quinta-feira, 30 de setembro de 2021

"Figuras de Silêncio. A Tradição Cultural Portuguesa no Japão de Hoje", de Armando Martins Janeira. Resumo valorativo. 1ª parte.

                                       

Figuras de Silêncio é uma obra publicada em Lisboa, em 1981, por Armando Martins Janeira dez anos  após o seu seminal estudo, já por nós abordado, O Impacte Português na Civilização Japonesa, e que de certo modo o complementa, já que, como o seu subtítulo indica, A Tradição Cultural Portuguesa no Japão de Hoje, Martins Janeira partilha as suas vivências, estudos e reflexões de dez anos como diplomata português no Japão e amante entusiasta do encontro luso-nipónico.

É do escritor Shusaku Endo (1923-1996) o prefácio da obra, em que valorizando a pioneira ligação da civilização ocidental e do cristianismo com o Japão através  dos portugueses e ainda os escritores  "profundamente versados no Japão",  Wenceslau de Morais e Martins Janeira, elogiando este como o embaixador mais querido de então, e a "atmosfera dum salão de cultura" que a sua casa  tinha,  considera-o um importante embaixador da cultura japonesa na Europa, dando como exemplos a introdução e divulgação que fez do teatro Nô e Kabuki, e dele próprio como romancista.

Na sua Confissão a servir de Intróito Armando Martins Janeira justifica-se: «Este livro vem procurar tornar conhecida em Portugal uma grande herança construída por dois povos que tão afastados, rasgaram um caminho comum e pela primeira vez na História realizaram o verdadeiro encontro entre o Oriente e o Ocidente», embora mais à frente do livro relembre o encontro ainda mais pioneiro ocorrido entre Alexandre, o Magno e a Índia,  reflectido na arte Gandhara, do séc. I ao VI.  Poderia ter talvez mencionado o realizado em geral pelos portugueses na Índia, e em especial na corte mogol de Akbar, onde desde 1579 jesuítas e representantes das várias religiões discutiram mais ou menos ecumenicamente.

                                 

Nesta sua «luta combatida e vivida num fervor de cruzada, não para
ressuscitar um legado histórico mas para inserir a História na vida de hoje e amanhã»,  confessa ter ajudado a  erguer quinze monumentos comemorativos da grande obra portuguesa, dois museus, uma escola infantil, um cortejo histórico, pilares, cruzes, inscrições, além da divulgação dos livros de Wenceslau de Moraes, e deseja que tal obra passe à cultura geral portuguesa, com significado moderno e de amor entre os dois povos. E se foi nos dez anos "no  Japão que passei os dias mais felizes da minha vida", e na longa profissão de diplomata aprendeu a ser cidadão do mundo nunca deixou secar as suas raízes transmontanas, confessando mesmo que andou sempre com três pedras trazidas da serra do Roboredo e um cântaro de barro de Felgar, do mesmo município de Torre de Moncorvo.
                                         

Ora na Parte I, O Passado e o Presente,  Armando Martins Janeira, medita com originalidade a necessidade «de formar uma consciência clara dos valores da nossa cultura» que inspirarão e animarão os portugueses, até para criar novos valores,  e que alimentarão os laços com os países da lusofonia. E observando lucidamente que  no encontro com o Japão as igrejas foram também e sobretudo centros de divulgação das artes e ciências e seria esse o seu mais valioso contributo para o Japão moderno e potência mundial, aprova o malogro da cristianização pois seria «uma grande perda para a cultura universal se as religiões e culturas da China e do Japão tivessem sido substituídas pela religião e cultura cristãs. Se pensarmos nos inestimáveis tesouros de arte que o alastramento do cristianismo destruiria - sobre isto os exemplos do começo não admitem dúvidas -, teremos de concluir que a cristianização daqueles países implicaria uma das maiores perdas para o património artístico da humanidade». E meditando os contrastes entre Jesus e Buda pondera que era essas "estremadas e fascinantes diferenças de ideias  e criações", que os missionários procuravam suprimir, iriam certamente contra o desígnio divino de tal "riqueza de diversidades".

Este universalismo dialogante de Armando Martins Janeira, tão presente na sua obra, e por isso por vezes desagradando a algum mais intolerante, nacionalista ou fanático, leva-o mesmo a lamentar não só a inépcia natural da evangelização impossível, como até colonialismos e imperialismos ocidentais: «E não é ainda - ai de nós, Ocidente! - nos países cristãos que o homem se tem mostrado mais justo e menos cruel, nas guerras que levou a toda a parte, em hecatombes como a história nunca antes conhecera».
Feito no seu O Impacto Português na Civilização Japonesa o
«escorço histórico da acção dos missionários, marinheiros e comerciantes portugueses no Japão durante um século de contacto, e do condicionalismo político, social e cultural nipónico em que tal se desenvolveu», através deste seu novo livro Figuras de Silêncio. A Tradição Cultural Portuguesa no Japão de Hoje, quer «lançar  na circulação cultural portuguesa alguns valores fundamentais, esquecidos hoje, mas ainda vivos e palpitantes no passado», pois continuam a ser valorizados e estudados por muitos estrangeiros e japonese, lamentando  como apesar da «história portuguesa no Oriente ser a mais rica de todos os países ocidentais, somos o único país da Europa que não possui uma escola ou verdadeiro instituto de estudos orientais e asiáticos» não se acompanhando ainda a historiografia nipónica ou europeia sobre o assunto. Sabemos que terminada a sua carreira diplomática Armando Martins Janeira veio contudo a dar aulas e criar, ou co-fundar, instituições nesses sentidos, tal o Instituto dos Estudos Orientais, hoje Instituto Oriental, sito na Universidade Nova de Lisboa, e a Associação de Amizade Portugal-Japão.
Num dos parágrafos mais paradigmáticos do escopo da obra,
pondera que «o passado representa para Portugal a consciência da sua capacidade de vencer adversidades e descobrir caminhos, significa garantia e auto-confiança para novos empreendimentos, constitui uma força que dá forma ao futuro. No presente confuso e triste em que os altos valores humanísticos, a limpidez de intenção, a coragem e a aspiração à altura, e a imaginação construtiva transitoriamente se apagam, é ao passado que temos de ir procurar as constantes da nossa criatividade. Uma nação e um povo podem haurir no presente a energia colectiva para construir com indomável determinação e visão lúcida o edifício do futuro, mas é no passado que os povos encontram a sua identidade. Que esta sondagem do passado, onde os japoneses descobriram tantas veias vitais, merecedoras de ser trazidas ao presente, possa inspirar alguns portugueses ambiciosos de renovar e criar e lhe comunique uma inquietação profunda. Mais fraternas formas de convívio e liberdade não sairão apenas da nossa esperança, mas do esforço duro e persistente e da lucidez de visão do futuro, que no passado encontram a justificação, a coragem e as certezas». Mas, bem lúcido, lembra que há sempre nesse passado ideais dinâmicos e vivificadores e ideais retrógrados ou já mortos e que há que escolher os que contém sementes de vida  e forças de progresso e corajosamente abandonar as tradições e hábitos inertes.

