venda pela internet. 

Anote-se que  Armando Martins Janeira conclui a sua obra com dois pequenos capítulos, Avaliação do Passado: Os Modernos estudos-Luso-japoneses, bastante ultrapassado pelas numerosas publicações das décadas posteriores, onde destacaremos a publicação completa em cinco tomos da História do Japão, de Luís Fróis, La Compagnie de Jesus et le Japon. 1547-1570, de Léon Bourdon, partir de 1993 a obra de referência, ano em que se realizou o Colóquio O Século Cristão do Japão, com as actas publicadas em 1994; as Cartas do Japão, em 2 vols. em 1997, num fac-símile da raríssima edição de Évora de 1598; e também o Bulletin of Portuguese/Japanese studies, desde 2000, dirigido por João Paulo Oliveira e Costa, que com Valdemar Coutinho publicou também individualmente. Ou ainda os contributos de Michael Cooper, Jacques Besineau; e os de Maria Helena Mendes Pinto sobre a arte Namban, e os de Américo Costa Ramalho e Sebastião Tavares Pinho em relação às obras em latim de Duarte Sande. E devemos mencionar por fim os autores japoneses  referidos então por Armando Martins Janeira: Ken Takeuchi, Tamon Miki, Saburo Ienaga, Eichiro Ishida e Shitaro Ayuzaka. No último capítulo, O Passado e o Futuro, faz votos para que Portugal não se limite na Europa, tal como na época dos Descobrimentos, e desenvolva as suas relações com Japão, agora mais na tecnologia e industrialização, e aprendendo a investir mais na investigação e no futuro, e que saiba também erguer alguma estátua a uma grande personagem japonesa, tal um busto de Bashô...

sábado, 30 de outubro de 2021

Fernão Mendes Pinto, o 3º das "Figuras de Silêncio", livro de Armando Martins Janeira, bem valioso. Breve resumo por Pedro Teixeira da Mota.

 Fernão Mendes Pinto (1513-1583) escreveu uma obra que atravessará os tempos como o melhor testemunho presencial dos portugueses no Oriente no tempo dos descobrimentos, já que, partindo de Lisboa em 1538 e regressando em 1558,  passou por mil aventuras descritas magistralmente na Peregrinação, publicadas já só postumamente em 1641, com revisão e prováveis censuras de Francisco de Andrade e do padre Francisco Lucena, este quem biografará Francisco Xavier sem nunca ter saído de Lisboa e haurindo muito da Peregrinação.

Armando Martins Janeira, no capítulo O Descobridor literário do Japão, Fernão Mendes Pinto, defenderá contudo também a veracidade da maior parte do que é narrado na Peregrinação. tendo examinado e aprovado a maior parte dos nomes referidos nas descrições que deixou das suas estadias no Japão: «As menções geográficas da ilha de Kiushu e da pequena ilha de Tageshina não pecam nem sequer no detalhe». Também a chegada de Francisco Xavier a Kagoshima, em dia de N. Senhora da Assunção, 15-VIII-de 1549, a viagem a Hirado e a Kioto, e depois o regresso a Yamaguchi, onde num ano, até 5 de Setembro de 1551, converteu 3.000  almas, são descritos de um modo quase igual ao do padre Luís Fróis  na sua História do Japão, que Fernão Mendes Pinto não conhecera. 

Refere a famosa conversão de Fernão (por este mesmo bem descrita), como ele sentiu necessidade de aderir a uma via mais religiosa e entrar na milícia da Companhia de Jesus, onde esteve dois anos e a qual deu muito dinheiro, mas que depois resolveu voltar ao seu estado leigo e livre, o que ao longo do tempo a maioria dos historiadores jesuítas não perdoou. Mas como poderia um aventureiro, um cavaleiro do amor daquele quilate de sensibilidade, curiosidade e coragem, que gostava de ver teatro, pescar, caçar e admirar os templos e santuários japoneses deixar-se modelar por muito tempo pelos estatutos apertados da Companhia,  talvez sentindo também desafinidades com alguns missionários de temperamentos  mais extremistas e destruidores da variedade religiosa do género humano, tão patente no Japão?

A parte mais valiosa do capítulo interelaciona-se com essa universalidade religiosa latente, visceral ou implícita de Fernão Mendes Pinto (em cima numa sua hipotética imagem na igreja da Misericórdia, de Almada, onde faleceu) e,  embora a obra dele possa não ser "exacta muitas vezes isso não implica que falte à verdade essencial das coisas",  Armando Martins Janeira discorda, e com  razão, do conhecido estudioso ou especialista de Fernão Mendes Pinto, George le Gentil que pusera em causa as narrações de disputas teológicas, algo que contudo veio a ser confirmado por outras fontes, e em especial a História de Japão de Luís Fróis, o insuspeitado missionário jesuíta e companheiro de S. Francisco Xavier. Oiçamos então Armando Martins Janeira

«George le Gentil concebe "dúvidas sobre o relato das discussões de Xavier com os bonzos". Ora a verdade é que a discussão de Xavier com o bonzo Furucandono é o mais verosímil e hábil relato de uma discussão que é possível ter existido entre um missionário do carácter de Xavier e um monge budista. Todos os argumentos fundamentais que os budistas opunham aos cristãos são ali invocados: o argumento da reincarnação, baseada no budismo; porque negava o cristianismo alma aos animais?; porque não previu Deus, ao criar os anjos, a rebelião e a queda de Lúcifer, e, se a previu e é infinita a sua misericórdia, porque não a evitou, poupando tanto mal aos homens? porque não enviou Deus, ao mundo Cristo, seu filho, antes de Adão ser tratado pela serpente? Não falta mesmo a observação de que a pronúncia da palavra «Deus» em japonês soa como «Dai so», «grande mentira». 

Ora de facto algumas destas questões eram complexas para Francisco Xavier responder, atado que  estava a uma série de tradições, narrativas ou personagens do Antigo Testamento, tal o Génesis, a Serpente, Lúcifer, que na realidade são explicações míticas, susceptíveis de várias hermenêuticas simbólicas. Por outro lado algumas questões dos monges assentam numa oposição à concepção de Deus do Catolicismo que, entroncada no Jehova tribal e violento, fatalmente teria muita limitações, a que se acrescentaram as  dos cristãos dos primeiros tempos que fizeram do mestre Jesus, Deus e reservaram só para ele, ou para os que que acreditavam nele ou na religião cristã,  a única via de salvação de toda a Humanidade, mesmo para as almas do longínquo e extremo Oriente. E todos os que teriam vivido antes da vinda dos missionários estariam no Inferno, algo que até não incomodava muito o santo apóstolo do Oriente.

E continua «Quem haja lido os documentos da época e conheça o budismo sabe que estas eram as principais objecções postas aos missionários e às quais o budismo dá resposta mais satisfatória [em alguns casos...] do que a dada então por S. Francisco Xavier - que, segundo Mendes Pinto, respondia apenas que tais perguntas eram inspiradas pelo Demónio. E a bem da inteligência de Mendes Pinto se deve sublinhas que ele não parece convencido das razões dadas pelo santo para responder a "umas razões tão agudas"».

A bela  homenagem do embaixador e universalista Armando Martins Janeira neste seu livro Figuras do Silêncio a Fernão Mendes Pinto e à sua Peregrinação, é  justificada pois «transparece em todo o livro uma grande simpatia pelos países onde anda, a curiosidade e o gosto de descrever costumes exóticos, empregar frases de estranhas línguas, aventurar-se a experiências raras. A linguagem florida e verbosa dos diálogos em que intervêm orientais ou de cartas e mensagens a estes atribuídas mostram a profunda influência asiática que Mendes Pinto sofreu». E acrescenta algumas apreciações dele sobre o Japão: «gente muito hospitaleira» e «naturalmente muito bem inclinada e conversadora». «São mais ambiciosos de honra do que todas as outras nações do mundo». «É a nação mais sujeita à razão que todas as outras». E que Fernão Mendes Pinto gostava de «ver os templos dos seus pagodes, que eram de muita majestade e riqueza».

Sem dúvida Fernão Mendes Pinto, que fez quatro viagens a Kiushu, e «numa delas, como embaixador do vice-rei da Índia, entregou a carta que deste levava ao dáimio do Bungo» entre os ocidentais, «é o primeiro escritor japonizante», e é com razão que hoje em dia ainda é celebrado anualmente com bastante amor na ilha de Tanegashima com um original matsuri, ou procissão-cortejo namban, isto é, dos bárbaros do sul, que parte dum templo xintoísta, já que levam «aos ombros o grande andor xintoísta - omikoshi-» como bem relata e ilustra neste seu tão valioso livro Figuras de Silêncio. A Tradição Cultural Portuguesa no Japão de hoje. Anote-se que em 1988, Avelino Rodrigues, Leong Ka Tai e Gonçalo César de Sá deram à luz pelo Instituto Cultural de Macau, um grande e belo livro Tanesgashima, a ilha da espingarda portuguesa, com a seguinte dedicatória: «Ao POVO DE TANEGASHIM, que se revê na história do primeiro encontro da Europa com o "País do Sol Nascente", e a MARTINS JANEIRA, que descobriu Portugal no Japão, os autores dedicam esta memória.»

 De facto, por duas vezes participou em tal matsuri e cortejo namban que se realiza na cidade de Nishimo Omote, e em que se homenageia particularmente Fernão Mendes Pinto, Almirante e com sua amada Wasaka,  mas é no 6º capítulo consagrado a Tanegashima, A pequena ilha japonesa onde os «bárbaros» portugueses aportaram a primeira vez  que partilha de modo belo as intuições sentidas  diante do oceano por onde  chegaram pela 1ª vez os portugueses em 1543, e ao mesmo tempo que no «Templo xintoísta, ao fundo, o Espelho sagrado reflectia o Sol, de que é símbolo, trazendo a presença da Divina Amaterasu, que um dia foi invocar, ao nascer do Sol [tal como eu...], no cimo do sagrado monte Fuji, em preito ao povo japonês, do qual é benévola protectora. Contemplando aquele símbolo dos homens do mar [o monumento aos Navegadores de Portugal, da autoria de António Duarte], senti, pela primeira vez, tão distintamente como se sente o palpitar do coração, que a alma se me iluminava e me erguia à grandeza de um momento raro [o que no Japão se designa por ichi-go ichi-e]. 

E, diante daquela multidão de japoneses, comecei vibrante, a dizer, em português, o meu discurso: "Aqui, em frente ao mar antigo, quiseste erguer um monumento à coragem. Aos homens de coragem que há mais de quatro séculos, cortando o mar desconhecido, aqui vieram só pela aventura humana de encontrar-vos. Não vinham apenas de estranha e longínqua terra, vinham de outra civilização - confiados na amizade dos novos homens que procuravam - trazer-vos a cultura da Europa. 

O homem nasceu para ousar: "viver não é necessário, é necessário navegar", era a sua divisa. Arrojados criadores de novo entendimento entre os homens foram os navegadores que esta pedra lusa simboliza. E audazes foram os japoneses, que, a alma ao Oriente fie, inspirados na civilização do Ocidente, criaram um grande país e estão a continuar o caminho da nova civilização universal que o Ocidente e o Oriente abraça.

Assim nós, homens do Presente, encontramos o sentido da vida dos homens do Passado, naquela comunhão de espíritos de que têm nascido as grandes obras que o tempo guarda.

Em nome de Portugal, entrego à ilha de Tanegashima este monumento - não só para que ele fique a testemunha a amizade do Passado, mas para que ele dê corpo a um grande sonho de beleza e fraternidade, e o leve, como uma semente, aos homens [e mulheres] do Futuro.»

E aqui e agora estamos nós hoje, gratamente, nesta "comunhão de espíritos de que têm nascido as grandes obras que o tempo guarda"...

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Erasmo, mestre do passado, exemplo do presente e impulsionador do futuro. E com frases ou ditos bem inspiradores...

        Erasmo, mestre sempre actual e amigo e inspirador perene....

   Pequena homenagem e evocação neste seu dia de anos, pois nasceu perto de Roterdão em 28 de Outubro (dia de S. Erasmo), de 1466 a  1469, lembrando ainda o Prof. José Vitorino de Pina Martins, um erasmiano, amigo e sábio humanista, com quem muito convivi sob as asas espirituais de Pico della Mirandola e Marsilio Ficino, Thomas More e Erasmo... Muita luz e amor divinos neles e que as bênçãos divinas cheguem a todos nós...
                                    