E neste diálogo de povos e civilizações, mostra alguns contrastes que nos deveriam estimular: «O Japão é o único país do mundo onde não existe uma só ruína. Os japoneses desconhecem a saudade da história, esse morbo, que a nós, Portugueses, rói a vontade e paralisa. Ali o passado vive no presente. O moderno e contemporâneo existem no Japão ao lado do antigo e do medieval; a a industrialização e a tecnologia não mataram o artesanato primitivo, e as artes tradicionais do chá e das flores são ensinadas às operárias nas fábricas ultra-modernas. O operário japonês é o mais produtivo do mundo, e o único que na fábrica, faz meditação zen. Foi salva a continuidade duma antiga herança que guarda à vida a serenidade e o encanto que a mecanização e produção em massa varreram de todos os países. Refere ainda como «o Japão possui os mais antigos e mais belos jardins do mundo» e poderia ter ainda mencionado o culto e protecção das árvores antigas ou mais notáveis, atadas mesmo com  cordas sagradas de palha de arroz ou de cânhamo, shimawa, e que tanta falta faz em Portugal, já que há demasiadas câmaras e juntas de freguesia arboricidas...

Os sub-capítulos seguintes da I Parte da obra tratam ainda de: Os Portugueses na Pintura japonesa (a arte Namban, isto é, representando os "bárbaros do sul"), Temas portugueses na cultura japonesa de hoje, onde escreve sobre a influência geral e ainda no romance, teatro, cinema, danças e outras artes tradicionais, com uma apreciação crítica final à participação portuguesa na Expo de Osaka de 1960, que teve grande sucesso e com muitas manifestações adjacentes mas em que o pavilhão português na sua arquitectura e
acessos deixou muito a desejar.
Nas Figuras de Silêncio, Armando Martins Janeira continuava
assim uma fervorosa tentativa de despertar os portugueses para os valores que foram demonstrados no séc. XVI, sentindo que a tarefa não era fácil. E embora tendo o bom exemplo do Japão que conseguiu unir frutuosamente o passado e o presente, erguendo bastantes monumentos ou memórias ao encontro, ou mesmo festas e pequenas indústrias, no caso português, e em Portugal, não haverá tanta facilidade, fora dos estudos e comemorações dos missionários e dos seus contributos, para valorizar o encontro luso-nipónico, lamentando mesmo que nem uma estátua em homenagem ao grande poeta Basho se tenha erguido em Portugal. 

Será nas partes seguintes, ilustradas, da obra: II, As Cidades, e III, As Figuras, que Armando Martins Janeira mostrará o muito que se fez para perenizar e vivificar o encontro luso-nipónico, seja nas treze cidades e vilas onde tal mais aconteceu, seja por oito notáveis individualidades portuguesas (uma basca), às quais ele próprio se poderia acrescentar:«O capitão-do-mar Jorge Álvares. Francisco Xavier, sonhador duma grande empresa malograda. O descobridor literário do Japão: Fernão Mendes Pinto.  O Introdutor da medicina ocidental no Japão: Luís de Almeida. Um grande clássico por descobrir em Portugal: Luís Fróis. Um precursor da Sociologia: João Rodrigues. Um mártir: Diogo de Carvalho. O último dos grandes aventureiros lusíadas: Wenceslau de Moraes.» Esperamos brevemente apresentar resumidamente as partes II e III desta valiosa obra.

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

A origem dos Arcanjos Miguel e Gabriel. O livro "Na Hora de S. Miguel", por Gabriel Bosco. Resumo valorativo.

Gabriel Bosco escreveu a obra Na Hora de S. Miguel e publicou-a no Porto, nas edições Cavaleiro da Imaculada, em 1977. Num livrinho de 32 páginas (com apenas uma gralha, na pág. 13, onde está David deve-se ler Daniel), tem na capa a iconografia tradicional do Arcanjo, com um pé sobre a cabeça do Diabo, a mão esquerda segurando a balança e com a direita apontando a espada  ao Adversário e vencendo-o. E é apresentado assim no I capítulo: «Quem é como Deus? Eis o nome e o grito de guerra de S. Miguel. No seu nome está a sua bandeira e o seu programa de acção.»
A obra não tem grandes rasgos ou investigações e partilha  algumas citações de textos sem as localizar, tal como a de S. Boaventura ter escrito que  «é raro o profeta que não fala dos serafins e dos querubins», algo errado pois há pouquíssimas referências a eles em todo o Antigo Testamento.
Valoriza muito o profeta Daniel (significando "Deus é meu juiz", em hebreu), educado com mais três companheiros na corte real da Babilónia, "capaz de interpretar qualquer sonho e visão" e que o rei, consultando-os em questões de sabedoria e discernimento, considerava-os «dez vezes superiores a todos os magos e adivinhos do seu reino». Será Daniel que desvendará o misterioso sonho de uma estátua compósita de Nabucodonosor, pelo que o rei se prostrou aos seus pés e lhe disse: «Em verdade o vosso Deus é o Deus dos deuses e o senhor dos reis e o revelador dos mistérios, pois tu pudeste revelar este mistério»(II, 46,47). 
Estamos a ver a manipulação grande no relato do que quer que tenha podido acontecer, pois como seria possível o rei fazer e dizer tal, se logo em seguida Nabucodonosor eleva uma estátua de ouro a si mesmo e queria que todos a adorassem...
Este sonhos e visões imaginativas do religioso hebreu que no II séc. a. C escreveu o Livro de Daniel  foram um dos contributos de esperança ou miragem do messianismo judaico do V Reino, o messiânico que havia de vir, em Portugal tornado o V Império.
É em Daniel, VIII que  surge a primeira menção de um dos grandes arcanjos da história judaico-cristã, Gabriel, e podemos dizer que foi o anónimo escritor do Livro de Daniel quem de facto inventou nomes e entidades que se tornariam tão famosas e poderosas, tais como Mikael ou Miguel, e Gabriel, este que terá a fortuna tanto de ser o anunciador do nascimento de Jesus  a Maria como, uns séculos depois, quem, já com o nome árabe de Jibril, ditará ao profeta Maomé o livro sagrado do Islão, o Alcorão...
 