  A expressão mestre é porém complexa, pois se no Oriente o “guru” tem um sentido claro de dispersador das trevas, ou ainda de ser pesado em termos de conhecimento e sabedoria, o magister latino (provindo do magis, mais), significando o que dirige, ensina, comanda, preside, acabou por receber na época significação menosprezadora por causa do vazio ou então a rigidez dogmática que por vezes encerrava, ou se ocultava, sob as pomposas vestes, títulos e posições. Assim os magisters nostris, e em Erasmo em especial os da universidade da  Sorbonne que tanto o atacaram, por ele denominados os teólogos sorbónicos e que, nas defesas por Erasmo dos ataques que lhe fizeram são ridicularizados. Mas também ele próprio se tornou um mestre para milhares e milhares de seres, pois se compulsarmos as três mil duzentas e tal cartas que se conhecem da correspondência de Erasmo (cerca de 2000 escritas por ele) veremos que muitos se dirigiam a ele nesses termos ou com imensa respeito ou mesmo devoção e desde reis a barqueiros...
E de facto Erasmo foi um mestre ou guru, no bom sentido de ter peso ou gravidade de sabedoria e simultaneamente de ser  clarificador, expulsando trevas de ignorância e de fanatismo, e impulsionador de qualidades luminosas nos que o liam ou ouviam, por várias razões das quais passo a enumerar algumas:
Mestre viajante, de trabalhos editoriais e de grandes sucessos, de polémicas e intervenções delicadas (já que foi constantemente atacado como causador de dúvidas, tal para S. Inácio de Loiola, ou mesmo herético), pioneiro do amor aos estudos das belas letras ou da cultura greco-latina, da poesia e eloquência à retórica e à gramática, mestre na pedagogia, desde a higiene à dietética, das crianças aos que se preparavam na arte de bem morrer, mestre no acesso das mulheres ao estudo, à educação e ao casamento livre e profundo, mestre enquanto dominava o latim e o grego e os partilhava,  mestre na firmeza da sua posição por si mesmo, não se deixando influenciar demasiado pelas pressões viessem de quem viessem. E escrevi o “demasiado” porque, por exemplo, acabou por ter de retirar algo da sua ousadia, tal a designação inicial de Novo Instrumentum, para a  primeira edição da sua tradução original do Novo Testamento, que ainda assim depois prosseguiu em novas impressões anotadas, e que o próprio Papa Leão X aprovou, protegendo-o de sorbónicos e zelotas. Onde teve de recuar também foi na sua crítica ao coma joanino, uma interpolação do Espírito Santo tardia no Evangelho de S. João I . 5:7. e que  introduzira  " Porque três são os que testemunham no céu, o Pai, o Filho e do Espírito Santo", e que no seu Novo Testamento retirara, mas que foi forçado na sua 4ª edição a repor. Era assim também um mestre de paciência humilde, ainda que se defendesse, face aos indoutos e falsários...
                     
Mestre da união da sabedoria dos antigos povos e civilizações com as fontes autênticas do Cristianismo, os Evangelhos e os escritos dos primeiros Padres da Igreja que ele traduzira, purificara, comentara e editara, valorizando bastante Orígenes, Basílio, Ambrósio e Jerónimo.
Mestre da crítica e da ironia, bem desenvolvida no Julio Exclusus (uma crítica ao violento Papa Júlio III e que publicou e manteve anónima), nos Colóquios e sobretudo na sua obra prima o Elogio da Loucura, mestre da cultura europeia letrada (que está ficar cada vez mais desfigurada, desenraizada e superficializada), mestre de príncipes, mestre dos cristãos (frase de um correspondente em Espanha), mestre da concórdia, mestre da paz (na altura designada por irene, do grego), ou irenismo - pacifismo, do qual é um exemplo a sua obra Consulta acerca da utilidade da guerra aos turcos, hoje em dia tão necessária face ao imperialismo destrutivo do petrodólar e seus coligados.
Neste sentido, irenaico, escreveu: «O importante, onde se deve aplicar toda a nossa energia, é a curar a nossa alma das paixões: Inveja, ódio, orgulho, avareza, concupiscência. Se não tenho o coração puro, não verei a Deus. Se não perdoar ao meu irmão, Deus não me perdoará... S. Agostinho encontrou um ou outro caso onde não se reprova a guerra: mas toda a filosofia de Cristo a condena. Os apóstolos reprovam-na sempre, e os doutores santos que a admitiram em certos casos, em quantos outros não a condenam? Porquê procurarmos à custa duma passagem evangélica o com que autorizar os nossos vícios?»
Mestre de uma reforma pacífica, pelo auto-conhecimento e aperfeiçoamento dos cristãos, nomeadamente com o seu best-seller O Manual do Cavaleiro Cristão, para o que escreveu ainda o seu Modo de Orar a Deus (que traduzi com Álvaro Mendes, e comentei, nas Publicações Maitreya, em 2008),  e, pese a sua erudição e racionalidade, mestre de mística, esta considerada como o sumo Bem a ser procurado e que nos aponta sobretudo no Elogio da Loucura, na loucura dos amantes ou na intensificação do amor nos místicos, ou na de Jesus pela humanidade.
A sua modernidade está bem visível na profunda auto-consciência crítica (até a ironizar consigo próprio no Elogio da Loucura ou no Ciceroniano), na percepção da relatividade das coisas e da própria verdade, e da fragilidade do conhecimento humano, nomeadamente nos aspectos religiosos (“anotação ridícula", "lapso miserável", "engano”, surgem nas notas que fez ao Novo Testamento, em relação às interpretações que S. Tomás de Aquino fizera), donde uma reserva ou mesmo negação do valor e eficácia de autoridades fracas, superstições, rituais, dogmas, fanatismos e seitas.
Mestre na valorização da transformação interior, da metanóia a partir da experiência espiritual e da vivência das doutrinas e ensinamentos. E na valorização da convicção pessoal obtida por esforço ou studium, nomeadamente dos textos mais sagrados para se transformar a mente e o coração e assim podermos comungar melhor no corpo místico de Igreja e da Humanidade, formada dos seres piedosos e dos anjos, dirá...
A actualidade das visões e posições de Erasmo em termos de política pode ser realçada talvez para castigarmos rindo  dos reis, governantes ou banqueiros modernos que nus sempre estão e vão e despojam a muitos: adágio A Mortuo I, IX. 12 : «Não há pacto nem limite, cada dia eles inventam novas formas de impostos, e o que quer que tenha sido introduzido para satisfazer uma necessidade momentânea retém-no muito agressivamente.”
 A afirmação de Erasmo como mestre espiritual da Europa, da Cristandade e da Humanidade pode ser sumarizada em sete razões principais:

Porque demonstrou  que a educação, o studium, o diálogo, o amor, a ligação espiritual, a concórdia e a paz são a base das civilizações e da humanidade. E que os humanistas estavam a ser e podiam ser os  fermentos de tal, nos locais de ensino, nas cortes e nas sodalidades e república literária que constituíam.

Porque mostrou que há um trabalho criativo e persistente fazer-se sobre os instintos e os desejos, a palavra e a escrita, a mente e a alma na base do estudo e do amor. E assim conseguiu equilibrar as suas necessidades afectivas e as de recolhimento e solidão, derramando-se em mil cartas...

Porque foi bastante crítico dos egos e dos hábitos,  dos preconceitos e da sede do poder, das falsas autoridades e opressões da liberdade, não recuando face às polémicas que lhe lançaram, antes desenvolvendo uma metodologia moderna de mostrar as fragilidades das opiniões, qualificações e motivações dos outros e, apoiando-se em provas e em citações de autoridades indiscutíveis, e de apresentar os seus argumentos e conclusões convincentemente.