Primeiramente surge Gabriel a explicar uma visão de animais que simbolizaria o tempo do Fim, em VIII-17, e logo em seguida uma segunda vez.
Será só no cap. X, quando é relatada a aparição de «um homem vestido de linho, com os rins cingidos de ouro puro, seu corpo tinha a aparência de crisólito, e seu rosto o aspecto de fogo, seus braços e suas pernas como como o fulgor do bronze polido e o som das suas palavras como o clamor de uma multidão. Somente eu vi esta visão...»
O que diz esse homem resplandecente, mais tarde identificado a Jesus? 
Explica a Daniel o que se está a passar: "- O chefe do reino persa resistiu-me durante vinte e um dias; porém, Miguel, um dos principais chefes, veio em meu socorro. Permaneci assim ao lado dos reis da Pérsia.* 14. Aqui estou para fazer-te compreender o que deve acontecer ao teu povo nos últimos dias; pois essa visão diz respeito a tempos longínquos.»
Aqui é feita a menção pioneira a S. Miguel ("Quem é como Deus?"), a única que há em todo o Antigo Testamento. Mas como poderia ser Jesus, a lutar com o anjo ou arcanjo persa vinte e um dias e sendo  ajudado por um dos primeiros Príncipes, Miguel, e referindo a Daniel o teu povo, que não dele? 
Vemos assim a misturada grande que este livro é, intensificada depois pelo facto de se ter tentado ver Jesus o Cristo já a agir nos tempos do Antigo Testamento, o que é um erro completo. O mais interessante é porém a fortuna destes Arcanjos, que hoje, e com muita razão, já ninguém, dos crentes nos Anjos e Arcanjos, duvida da sua existência ou mesmo identidade e funções.
Seguem-se mais duas aparições de seres parecidos com homens, a última acabando por ser a inicial, pois diz a Daniel:
"Sabes bem” – prosseguiu ele – “por que vim a ti? Vou voltar agora para lutar contra o chefe da Pérsia, e no momento em que eu partir virá o chefe de Javã.* 21. Mas (antes), te farei conhecer o que está escrito no livro da verdade. 22. Contra esses adversários não há ninguém que me defenda a não ser Miguel, vosso chefe."
Vemos assim Miguel a tornar-se, de um dos principais chefes ou príncipes, "o vosso chefe". Que manipulações e interpolações o texto não terá sofrido, só um persverante estudioso deste livro o poderá adivinhar...
Segue-se uma longuíssima descrição de lutas entre povos da região no III e II século, e que trabalho para o pseudo Jesus ter de as estar a prever, e a descrevê-las a Daniel. Quando por fim se entra no cap. XII, reaparece Miguel: «Então se levantará o grande príncipe Miguel tomar a defesa dos filhos do teu povo». Ou noutra versão «que se conserva junto dos filhos do teu povo. Será um tempo de tal angústia qual jamais terá havido até aquele tempo, desde que as nações existem, mas nesse tempo o teu povo escapará, isto é, todos os que se encontrarem inscritos na vida. E muitos dos que dormem no solo poeirento acordarão, uns para a vida eterna, outros para o opróbio, para o horror eterno». Seguem-se depois as histórias de Susana e do dragão e como o Anjo de Senhor levou pela cabeleira o profeta Habacuc até à Babilónia para este dar a refeição que confecionava a Daniel, que estava na cova dos leões... I
maginações estrambólicas e que muita gente acreditou...

Como sabemos, o género de visões apocalípticas são fruto de imaginações frondosas que, por vezes, quanto muito, captaram no mundo astral ou imaginal certas imagens e forças germinantes, e que, de acordo com a sua sensibilidade desejos e receios, criam histórias, que podem mesmo ver, quais sonhos e filmes, e neste caso temos um escritor (aliás mais do que um, pois distinguem-se várias histórias  adicionadas) a relatar os feitos e visões de um profeta Daniel, muito provavelmente uma figura ficcional que serviu para fortificar os judeus face a outras religiões e povos, descrevendo mistérios da história, do porvir e do Divino que nem Jesus se atreveu mais tarde a dizer, reservando unicamente ao Pai, seja quem ele for, tal conhecimento.

Defende o autor do livrinho, Na Hora de S. Miguel, Gabriel Bosco ainda que já antes de David se aponta a intervenção de S. Miguel «ocultando aos judeus o corpo de Moisés, para que aquele povo, propenso como era à idolatria, não caísse nesse erro, tributando ao corpo do seu libertador honras só devidas a Deus». É claro utra mistificação, pois Moisés morreu e foi enterrado, e não veio um Arcanjo esconder o corpo ou levá-lo num lençol para o céu. Também seria Miguel o anjo que teria aparecido a Josué depois da passagem do rio Jordão, pois apresentou-se: «Eu sou o príncipe dos Exércitos do Senhor.» Era o tempo de Jehova, o deus das batalhas e dos extremismos, um deus muito cioso das suas ordens e culto, uma concepção primitiva e nacionalista de Deus, que Jesus repudiou, apresentando antes uma concepção de Deus bem mais harmoniosa...
A fortuna do pseudo-profeta Daniel, um dos primeiros visionários apocalípticos, logo a seguir a Ezequiel, e o criador de Arcanjos tão importantes no futuro, foi grande e chegou até à Europa cristã, em especial à Inglaterra dos puritanos e da V Monarquia e ao Portugal das fantasias do V Império, de ambas estando bem conhecedor Fernando Pessoa, como já antes o P. António Vieira. É de Daniel também, por exemplo, que vem a ideia e a expressão «Será salvo todo aquele que estiver inscrito no Livro da Vida», bem como a maluquice da ressurreição da carne e dos corpos físicos, que a tantas religiões e seitas se estendeu, pois não teve mão restrita nas suas visões e profecias. A  obra é  muito violenta,  por exemplo, pondo os anjos a rachar a cabeça ao meio de dois anciões que tentaram possuir a casta Susana. É com Daniel que termina o profetismo do Antigo Testamento, talvez porque foi tão extraordinária e pesada a avalanche de visões que ele criou que mais ninguém se atreveu a levantar a voz como profeta visionário em nome de Deus. Teremos de aguardar algum tempo, para já no seio do Cristianismo, o mesmo veio hebraico apocalíptico se manifestar, fazendo-o em nome do apóstolo querido de Jesus, João, sabendo nós que é uma obra de um judeu cristão, um zelota ou extremista, por volta de 80 d.C.
O autor do Apocalipse (e certamente não foi o apóstolo João, tal como Erasmo já no começo do séc. XVI provara e a crítica textual actual confirma) não conheceu Jesus, mas sim e muito bem as visões e profecias de Isaías, Ezequiel e Daniel, utilizando-as frequente mas discretamente na feitura da sua obra imaginativa, provavelmente escrita para afastar os cristãos de estabelecerem acordos ou acomodações com outras comunidades religiosas e para dar continuidade de valor aos profetas do Antigo Testamento, em riscos de serem destronados, caso o Cristianismo nascente conseguisse ter cortado com o Antigo Testamento, o que desgraçadamente sabemos que não aconteceu, enredando em pessoas em muita história e concepção errada e violenta...
                                 
Quanto à relação do Arcanjo de Portugal e o arcanjo Miguel, algo que vários têm procurado, com diversas motivações e esoterismos, refere Gabriel Bosco que embora no Congresso Internacional da Mensagem da Fátima, no Ano Santo [1951], o eng. Varela Cid pretendesse «provar ser S. Miguel o Anjo de Portugal», e que ele próprio também o desejasse, «não tem nenhuma revelação divina, autenticada pela Igreja, a confirmá-la». Menciona antes as três estátuas principais do Anjo Custódio de Portugal, em Évora, Bucelas e igreja da Encarnação em Lisboa, ainda hoje existentes. Não mencionou outras bem importantes, tais como as do convento de Tomar,  a da Sé de Braga, a da igreja de Santa Cruz em Coimbra, da autoria de Diogo Pires,  reproduzida em seguida.
No fim da obrinha deixa sete resoluções e propósitos, que vale a pena cogitarmos: 1ª « O temor e o respeito devido aos santos Anjos. Sabemos que o Anjo Exterminador matou os primogénitos do Egipto [talvez para dar o exemplo à legenda de Herodes ter mandado matar as crianças da idade de Jesus], e outro Anjo celeste exterminou numa noite 200.000 Assírios comandados por Senaquerib, por terem blasfemado o nome santíssimo de Deus (Isaías, XXXVII)».  O propósito é bom e devemos senti-lo mais no nosso coração espiritual, o local ou nível sem dúvida melhor para os invocarmos, enquanto sede da afectividade e da aspiração, mas são certamente duas mistificações completas, como se Deus mandasse matar por um anjo, tomando partido em guerras humanas e logo milhares de uma vez. 
Um mau precedente se abriu com esta intrujice, pois ao longo dos séculos vimos sacerdotes a abençoar os povos dantes de partirem para guerras, e até ofensivas, e para chegarmos aos nossos tempos e ouvirmos governantes irresponsáveis e vendidos, de certo modo criminosos de guerra, como George Bush, Tony Blair, Tatcher, Cameron, afirmarem que Deus os mandava entrar nas guerras e violência no Médio Oriente. 
O 2º propósito a termos em conta e adoptarmos é que pela nossa consagração ao Anjo da Guarda criamos intimidade com ele, podendo eles protegerem-nos. É certamente um dos mais acertados ditos e  conselhos do livro. O 3º propósito é lembrar-nos que nas missas  há união com eles, de facto uma afirmação verdadeira, uma realidade para quem consegue merecer tal visão. O 4º propósito é sermos submissos aos Anjos porque avisa S. Paulo: «Todos os Anjos bons são espíritos, ministros de Deus, enviados em socorro dos que se vão salvar», embora possa haver algum erro pois é como se houvesse um predestinação, só para uns tantos receberem os Anjos bons, e todos podemos e devemos tornar-nos bons e ligados ao Anjo. A 5ª tenção a desenvolvermos é a da vigilância e luta, porque como diz a Epist. de S. Pedro I, 5, 8, «o diabo vosso inimigo anda ao redor de vós como leão rugidor, buscando a quem devorar». Um dos que disse que o viu mais de uma vez foi Lutero e não sabemos se terá sido em algum nível devorado, mas pelo menos deixou de falar e cultuar a intermediarização dos Anjos  e ainda dos santos e mestres, ficando tudo dependente apenas da fé de cada um e da graça divina predestinada, algo que Erasmo criticou, explicando como o livre arbítrio, o studium, que significava esforço e estudo, e a docta pietas, uma piedade ou devoção sábia, activa e moderna, a devotio moderna, eram os meios principais do ser humano melhorar e se abrir ao espírito e à Divindade, tal como eu expliquei bem na introdução e biografia de Erasmo, no seu Modo de Orar a Deus, uma obra ainda bem anotada e valiosa.
O 6º propósito a assumir-se seria: «A invocação frequente e fervorosa do grande poder e socorro do Arcanjo S. Miguel, através do exorcismo do Papa Leão XIII», que mistura salmos do Antigo Testamento, citações do Novo Testamento e orações ao Arcanjo, e que se encontra hoje disponível online. 7º Reconhecer-se «que o demónio é a causa de todas as contestações, que afligem a Igreja, e de tantas perdas de fé e de paz social e das consciências», equacionando demónio e soberba, propondo a humildade, que será a 1ª, a 2ª e a 3ª condição de santidade, segundo S. Agostinho.
Que dizer,  desta obrinha piedosa e católica? Que as pessoas sintonizem e descubram mais o seu Anjo da Guarda ou mesmo o Arcanjo de Portugal ou, quem sabe, o espírito celestial denominado S. Miguel, nomeadamente em momentos de aspiração mais ardente e orante, seguidos de meditações profundas, porque então as crenças infundadas e até violentas, apocalípticas e nacionalistas dissipar-se-ão e, na luz e bênçãos recebidas poderão antes ter as suas compreensões e vivências interiores espirituais e transformadoras, e dos Anjos ou mesmo de espíritos celestiais superiores, mais próximos da Fonte Divina, para uma limpeza da negatividade imperialista e consumista poluidora e destruidora da Natureza, para uma melhoria da Humanidade e do Planeta...
                                           Lux - Amor - Pax

"O Impacto Português sobre a Civilização Japonesa", de Armando Martins Janeira. Resumo valorativo por Pedro Teixeira da Mota.

Em 1970, quando estava prestes a terminar o seu segundo posto diplomático no Japão, o embaixador Armando Martins Janeira (1914-1988) publicava uma das suas obras históricas mais valiosas, O Impacto Português sobre a civilização Japonesa. Após ter conhecido profundamente, cerca de dez anos, o Japão em muitas  vertentes e, sobretudo, a presença e influência portuguesa, sente-se capacitado para mostrar  os  momentos e actores principais dessa dinâmica inter-relação, que sabemos ter-se metamorfoseado de uma fase de grande abertura e receptividade numa de desconfiança e por fim de rejeição total e extremamente violenta das tentativas de evangelizar e, no fim último, mesmo do comércio.

                                    

Podemos  interrogar-nos se os ataques ao Budismo e ao Shintoísmo, com tantas práticas espirituais e tantas harmonizações com a natureza valiosas, se o pôr em causa a ordem feudal nipónica, causados pelos missionários e os cristãos japoneses, poderia ter sido evitado e assim o diálogo entre Portugal e o Japão, o Ocidente e o Oriente ter prosseguido pacificamente?   Podemos interrogar-nos se, além de mostrar os principais intervenientes dessa entusiástica chegada e recepção, com os seus feitos e desventuras, e as influências  que tiveram e deixaram, Martins Janeira também vai equacionar as limitações,  ou mesmo os defeitos de base do cristianismo missionário face a civilizações do Extremo Oriente em vários aspectos muito desenvolvidas, tais como a Indiana, a Nipónica, a Tailandesa, a Chinesa, e com cultos religiosos e concepções espirituais muito especificamente ligadas há milénios com os seus povos e ambientes?