Porque valorizou muito uma piedade docta e o amor ao próximo, no que chamava a filosofia de Cristo, sem dúvida o seu mestre principal, embora também tivesse valorizado Aldo Manutio, Jean Vitrier e outros. Esta aceitação do mestre  não implica repudiar o  génio próprio ou individualidade, o qual deve estar ao serviço criativo da Humanidade, da sabedoria e da Divindade.

Porque valorizou bastante o sermo, a palavra, o logos, a conversa, a sinceridade, e o seu uso nas orações, escrevendo mesmo algumas que deixou para a posterioridade, a par do seu entendimento do Modo de orar a Deus.


Porque foi um mestre da meditação e da oração, do controle dos pensamentos e do ego e admitiu que a unificação interior espiritual e  a união proporcionada ou adequada com Deus são potenciais de todo o ser humano e que os estados de graça, de  êxtase, rapto, bem-aventurança ou expansão de consciência podem acontecer a qualquer momento para quem avança e aspira correcta e esforçadamente no Caminho diário.

Concluamos com alguns dos seus ditos magistrais e que nos ajudam a controlar, harmonizar e espiritualizar a nossa vida e alma: 

«A luz da fé agudiza o olhar espiritual e permite-lhe de distinguir mais coisas que não podem os olhos do corpo.» De Concordia.

  «Eles têm o Espírito Santo nos lábios, mas um espírito muito diferente nos seus corações. Capita argumentorum contra morosos quosdam ad indoctos

«Têm mais as Musas e as Graças no peito que nos quadros, mais nos costumes que nas paredes». Carta a John Botzhein.

 «Põe  diante dos olhos o Anjo custódio teu, que é assíduo espectador de tudo o que fazes e pensas». Enchiridion

«O olho da fé é verdadeiramente simples e como de pomba e contempla reverentemente Deus, o que Ele quis que conhecêssemos e não perscruta curioso aquilo que le quis tapado, até que cheguemos aquele teatro celeste em que Ele próprio e claramente permite ser contemplado completamente pelos nossos olhos mais purgados ou purificados.» De fide et symbolo

    Ego aliam artem notoriam scientiarum non novi quam curam amorem et assiduitatem" Colóquios. Concio sive Menardus. «Eu não conheço outra arte  mágica das ciências que a aplicação, o amor e a assiduidade.»  

 «Aquele que ama com intensidade ou transporte não vive, para assim dizer, em si, vive no objecto do seu amor e, quanto mais de si mesmo se separa para se identificar com o objecto amado, mais perfeita é a sua ventura ou felicidade». Elogio da Loucura.

 Traduções de uma das suas mais belas frases ou mantras:

Ego mundi civis esse cupio, communis omnium vel peregrinus magis.

 «Eu desejo ser chamado um cidadão do mundo, um amigo de todas as nações do Universo.», trad. de Albert Maison.

 «Eu desejo ser cidadão do mundo, pertencendo a todos ou mesmo mais peregrino.», trad. de Pedro Teixeira da Mota. 


Sancte Erasmo, ora pro nobis… Sancte Erasmo, ora cum nobis

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Akbar, um pioneiro da espiritualidade e religião ecuménica. Alguns aspectos da sua vida e legado.

      O ecuménico imperador mogol Akbar, vindo a este mundo a 25 de Outubro de 1542, em Umarkot (hoje Paquistão), e regressando da Terra ao mundo espiritual donde proviera, a 27 de Outubro de 1605, contando 63 anos, ainda hoje está vivo, ou a ser estudado e meditado por muitos seres, permanecendo como um inspirador ou, quem sabe se, um guia e mestre. Mas não se pense que quando ouvimos algum islâmico, fanático ou não, a gritar  Allah Akbar se está invocá-lo, pois akbar significa apenas "grande", e na realidade a Divindade é grande, é imensa, não ficando contida nem delimitada em qualquer religião, por mais revelados que tenham sido os seus livros fundadores, ou fixados e canonizados posteriormente...

Jalal ud-din Muhammad Akbar, filho do 2º imperador mogol Humayun e de Hamida Banu Begum, esta uma persa xiita (ou shia), nascido no palácio-fortaleza do príncipe hindu Rana Prasada, que os acolheu após duas derrotas fortes em 1539 e 1541, recebeu influências do ambiente hindu e depois de tios persas em Kabul. Com morte do pai em 1555, apoiado por Bhairam Khan, notável militar xiita, passou a governar aos 13 anos, sendo proclamado Shahanshah, Rei dos Reis, em 14.II. 1556. Confirmou também então solenemente, já noivo desde os 9, o seu casamento com Ruqaiya Sultan Begum, de quem terá descendência, embora numa política de alianças com príncipes indianos assumiu mais casamentos. Aprendeu sobretudo a lutar, e destacou-se durante muitos anos pela sua estratégia e organização militar vitoriosa , mas já não a escrever nem ler. Todavia, como era dotado de grande ânsia de conhecimento e realização, gostava que lhe lessem livros e de dialogar e, portanto, apoiou escritores, historiadores, poetas e juntou muitos livros, criando uma biblioteca para a época muito grande, pois albergava mais de vinte mil livros, empregando nela muita gente, desde livreiros e encadernadores a escritores. Criou mesmo uma biblioteca para mulheres, e fomentou muito a educação feminina, que no Islão tendia a ser menosprezada.
Dotado de uma memória prodigiosa (sabia de cor muitos poemas de Hafiz, Saadi e Rumi) sagaz, afável, justo e místico, a dado momento de estabilização das fronteiras do império, proclamou como intenção e princípio político social Sulh-i-kul, a paz com todos, ou a paz universal, e nessa linha não aceitando a violência impositora de qualquer proselitismo religioso. Foi assim o iniciador, embora Timur já tivesse algo, duma política de aproximação das religiões dos diversos povos do seu império,  sobretudo a partir época em que as influências sufis e yogis se acentuaram nele, deixando de exigir o pagamento de uma taxa aos não islâmicos, em 1568, não apoiando as lutas entre sunis e shias e, sendo obrigado a tratar com os portugueses desde 1572 quando chega ao Gujarat,  interessando-se mesmo pelo Cristianismo e fazendo vir à sua corte, e protegendo-os, os padres de Goa, a capital da Índia Portuguesa, que anuíram ao seu pedido e que desde 1575 participaram nos debates na Ibadah khana, casa, khana, da Adoração, Submissão, Devoção a Deus, Ibadah.
A coroação celestial de Akbar. Folha do Shah Jahan Album, princípio do séc. XVII.    
  