                                   

No prefácio Martins Janeira não nos deixa ficar desiludidos ou frustrados, pois assume uma capacidade de observação isenta e justa  avaliando bem quão funesta foi a persistência de evangelização forçada deseja ou querida pelo rei, conselheiros e jesuítas, face à resistência e repúdio que os dáimios japoneses começaram a manifestar ao fim de algum tempo, antes propondo estes as meras trocas comerciais. E por isso essa evangelização  forte inicial foi com grande crueldade decepada, passando os Holandeses a cumprirem o nosso papel de transmissores da cultura e ciência ocidental, sem tocarem em religião e ordem social, sem demonstrarem proselitismo ou mesmo fanatismo religioso. Rastear e expor essas partilhas de ideias, saberes e civilizações será então o escopo da obra, a que junta a notícia da participação no começo do séc. XX de Wenceslau de Moraes, um dos ocidentais que melhor compreendeu o Japão, e que até mesmo se japonizou em certos aspectos.

A obra, um in-4º de 340 páginas,  está dividida em duas partes, A História, com sete capítulos, o I sendo a Chegada dos portugueses ao Japão, onde se mostra que terá sido em 1542 ou 1543 a chegada de navegadores, ou António da Mota, no dizer dos historiadores da época António Galvão e Diogo Couto, ou Fernão Mendes Pinto, e que quem primeiro usou o nome Jampon foi Tomé Pires, na Suma Oriental, a partir do malaio ou chinês, significando «país originado no Sol». 

                                       

No capítulo II Encontro entre os Portugueses e os Japoneses e o que pensaram uns dos outros,  narra a breve apreciação positiva em algumas crónicas nipónicas do carácter do português, mas não da sua civilidade e etiqueta, e transcreve de Jorge Álvares, um transmontano de Freixo de Espada à Cinta, que andou com S. Francisco Xavier, a sua excelente descrição do povo japonês.  

No capítulo III - O Governo Japonês e a cristianização, narra cronologicamente desde  os começos, com a chegada em 15-VIII-1549 de S. Francisco Xavier ao porto de Yamagawa, em Kagoshima, capital de Satsuma, a sua tentativa frustrada de ser recebido benignamente pelo imperador e a sua escolha acertada de ser  apoiado pelo dáimio ou rei de Yamaguchi que «dá licença aos padres vindos a este país das regiões do Ocidente, de acordo com o seu pedido e desejo que chega, para encontre ou construírem um mosteiro e casa a fim de espalharem a lei de Buda». Foi assim entregue aos jesuítas um mosteiro budista, começando uma época de frutuoso diálogo, anotando Armando Martins Janeiro, em relação a uma carta de S. Francisco Xavier em que «observa que os japoneses não têm conhecimento da criação do mundo. O que mais sentiam era ouvirem dizer que as almas tinham um Criador que as criava. Aqui os missionários acertaram nos dois princípios em que o Budismo  fundamentalmente diverge do Cristianismo: a ausência da ideia de criação do mundo e a inexistência da alma». Significativas também as questões que levantavam, quanto a Deus ter criado os demónios, ou os humanos com "tantos pecados e fraquezas", ou o Inferno onde os fazia sofrer eternamente.  O sucesso foi grande em Yamaguchi, como também com o dáimio de Bungo, que soube aproveitar-se do comércio e das armas, mas depois foi enfraquecendo. Um erro de perspectiva, ser mais importante e mais possível converter a China, levou Francisco Xavier a morrer às portas dela, precocemente, pelo menos nos seus 46 anos, em 1552.  

Seguem-se  os sucessivos governantes: Oda Nobunaga, um guerreiro de grande valor, que unificou bastante o Japão à custa de muitas batalhas e mortes,  simpático e dialogante com os cristãos, sobretudo com o P. Luís Fróis,  de 1569 a 1582, ano em que, face a uma rebelião das suas tropas, decidiu cometer o harakiri ou seppuku;   Toyotomo Hideyoshi, durante cinco anos favorável e desde 1587 contra a evangelização mas não o comércio, devido aos fundados receios de intromissão política «porquanto nós outros estamos já assentados nestas leis dos Camis [espíritos divinos, deuses], não temos para que desejar de novo outras leis», a que se juntaram outros factores e ocorrências, tais as lutas entre franciscanos e jesuítas, ou a arrogância dos Espanhóis (que projectaram conquistar militarmente a China, e com o caso do galeão San Filipe, em 1596), dando-se a 1ª perseguição, destruição (120 igrejas) e martírios em 1597, na futuramente totalmente martirizada Nagasaki.

Segue-se a dinastia xogunal Tokuguwa, fundada em 1603 por Ieysau, quando chega  a haver cerca de um  milhão de cristãos, mas em que de novo por circunstâncias várias o cristianismo é proibido, com o édito de 27-I-1614, que denuncia «o espalharam a má lei, derrubaram a verdadeira doutrina, para assim poderem mudar o Governo e dominarem o país». Sucede-lhe o seu filho  Hidetada, que continua com mais crueldade a perseguir os cristãos, com novo martírio colectivo em Nagasaki. Depois, e reinando de 1632 a 1651, vem Iemistsu, sem dúvida o mais cruel de todos, e que acaba com o Cristianismo visível, estabelecendo mesmo uma Inquisição em 1641 contra os cristão japoneses que ainda se conservavam clandestinamente.   

Será só com à reabertura do Japão ao Ocidente, imposta pela chegada do comodoro norte-americano Matthew Perry, e a sua forte armada, a Yokoyama, em 1853-1854,  que dois portos japoneses, Shimoda e Hakodate, se abrem ao comércio com os norte-americanos e depois aos outros povos ocidentais, ocorrendo também a liberdade religiosa de práticas, esta apenas a partir de 1873, após algumas perseguições que indignaram jornalistas, intelectuais, diplomatas, tal  Léon Pagès, que fora adido na China e que escreveu dois livros sobre o Japão, um sobre os mártires, o outro a pioneira Bibliographie Japonaise, ou Catalogue des ouvrages relatifs au Japon qui ont été publiés depuis le XVe siècle jusqu'à nos jours, 1859, onde cita mais de 700 obras e manuscritos. Detalhando vários dos martírios e o que acontecia  de fervor religioso, Armando Martins Janeira corajosamente põe em causa a justificação da perseguição violenta aos cristãos que acontecera, pois segundo o notável especialista de filosofia e religião comparada, e especialista da Vedanta e do Budismo, Hajime Nakamura (1912-1999, sob uma grande tolerância religiosa imemorial, tal apenas derivara da «incompatibilidade entre o cristianismo e a moral japonesa de total dedicação ao clan e ao imperador», lembrando-lhe que, se tal era verdade religiosamente, já no dizer de Alexandre Valignano (1539-1606), um dos mais preparados e lúcidos missionários, «profundo conhecedor do Japão e do carácter japonês», os Japoneses «são muito cruéis e fáceis em matar, porque por leves coisas matam os seus súbditos e não estimam em mais cortar a um homem a cabeça ou de meio a meio como se fosse um cão», crueldade que  abundará ao longo da história chegando mesmo ao séc. XX, com a Kenpei-Tai, «a política do pensamento».   Apoiando-se em Alice Matsunaga, Budhist Philosophy of Assimilation, presente numa das centenas de notas bibliográficas que enriquecem o livro, Armando Martins Janeira, reafirma: «o carácter de tolerância da religião budista é, porém, inegável. Esta provém  não só da compaixão budista mas também da capacidade de assimilação de outras crenças». Ressalve-se contudo a desvalorização do ser humano, ao não se lhe atribuir um espírito, uma identidade real...

No capítulo IV, A Penetração do Cristianismo na sociedade Japonesa,  Armando Martins Janeira reflecte sobre a rapidez da cristianização e a importância da capacidade de osmose com a população e os seus hábitos: «Para atingirem um maior aprofundamento, mais íntimo contacto com a vibração da alma popular, os missionários imbuíram-se da cultura, adoptaram os hábitos e até a maneira de vestir dos japoneses». Lembremo-nos de Roberto da Nobili e de S. João de Brito, na Índia. Talvez erre quando generalizando o que passou na cabeça de uns poucos de mais messiânicos ou fanáticos, escreve: «Depois que os missionários viram que era impossível submeter o Japão pelas armas, a causa da cristianização do Japão tornou-se uma causa desesperada», tanto mais que dá no livro muitas causas para o falhanço do sonho da evangelização, quanto a mim os principais sendo a percepção por parte dos principais governantes e religiosos dos perigos de destruição da ordem social e religiosa hierarquizada com o igualitarismo fraterno cristão. Neste sentido aliás, cita, aprovando, a visão de Wenceslau Moraes: «não podiam permitir tamanha influência moral, exercida por estranhos, tendente à desintegração da família japonesa, ao fanatismo, à opressão religiosa, à inquisição e certamente, como remate, ao domínio político dos brancos no solo dos mikados». Serões no Japão. p. 134. Valiosa ainda ideia de que os contributos ficaram e no séc. XX frutificaram melhor.


No capítulo V - Os Missionários e a civilização Japonesa,  apresenta os que melhor compreenderam e escreveram sobre o Japão, o povo japonês e a sua vida, história e cultura: os padres João Rodrigues (1561-1634) Luís Fróis (1532-1597), e Alexandre Valignano (139-1606), este tão importante na viagem dos legados dos daimios japoneses à Europa, que tanto sucesso teve. Será já em 1981 que Martins Janeira dará à luz mais aprofundamento deste capítulo dos missionários num livro Figuras de Silêncio. A Tradição Cultural Portuguesa no Japão de Hoje, onde em três partes, Passado e Presente, As Cidades e As Figuras  nos apresenta, na última parte, oito dessas grandes almas do relacionamento luso-nipónico.

No capítulo VI - As relações políticas e diplomáticas entre Portugal e Japão, são  bem apresentadas as aspirações, apoios, encontros, tratados, sucessos, desencontros e final afastamento.

No capítulo VII - As relações económicas, quase um século de comércio Luso-Japonês, mostra a partir da afirmação de Luís Fróis que os padres e cristãos «viviam à sombra da nau» que anualmente vinha de Macau e que gerava o principal comércio com os japoneses,  algumas das vicissitudes, além das boas trocas e os rendimentos que os jesuítas ganhavam para as suas custosas missões.

A Segunda Parte do livro, O Impacto Português sobre a civilização Japonesa, divide-se em  seis capítulos, no 1º O Embate entre a civilização Oriental e Ocidental, em que considera como o impacto foi forte e benéfico. No 2º, O Impacte Português e a Unificação do Japão, demonstra que a presença dos Portugueses provocou no governo xogunal uma mais esclarecida consciência da individualidade da cultura nacional e da necessidade de um poder unificado e nacionalmente obedecido», o que veio a servir após a Restauração  de 1854 para uma absorção rápida do melhor do Ocidente.

No 3º capítulo, A Influência Portuguesa na civilização Japonesa subdivide-se, em três: Cristianismo, Xintoísmo e Budismo. Cristianismo e Confuncionismo. Cristianismo e a alma japonesa, e no 1º caracteriza bem o sincretismo que se alcançou da religião original, o Shinto, com o Budismo, e  como isso «contrasta com a rigidez do cristianismo, que no Japão declarou guerra às religiões xintoísta e budista, destruindo, quando podia, os seus templos.» Alguns erros graves de não aculturação religiosa por parte dos jesuítas são apresentados, tal o de recusarem o culto dos antepassados, algo que hoje o cristianismo no Japão já não impede, ou ainda quanto ao conceito e nome com que se deveria designar Deus, Dainichi, adaptação budista da expressão shintoísta Grande Sol, ou Kami, a tradicional designação shintoísta para espíritos ou deuses, acabando por vencer esta, sugerindo Martins Janeira como a melhor tradução "ser superior". 

Valioso também o trazer à colação o filósofo Suzuki Shôsan (1579-1655) e os seus escritos Perguntas e respostas sobre o Deus Cristão, e Refutação da Cristandade, das quais transcreve algumas das argutas questionações: «"Porque razão Deus não apareceu em todas as nações para a todas as salvar indiscriminadamente? Porque permite Deus a outros Buddhas [que Jesus] pregar diferentes doutrinas? Como pode um homem ser sacrificado para o bem dos homens e ser Senhor do Céu e da Terra? Se Deus é omnipotente e perfeito por que razão criou um universo imperfeito? Porque criou o mal? Como pode Deus ser Todo Misericordioso se permitiu durante os cinco mil anos antes do nascimento de Jesus Cristo que todos os seres humanos fossem para o inferno? E como é possível ser bom e castigar com sofrimentos?".