Dotado de grande liberalidade e desprendimento, mandara esculpir sobre o portal da cidade imperial de Fatehpur Sikri por ele fundada, onde funcionava a Casa de Adoração (Ibadah-khana), o templo de longos debates, primeiro só entre islâmicos e depois com religiosos ou mestres das diversas tradições, a seguinte inscrição: «Jesus disse (a Paz esteja com Ele) o mundo é uma ponte. Portanto atravessa-a, mas não construas em cima dela».
Teve muitos contactos próximos com os padres jesuítas enviados de Goa (na 1ª missão, Rudolfo Aquaviva, António Monserrate e Francisco Henriques)  e entre as muitas histórias curiosas que já narramos nas Efemérides do Encontro do Oriente e do Ocidente, ou poderemos narrar, realce-se agora uma: quando partiu numa expedição a Cabul, em 1581,  levando consigo o Padre Monserrate, pediu-lhe que lhe mostrasse num mapa Portugal e a Índia, e discutiram assuntos como o celibato do clero e a identidade de Deus e do Espírito Santo, pela noite a fora. No regresso à então denominada Roma do Oriente, Goa, o P. Monserrate testemunhará por voz e escritos que Akbar clamava pertencer à seita dos místicos do Islão, os sufis, e que o mais lhe importava era contemplar Deus e repetir (zikr) os seus nomes.
                                                                   
Em 1582, no seguimento dos debates em que participara com representantes das várias religiões e tradições na Idabat Khana, e  do aprofundamento da sua intensa aspiração e procura da Verdade, que fora coroada com uma experiência espiritual muito forte já em 1578 (narrada assim pelo cronista Abu-l Fazl, de quem o Padre Monserrate dissera «que o acume do seu engenho superava o de todos os seus contemporâneos»: «uma alegria sublime tomou posse do seu organismo corporal. A atracção da cognição de Deus lançara o seu raio»), Akbar deixa mesmo de seguir os preceitos da sharia, a religião Islâmica no seu aspecto exterior de lei e prescrições e, tendo em conta os melhores princípios e ensinamentos do Zoroastrismo, Jainismo, Sufismo islâmico, Hinduísmo (onde já Kabir desenvolvia tal ecumenismo) e até Cristianismo, funda a Tawid ilahi, a Divina Unicidade, que veio mais  tarde a denominar-se Din-i Ilahi, a Visão ou Fé Divina, e que poderemos considerar um embrião pioneiro da tomada de consciência e formulação de princípios da Religião Universal, que subjaz ou coroa todas as particulares. 
Compreendendo que os vários níveis de consciência e evolução que estão vivos numa dada época não se transformam tão rapidamente, e que as pessoas seguem naturalmente o caminho da religião em que nasceram, e que portanto nunca ou dificilmente haverá uma que seja reconhecida como a melhor ou mais verdadeira pela maioria, a  Religião de Akbar, Di-i Ilahi, ou melhor, o seu grupo religioso, não possuirá livros sagrados ou revelados, nem sequer uma hierarquia sacerdotal, e terá como membros e seguidores apenas uma centena de seus próximos. E entre os seus ensinamentos, que valorizavam muito a pureza e a aspiração a Deus, a quem adoravam na Luz, na Chama e no Sol, pronunciando os Seus Nomes sagrados, um princípio era muito apreciado pela sua abrangência ecuménica: «A Divindade deve ser cultuada com todo o tipo de adoração».
 
O seu bisneto Dara Shikoh (na miniatura, a visitar um mestre yogi), o filho mais velho do imperador Shah Jahan (o construtor do Taj Mahal) e Mumtaz Mahal, continuará a sua visão e  testamento de forças anímicas, que lhe sulcariam a alma, dando à luz algumas obras pioneiras de traduções, de religiões comparadas e da unidade delas, uma das quais, as famosas Upanishads, da melhor sabedoria indiana, através do persa e da tradução para latim de Anquetil-Duperron, chegarão à Europa no final do séc. XVIII, sendo apreciadas por Hegel, Schopenhauer e outros, como os primeiros textos filosóficos e espirituais indianos acessíveis aos investigadores ocidentais. E mais não fez porque o seu irmão mais novo, o fanático Aurangzeb, o assassinou, em 1659, quando ainda só tinha 44 anos e tanto da Tawhid-i-Ilāhī e da Sulh-i-kul, a paz universal, os dois princípios de Akbar, se iriam realizar com ele. Ainda meditei junto ao seu túmulo e tenho no blogue e youtube algo da sua vida e obra comentada.
 Com Asoka, Kabir, Dara Shikoh, Ramalinga Swami, Keshab Chandra Sen, Devendranath Tagore, Ramakrishna, Paramahansa Yogananda, Gandhi, Bede Grifiths (que ainda conheci bem) e outros, Akbar foi das mais notáveis individualidades que procuraram a Divindade e a Verdade num diálogo e convivência ecuménica na Índia e que servem de exemplo para o Mundo inteiro...   
 

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

"Oceano Nox", soneto de Antero de Quental. E hermenêutica dos 14 sonetos que o envolvem.

Os sentimentos e conceitos expressos por Antero de Quental no soneto Oceano Nox, Noite no Oceano, já terão sido mais ou menos levemente intuídos ou vivenciados por muitos ao longo dos séculos, em especial ao contemplarem a impassibilidade do mar ou a mudez dos elementos da Natureza em relação às interrogações e dores humanas. E Antero, com a sua especificidade de constituição anímica e formação filosófica,  ressoando com a Natureza e o oceano, gerou nesse encontro um significativo e bastante musical  soneto que nos faz imaginá-lo junto ao mar, por vezes bem áspero e encapelado que borda Vila do Conde:

                                                            OCEANO NOX
                                            (A A. de Azevedo Castelo Branco)
« Junto do mar, que erguia gravemente
A trágica voz rouca, enquanto o vento
Passava como o voo dum pensamento
Que busca e hesita, inquieto e intermitente,

Junto do mar sentei-me tristemente,
Olhando o céu pesado e nevoento,
E interroguei, cismando, esse lamento
Que saía das coisas, vagamente...

Que inquieto desejo vos tortura,
Seres elementares, força obscura?
Em volta de que ideia gravitais?

Mas na imensa extensão, onde se esconde
O Inconsciente imortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais...»
 