 «Estas observações, críticas, são semelhantes às formuladas no Ocidente, o que mostra a agudeza de Shosan, que não tinha quaisquer conhecimentos dos problemas da teodiceia. Outros raciocínios de Shosan são derivados da sua crença budista: Porque Deus não deu alma aos animais (no budismo todos os animais e até coisas têm alma) e deu alma ao homem dotado do poder fazer mal? Tudo no mundo tem uma causa - como pode o milagre ir contra a lei da causalidade? Os cristãos insistem na ideia da existência e incitam a pensar e a sentir; deste modo repetem o ciclo infinito do sofrimento e da ilusão [maya]; se Deus é uma presença real e criou um universo real, o ciclo do ser humano é também real e por isso não pode tender para o último fim, o nada. Daqui em diante Shôsan embrenha-se na exposição e argumentação  budista que não
tentamos seguir.
A argumentação de Sho
san era desenvolvida com notável
habilidade e era largamente admirada. A sua posição era radicalmente racional, criticava o cristianismo como se fosse apenas um sistema filosófico, tal como fazem hoje os cristãos ao criticar o budismo.»
Já no sub-capítulo Cristianismo e Confucionismo mostra bem «como no
Japão o confucionismo servia de justificação a um poder político ilimitado, ao qual o indivíduo devia total subordinação e obediência. Cada indivíduo tinha, por nascimento, o seu lugar rigidamente fixado no corpo social e não existia nada semelhante à mobilidade social estimulada na China pelo sistema dos exames. Apesar de o confucionismo da escola de Chu Hsi ter sido trazido para o Japão pelos monges zen durante a dinastia Ming, e de tal escola ter fornecido ao budismo zen o pensamento ético, que o budismo zen não possuía, o antagonismo entre o budismo e o confucionismo surge repetidas vezes na história do Japão», já que houve tanto as tentativas constantes dos ditadores militares tentarem impor-se como a resistência das seitas budistas, bastante hierarquizadas e independentistas.
No sub-capítulo O Cristianismo e a Alma Japonesa,
demonstra como os jesuítas discerniram muito bem a psicologia japonesa, da qual a História da Igreja do Japão, do P. João Rodrigues, livros I e II, contém pioneiras compreensões e os testemunhos das adaptações. E levanta bem, numa das questões mais tensas: «é a religião católica extensível aos japoneses e podem as suas verdades ser por ele assimiladas? o problema é grave, pois põe em causa a universalidade do catolicismo, a sua própria essência.», trazendo as reflexões do seu amigo cristão Shusaku Endo, prémio Tanizaki de 1966,  e conclui acertadamente com as interrogações do P. William Johnston, o tradutor e introdutor do Silêncio, de Shusaku Endo: «Se o cristianismo helenístico [e sobretudo judaico, por via da associação do Novo ao Antigo Testamento] não servir para o Japão, também ele (na opinião de muitos) não servirá para o Ocidente; se a noção de Deus tem de ser pensada para o Japão (como este romance constantemente acentua) também ela terá de ser repensada para o moderno Ocidente...», sem dúvida nenhuma, a acontecer mesmo...

No capítulo IV A Influência Portuguesa na Civilização Japonesa, escreve em cerca de oitenta páginas, 1º sobre a influência nos intelectuais japoneses, e 2º sobre as Ciências: Medicina, Geografia, Astronomia, Ciências náuticas, Ciência militar;  e as Artes: pintura, música, arquitectura, urbanismo (Nagasaki), tipografia e arte do Chá.  Já o V capítulo trata do Prolongamento da cultura europeia no Japão através dos Holandeses, onde descreve as exíguas condições na ilha artificial de Deshima, cuja monotonia era apenas cortada pela viagem (de 90 dias) anual de submissão ao xogunato em Edo, ou Tóquio. No capítulo  VI - Conclusão, cita em súmula Jiro Numata:«no conjunto, a contribuição da Nambam Bunka [a cultura portuguesa] para o progresso científico japonês foi na verdade momentosa», e acentua a libertação que o Japão conseguiu em relação à influência chinesa e ao confucionismo, citando Fukuzawa Yukichi (1835-1901), sem dúvida algo bem importante e individualizador.  Acrescenta por fim um Epílogo: As relações entre Portugal e o Japão do século XVII, no qual inclui optimisticamente O futuro - Convergência dos interesses luso-nipónicos. Esta excelente livro, reeditado em 1988, com prefácio de Pedro Canavarro, nas Publicações Dom Quixote,  conclui com as extensas e bem informativas notas bibliográficas e com as Palavras japonesas que passaram para a língua portuguesa e as Palavras portuguesas introduzidas no vocabulário japonês. 

 

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Armando Martins Janeira e Luís de Camões: o universalismo ecuménico e místico, nos "Lusíadas" e nos Descobrimentos, de outrora e de hoje.

                                          

Armando Martins Janeira, assim nomeado a partir da sua vivência nipónica, mas do seu natural transmontano Virgílio Armando Martins (Felgueiras,1914-1988), cedo se deliciou com a poesia, pois a sua mãe e avó foram professoras, da qual se veio a tornar um bom conhecedor não só da portuguesa como da universal, desenvolvendo ou escrevendo porém antes, a par do notável desempenho das suas importantes funções consulares e diplomáticas, peças de teatro e livros de ensaísmo e comparativismo, vindo a tornar-se depois um dos nossos melhores estudiosos e autores acerca do Japão e das relações históricas, culturais e religiosas luso-nipónicas.

                                        

Ora um dos seus primeiros mestres foi Luís de Camões, um ser orientalista e universalista, tal como ele próprio veio a ser, e se dezassete anos passou Camões na Índia e no Extremo Oriente, Armando Martins Janeira não ficou distante pois os onze anos passados em duas missões diplomáticas no Japão foram bastante intensos cultural e socialmente, como o próprio grande escritor Shusaku Endo reconheceu, ao referir-se à sua hospitalidade dialogante e ecuménica, no prefácio a uma das obras de Armando Martins Janeira.
O tributo ao pioneiro Luís Camões foi prestado cedo, pois em 1947, na sua primeira obra, sob o pseudónimo Mar Talegre, intitulada Camões, Bocage e Fernando Pessoa, mostra a sua estreita convivência com estes poetas, além de Antero de Quental por vezes referido.

Em 1971, voltará a Camões na Literatura Mundial, numa conferencia realizada em Tóquio, e trinta e dois anos depois, Camões foi de novo tema de uma conferência realizada em Londres, em 1979, e que se encontra online, - Meu Camões - Armando Martins Janeira, http://armandomartinsjaneira.net - onde confessa o seu amor e amizade: “Desde os meus tenros anos que Luís de Camões é meu camarada, meu mestre e meu amigo. Um Camões galante e indómito que me deslumbrou em rapaz; um Camões sereno e amargurado, cuja companhia na maturidade me conforta e ensina.”, e manifesta o seu conhecimento dos estudos biográficos camonianos e da sua multifacetada obra, destacando nela o Humanismo universalista, o equilíbrio entre o sentimento e a razão, a sua poderosa imaginação e força amorosa e mesmo erótica que perpassam nas Rimas, nos Lusíadas e na sua vida, destacando com pioneirismo, e em contraste com a maioria dos interpretes camonianos, este realçar do Eros carnal como fonte de exaltação heróica e de comunhão com o Cosmos Divino...