Este soneto, intitulado Oceano Nox, Noite no Oceano, a que adicionamos a pintura de William Daniell’s Eddystone Lighthouse, During a Storm, encontra-se incluído na fase  final da criatividade poética de Antero de Quental,  entre os anos de 1880 e 1884-5, embora  a  data exacta da sua redacção seja desconhecida e se saiba que vários dos sonetos inseridos como sendo de 1880 a 1884 foram escritos na década de 70. Contudo o ambiente muito conseguido do diálogo com o mar inclina-nos a considerá-lo escrito na orla nortenha do oceano em Portugal e foi dedicado ao seu grande amigo, desde os primeiros tempos de Coimbra e da Sociedade do Raio, António de Azevedo Castelo Branco, de quem nos ficaram bastantes cartas valiosas enviadas por Antero.  
O soneto, apesar de Antero considerar os seus  últimos os mais equilibrados e já dotados de uma síntese espiritual, é ainda assim algo triste  e frustrado pelo que a ser mesmo da década de 80 ecoa o ambiente nocturno marítimo de Vila do Conde, onde  Antero vivia não longe do mar e, quem sabe, se o duma noite de Inverno em que tenha ouvido o oceano nesse registo ou leitura psíquica do seu som, embora este soneto seja apenas um entre outros semelhantes, escritos nesses tons tristes ou frustrados face a uma desejada comunicação ou realização maior ou melhor.
Todavia, estando  incluído no ciclo final cronológico 1880-1884 da edição dos Sonetos completos, dada à luz em 1886, ele deve ser lido contextualizadamente, ou seja, tendo em conta os que o antecedem e os que vêm depois, num total de quinze, pois uma narrativa, uma progressão, um fio da meada conduzirá ao último, o da entrega do coração na mão de Deus. Assim, só no fim deste texto é que encontra uma hermenêutica maior do Oceano Nox.
Ao observarmos o 1º, Transcendentalismo, bastante anterior pois foi escrito em 1876, vemos como que uma síntese da sua evolução espiritual, e  símbolos importantes usados noutros sonetos são vivenciados neste num sentido de calmo desprendimento do mundo e das suas ilusões, e numa estabilização  no espírito impassível, algo a que Antero aspirava e por vezes conseguia no seu estoicismo, mas talvez sem a grande profundidade e altura daplena experiência ou vivência do espírito, a que aspira e a que se refere uma ou outra vez... 
Significativamente, sendo o primeiro desta série, está dedicado ao seu grande amigo Oliveira Martins, enquanto que o último será dedicado à sua mulher Maria Vitória, que gostava muito dele, tal como ele dela.
No 2º, Evolução, este sim de 1882, mostra-se a evolução possível do ser humano desde a pedra até, como ele e outros seres humanos, só aspirar e adorar a Liberdade, e ecoa tanto as ideias evolucionistas biológicas de Darwin e as psico-filosóficas de Hegel como as orientais da metempsicose. O 3º é o mais longo, pois subdivide-se em seis sonetos, e foi publicado em 1875 na Revista Ocidental, intitulando-se o Elogio da Morte, de facto uma realidade que Antero muito cogitou e poetizou, levando como epígrafe inicial o famoso dito grego: Morrer é ser iniciado, que à morte de Antero o seu amigo Joaquim de Araújo bem glosou num poema que já interpretámos, dito helénico que Fernando Pessoa também citou e poetizou. E, nos seis sonetos de que é composto, Antero de Quental presta o seu culto, ou confessa a sua atracção ou mesmo paixão por ela, convencido que, como diz no soneto quinto: «Dormirei no teu seio inalterável, / Na comunhão da paz universal, Morte libertadora e inviolável».
Este ideal da morte para se dormir ou, tal como escreve no soneto final, descansar o coração na mão direita de Deus, compreende-se bem ou aceita-se em Antero de Quental pela muita atribulação que teve nos seus 49 anos de vida, com muitas noites quase sem dormir, a cabeça sempre a pensar e o coração algo desiludido. Mas no sexto soneto e último do Elogio da Morte, Antero vai mais longe e posiciona-se como filósofo e metafísico das elevadas concepções pois  afirma a identificação da vivência da morte com o Não Ser, que é o Ser único Absoluto.  
Esta posição filosófica, que é também a de algum modo a da filosofia oriental não-dualista (advaita) e talvez mais a da filosofia budista em geral era na época de Antero a de algumas filosofias do Inconsciente, e que cremos afirmada mais por especulação do que por real vivência, terá tido alguma influência e era válida em Antero quando  este se suicidou? 
Pensamos que infelizmente não, não entravam no Absoluto, tanto mais que  tal não será o destino dos seres individualizados ou espiritualmente imortalizados pois provavelmente só entrarão no Não Ser, no fim do ciclo de manifestação cósmica, se não é que será na Divindade Primordial.
No soneto seguinte, o 4º, Contemplação, não datado mas certamente da década de 80 (como uma carta a Carolina Michaelis, de Outubro de 1886, que o refere, nos permite deduzir), sente a mesma resposta que encontra nesta Noite no Oceano: «E dentre a névoa e a sombra universais/Só me chega um murmúrio feito de ais.../ É a queixa, o profundíssimo gemido/Das coisas que procuram cegamente/Na sua noite e dolorosamente/ Outra luz, outro fim só pressentido...», soneto que se insere na sua visão de uma Alma infinita nas coisas, num estado muito latente e que só no ser humano se autonomiza e eleva e que ele sentirá, pelo menos poeticamente e que procurará aprofundar filosoficamente...
O Lacrimae Rerum, As Lágrimas das Coisas, o 5º soneto, não datado, repisa a mesma percepção subtil triste da noite muda e da escuta dos suspiros das coisas nas trevas. Já no 6º, Redempção, enviado por carta ao seu jovem e bom discípulo e amigo Joaquim de Araújo (1858-1917) em 1882, em dois sonetos, e que foi dedicado a Celeste, a mulher do seu grande amigo Jaime Batalha Reis, Antero consegue ouvir no 1º  "as vozes do mar, das árvores, do vento"  e admitir a existência do "verbo crepuscular e íntimo alento das coisas mudas", o "espírito que habita a imensidade" e sentir a irmandade de alma com "as vozes do mar, da selva, da montanha", ainda cativas mas "ansiando pela liberdade". E no 2º alenta tais almas pois vaticina-lhes que um dia serão almas conscientes. Há uma visão ascendente seja de transformismo biológico evolucionista seja de metempsicose, isto é, a passagem de psiques ou forças anímicas  de uma forma para outra mais perfeita, algo  afim da tradição oriental, e da platónica e neo-platónica,  pois crê, e algo optimisticamente, que, desfeitas as formas ilusórias, tais incipientes almas conseguirão "pairar no puro pensamento", embora tal seja provavelmente sobretudo aplicável a ele próprio ou ao ser humano. Estes dois sonetos, com o Contemplação, conforme uma carta de Outubro de 1886 a Carolina Michaelis de Vasconcelos, para Antero «representam em forma de imagem e sentimentalmente uma das ideias fundamentais da compreensão das coisas, a que cheguei e em que fiquei, e que espero ainda desenvolver em prosa e com o rigor da exposição filosófica.»
                                                De Bô Yin Râ, ao espírito, à sua subtil voz...
No 7º soneto, Voz interior, enviado também por carta em Junho de 1883 a Joaquim de Araújo, com a nota: «É o último que fiz. Não me parece tão bem como algum dos outros, que lhe irei mandando, quando possa», Antero partilha a mesma estação de alma dos outros sonetos escritos em Vila de Conde, junto ao Oceano: "o bramir do mar tempestuoso", "o universo monstruoso", "um ai sem termo, um trágico gemido", mas no fim desponta (ou poetiza) finalmente uma luzinha bem valiosa no interior: «Só no meu coração, que sondo e meço,/ Não sei que voz, que eu mesmo desconheço,/ Em segredo protesta e afirma o Bem!»
Se os seus sonetos correspondessem a vivências interiores da alma de Antero de Quental, poderíamos afirmar que este da Voz Interior representa uma iluminação: pequena, simples, um sussurro interior mas que o fundamenta intimamente e lhe vai dar forças e esperanças, pois esta experiência da voz íntima, ou de tentarmos ouvir a voz da consciência, sentida ou manifestada neste soneto, e num ou outro mais, ecoará  em várias cartas aos amigos, em especial a Fernando Leal e a Jaime de Magalhães Lima, dois dos mais espirituais. Ora tanto este soneto como o seguinte foram dedicados a João de Deus, poeta  do amor natural e do cristianismo simples, que protestava contra o Antero do vazio e do não-ser, da tristeza e da morte. E assim no segundo soneto, o 8º do ciclo, intitulado Luta,  de 1884, embora envolto pela noite com a sua paz, esquecimento e sonho, afirma sentir o seu pensamento desperto por atracções divinas e o tropel de almas peregrinas, enquanto simultaneamente «ecoa, ó mar, a tua voz antiga».
O 9º soneto, Logos, bastante antigo, de 1875, como o seu nome indica deveria apontar para o reconhecimento da presença Divina, seja como Inteligência ou Intelecto, seja como Ordem e Providência, seja ainda como Amor. Todavia acaba por ser apresentado de uma forma  original mas estranha: a Divindade, ou o Génio,  ou ele próprio, ou a Razão,  surge como pai e irmão, como tormento e tirano, mas a quem ama mesmo assim,  deixando assim Antero transparecer algo das dualidades que o habitavam, ou mesmo estratos religiosos do passado (o Deus tão misto do catolicismo), algo que para um psicanalista torna este soneto dos mais ricos.
O 10º,  Com os Mortos, segundo Luís Fagundes Duarte datado de 1885, é outro soneto iluminado, embora o pedagogo António Sérgio o desvalorize, o segundo após a Voz Interior, e nele, ainda que haja alguma leve sombra ou dualidade inicial, rapidamente Antero anuncia a certeza da imortalidade da alma em dois tercetos finais magistrais e mesmo musicais, que diremos mesmo que podem ser  decorados, isto é, assumidos de cor pelo pelo coração, já que falam de meditação e comunhão no Amor e no eterno Bem, o último sendo mesmo como um mantra pontificial, isto é, de ponte e entrada nos mundos espirituais, algo que se desenvolveu nos Livros dos Mortos egípcios e tibetanos e se patenteou nas lamelas órficas, dos iniciados gregos, levadas ao peito com formulas religiosas de ascensão, na passagem para o Além.
 
 Ora o 11º soneto Oceano Nox, não datado, surge-nos neste seguimento e é face a eles uma noite escura, e de facto o que é tal ambiente senão isso tanto física como espiritualmente, usando-se esta expressão "noite escura da alma" para designar aqueles momentos em que um místico ou um espiritual, já depois de ter recebido luzes ou graças, se vê numa estação, momento ou fase mais árida, com menos luz a ser recebida, e menos graça e amor divino sentidos. Creio ser valiosa  esta analogia da noite no oceano ouvido como rouco e triste, com a noite de alma do peregrino espiritual, que Antero era e que todos somos, mais ou menos, com trevas e claridade na nossa demanda interior...
O seguinte, o 12º soneto, Comunhão, não datado mas provavelmente da década de 80, é outro dos sonetos mais luminosos, pois partindo da noite escura que o rodeia, reprime o pranto e assume a "fé dos antepassados e gerações  antigas" que o precederam, com humildade e "na comunhão dos nossos pais antigos".  E sabemos como isto é verdadeiro e como foi sempre uma linha de força da Tradição espiritual ocidental e portuguesa, tal como também bastante acentuadamente da africana, da japonesa e da chinesa, com o seu culto dos antepassados e que alguns missionários jesuítas souberam bem aceitar no seu esforço de conciliação e diálogo inter-religioso.
Pintura de Bô Yin Râ: Luz e Amor divinos nos que já partiram, oremos...

O 13º soneto, o Solemnia Verba, Palavras Solenes, escrito no seu dia de anos em 1884, é outro dos mais luminosos e vitoriosos, e ecoa o soneto Mors-Amor, a vitória sobre as dúvidas e a morte, e oferece uma outra alternativa ao cavaleiro do soneto do Palácio da Ventura, pois num valioso diálogo de auto-conhecimento «o coração feito valente",  através dos esforços e sofrimentos, consegue consciencializar-se que tudo serviu para se ter elevado e ver agora o Amor, sendo tal um princípio ou começo de o sentir, de o adorar, de o amar e manifestar.
O 14º soneto, e penúltimo, O que diz a Morte, não datado, é uma rendição ao seu amor da Morte, considerando-a como a grande libertadora, fazendo desaparecer da sua alma "paixão, dúvida e mal" e dores. Ora se a morte em certos aspectos liberta os seres do corpo e, se trabalharam bem em vida, os propulsiona para um plano de vida mais subtil, desperto e feliz, noutros casos não é assim e as pessoas ainda mais sofrem no além, se vão para lá muito ignorantes, rudes, violentas.  É um certo idealismo da morte o que Antero reflecte, pois tudo o que refere deveria ser harmonizado ou vencido em vida e não obtido com a morte, que não tem esse poder de terminar com os males, senão para o cérebro que acaba, e do corpo físico que começará a decompor-se. Podemos talvez detectar a impregnação de uma certa identificação de Antero ao corpo, ao cérebro e atribuindo exageradamente à morte uma capacidade libertadora anímica, o que não é forçosamente o caso, e menos ainda quando ela vem por suicídio.
O 15º soneto e final, Na mão de Deus, de 1882, é de novo um soneto luminoso, mas mesmo assim frágil, algo passivo, embora se possam considerar positivos e valiosos os sentimentos de humildade e de entrega a Deus. Compreende-se melhor este dormir do coração ou da alma na mão de Deus, se nos lembrarmos que Antero sofreu muitas insónias e momentos de grande desânimo, sendo tratado medicamente e não sabemos bem com que efeitos. Foi escolhido por Antero e Oliveira Martins talvez para dar um fim mais católico, pois emprega a palavra Deus a quem ele se entrega. Mas sabemos também que logo na altura de o redigir teve de explicar aos amigos, nomeadamente ao seu íntimo Alberto Sampaio, quem enviou o poema:«Não te assuste a palavra Deus. É um símbolo e ainda o melhor para exprimir uma certa coisa, que doutro modo não caberia em verso. Pura liberdade poética», tal como já publiquei neste blogue nos comentários mais extensos só consagrados ao soneto na Mão de Deus. E foi dedicado à mulher de Oliveira Martins, Dona Vitória, que era muito católica, "discreta e recolhida". Podemos realçar ainda a referência à mãe, a quem ele muito amava e na sua morte muito chorara. Neste sentido o soneto é até um bom bilhete de viagem para a morte, para a religação à mãe, talvez sua guia-curadora no além, e  à Terra Mãe e ao princípio Feminino Divino, no que este possa ser sentido ou realizado. Algo disto se passará com Fernando Pessoa, também muito ligado à mãe e saudoso até dela depois da sua partida...
Assim ficaram ordenados para sempre os Sonetos, embora não obedecendo rigorosamente à ordem cronológica que lhes foi atribuída, e cabe-nos então assumirmos mais fortemente a responsabilidade de caminharmos no sentido que ele indica, na linha de Platão ou dos neo-platónicos  e de outros peregrinos espirituais, de ultrapassarmos as formas imperfeitas de ideais e de paixão e de, mais ou menos despertos, comungarmos com o coração liberto na Divindade ou, se quisermos, estarmos à sua benigna direita, para usarmos simbologia religiosa conhecida ou consagrada pelas religiões pagãs ou pré-cristãs e as posteriores.
                                                              
Para finalizar, interpretemos então mais especificamente o Oceano Nox:
A primeira quadra mostra-nos os dois elementos naturais mais trabalhados por Antero de Quental e equiparados a aspectos humanos, o mar com a sua voz grave, e o vento, como o pensamento, irrequieto, ou seja, a água das emoções na voz, e o pensamento mental no vento. Antero  observa-os externa e internamente, mas junto a eles, sentindo-os e, como filósofo, interroga-os e ausculta-se sob tal efeito.
A segunda quadra introduz-nos num acto de meditação e contemplação: Antero de Quental senta-se para sentir e intuir e, do mar e do vento,  expande a sua consciência para o céu, o Universo e todas as coisas, nomeadamente olhando o céu que está nevoento e pardacento.  Será o céu coberto e acinzentado que faz mais Antero ler e assumir a tristeza, ou era já Antero que estava nesse estado de alma, seja por si mesmo, seja por osmose com a voz rouca, grave e algo muda do oceano?
Ora esta actividade de Antero de Quental é até uma prática milenar: a de se tentar ouvir alguma voz ou mensagem do som do vento, em si ou nas árvores (e pitonisas e sacerdotisas da Grécia faziam-no, tal no santuário de Dodone e de Delfos), e do som do mar.  E o que ele ouve ou sente é como que um lamento, um gemido que lhe parece sair das coisas, uma sensação e intuição que Antero ao longo da vida manifestou regularmente, e em especial até nestes quinze sonetos de 1880 a 1884 mas também em muitos outros,  já que era muito sensível e interrogava-se se, para além da polaridade natureza objectiva material versus voz da consciência espiritual, como sentiu assinalou no  soneto Voz Interior, devemos reconhecer uma natureza, viva, sensível, animada, nível que ele denominou a dada altura a "Alma infinita das coisas", ou noutros momentos "panpsiquismo" ou mesmo simplesmente "magnetismo universal", demanda esta a que se dedicará filosoficamente mais intensamente após ter abandonado o culto da poesia em 1884, e que culmina com redacção da sua obra final Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, em 1891, na revista de Portugal, uns meses antes de morrer, e onde de certo modo consegue dar resposta, teórica, a tal busca da unidade da matéria e do espírito.
Quanto ao que ele sente ou intui nessas vozes da Natureza é que pode ser mais acertado ou  verdadeiro, ou pode ser apenas sobretudo um resultado da sua imaginação condicionada pelas suas inquietações e limitações. E assim Antero de Quental, no que se poderá chamar um esforço de animação ascendente dos dois degraus, o desejo e o pensamento,, discerne então seres elementares e uma força obscura universal, e pergunta-lhes: - Têm desejos, girais ou movei-vos por alguma ideia?
 Podemos pensar que Antero mais uma vez está a espelhar nos outros o que vai dentro da sua alma, pois um desejo inquieto de conhecimento, de amor e de felicidade atravessou-o desde novo e e o seu pensamento gravitou sempre  à volta de ideias, ideais e valores, o Amor, a Liberdade, a Verdade, a Justiça, o Absoluto, o Não Ser, e, logo, a Morte libertadora, irmã e amada, esta que não devemos contudo invocar tanto como ele, Manuel Laranjeira ou Florbela Espanca, que sucumbiriam precocemente a ela. Mas, por outro lado, se a alma infinita das coisas existe, porque não tais elementos considerados insensíveis terem consciência e serem capazes de sentir, amar e aspirar?
A resposta que Antero desejaria ouvir não vem neste soneto, pois apenas ouve um bramido, um queixume, e o que ele sentia no começo do soneto  confirma-se no fim, como se a tristeza e a incomunicabilidade dos elementos cósmicos fosse fatal. Algo que aliás já se passará bem explicitamente com o soneto Palácio da Ventura.
Como vimos na leitura resumida e contextualizante de todos os sonetos do ciclo final, esta Noite no Oceano pode ser vista como uma noite da alma e como um queda de percepção luminosa do sentido da existência, que por exemplo alcançara em sonetos tais como a Voz Interior e Com os Mortos.
Certamente para isto contribuiu a noção predominante nas correntes filosóficas com que Antero se alimentou que postulavam o Absoluto, o Divino, o Infinito como inconsciente imortal, e assim no terceto final, a Antero, do espaço infinito "onde se esconde o Inconsciente imortal", só lhe chega um som que lhe parece queixume e bramido, que como já vimos encontramos frequentemente noutros sonetos.
Faltou a Antero de Quental alcançar vivências interiores mais elevadas espiritualmente e logo uma concepção de Deus mais verdadeira e que substituísse o Inconsciente e não-Ser pela Divindade ou o  Espírito Divino, seja como ele for chamado, e que deveremos e poderemos sentir no nosso mais íntimo ser.
Antero de Quental foi a principal ponte para a modernidade em Portugal, e em vários aspectos, desde os literários aos políticos e filosóficos, mas nessa função pioneira e algo solitária pagou o preço e deixou o seu corpo nessa ponte e sobretudo a alma bem ardente e sofrida nos seus Sonetos, Odes Modernas e Cartas. A nós de o sentir, continuar e elevar, como alma espiritual, estrela luminosa...
A estrela do espírito, por Bô Yin Râ, que guia as almas na peregrinação...