Este conhecimento é íntimo e foi adquirido prolongadamente, confessa: «Tive a sorte rara de ler Camões em vários países da Ásia. Li-o na gruta de Macau. Li-o no Japão de Mendes Pinto; recitei-mo baixinho perto do Eufrates e do Mecong; li-o na ilha de Moçambique, bela e serena, que para ele foi dura e falsa; li-o em vários lugares do mundo por onde ele deixou em pedaços a vida repartida. E li-o no mar, levantando de quando em vez os olhos pensativos sobre o mistério imenso das águas. E também o li no alto do Talegre transmontano, contemplando serranias de onde os maiores navegadores partiram, não podendo resistir ao apelo do mar, o que é mistério ainda maior.»
Ora no livro Camões, Bocage e Fernando Pessoa, um in-8º de
99 págs, impresso como dissemos em 1947,  na saudosa tipografia do Conde Barão, em Lisboa, Armando Martins Janeira tece considerações e apreciações bastante valiosas, por vezes bem originais, embora uma, mais  polémica, estimulou-me a questioná-la...

Nas vinte e oito páginas da Introdução, escritas com bastante originalidade e elevação, divididas em quatro sub-capítulos: Poesia que “é a revelação do Desconhecido, do mundo nebuloso e mágico, oculto sob a superfície da realidade certa”, “a mais rica e mais completa expressão do Homem e do Mundo”; Essência da Poesia, onde valoriza a busca do Mistério por todas as forças racionais e irracionais, e considera linguagem poética a primeira em que se “procurou exprimir a beleza”, sendo “a verdadeira poesia a que apreende a essência das coisas e dos seres e a vibração da sua eternidade”, talvez aqui revelando algo de Teixeira de Pascoaes; Espírito da poesia portuguesa, onde valoriza bastante Antero de Quental e a sua profundidade de pensamento e visão, criticando o conde Keyserling que na Analyse Spectrale de l'Europe (também criticada por Fernando Pessoa que anonimamente o ouviu mesmo em alguma das suas duas conferências lisboetas) vira na nossa poesia apenas lirismo, herdado dos provençais; e Europeidade, onde investiga com originalidade os "princípios essenciais" ou as "linhas mestras" que lhe são fundamentais: «a sua natureza e validade ecuménica, que contém uma força insita para expandir-se universalmente; o predomínio do conhecimento e da exploração do mundo material sobre a do mundo interior (o que nos separa da Ásia) mas dando no entanto a este um rico quinhão (o que nos distingue da América), a combinação harmoniosa da razão com o sentimento; um fundo moral comum que se alimenta do cristianismo, inconciliável com o pensamento filosófico e político e a moral científica que a Europa se criou; a sua incapacidade para actualizar essa base moral, de cujo atraso resulta um desespero metafísico doloroso, mas fecundo, desconhecido de outros continentes», e pensamos que Martins Janeira pensaria não só em Antero de Quental, mas também em vias  negativas e existencialistas posteriores, e que desembocarão nos dias de hoje ainda em muito pseudo-esoterismo, fés cegas e ateísmos, mais ou menos cientistas...
Acrescentará porém outros traços marcantes, talvez algo
idealizados: "a consciência duma essencial missão espiritual, desapegada de interesses terrenos; a contemplação lírica e sensual da natureza, aliada à impossibilidade de integrar-se nela, que leva às conquistas e à recriação do mundo pela ciência; um idealismo prosélito, activo e missionário, terrenal e nunca ingénuo, que iluminou os seus maiores santos, guerreiros e político; uma exaltação épica atrevida e inconsiderada que conduz à aventura pelo sabor dela, ao arrrojo sobre o que se mostra impossível, que foi o fogo dinamizador dos seus grandes feitos históricos e a tessitura das suas lendas; um aferro pagão à vida e simultaneamente um desprezo dela por um ideal (...)», concluindo que tal convergência de correntes, ideias e movimentos criou "uma comunidade de substância espiritual", "que tem a consciência duma missão universal, isto é, a fé em si própria de ser capaz de realizar os seus próprios destinos e os destinos do universo
pela sua inextinguível reserva de forças espirituais».
Resta saber como Armando modificaria este optimismo
ocidental, face ao domínio que a civilização americana, criticada por ele, acabou por conseguir sobre a Europa, desfigurando-a muito, para além da existência de outros povos que têm também consciência das suas missões espirituais e sociais planetária, tal a China, a Rússia, o Irão e que estão a ressuscitar das opressões últimas a que tem sido sujeitos e a libertar vários povos da opressão do imperialismo norte-americano e de certo modo também ocidental e europeu. Veja-se ainda  como a União Europeia tem estado submetida a ditames externos à sua missão de lucidez, independência, diálogo e justiça....

No capítulo dedicado a Camões, de trinta páginas, destaca os três veios da obra camoniana: Em 1º, o Pensamento Europeu, afirmando mesmo «o homem que no Portugal da Renascença mais profundamente revela a sua consciência europeia, é Camões. Como Erasmo, desejava uma Europa unida, e é dos poucos espíritos que então tiveram clara consciência do perigo que a ameaçava e da missão que se lhe impunha de defender a cultura que trabalhosamente se criara», realçando ainda ser um continente cristão que se tinha que defender da ameaça islâmica e otomana. Ressalve-se que Erasmo no seu adágio a guerra só é doce aos inexperientes e noutros textos sobre a guerra e a paz, defendeu que antes de se irem guerrear ou converter islâmicos ou povos pagãos, deviam os cristãos converterem-se às vivências, valores e religações transmitidas por Jesus.

 Em 2º, a Concepção Heróica da grandeza Humana, o valor do da dignidade do ser humano (como defendera Pico della Mirandola, na imagem dum fresco florentinono meio de Ficino e Poliziano), muito bem desenvolvido, afirmando por exemplo que nos « Lusíadas o homem é exaltado até ao sumo da sua humanidade. O espírito, movido pelo ideal e por um ardente misticismo, que é, ainda, uma força do próprio espírito, desenvolve forças poderosas e ilimitadas, capazes de dominar toda a terra e de dominar mesmo a fraqueza da sua misérrima morada corporal», citando alguns dos melhores versos, tais: «Por feitos imortais e soberanos, … Divinos os fizeram, sendo humanos». Mas não esquecerá os mais pequenos na sua obra e muito lucidamente Armando Martins Janeira discerne já em Camões, e em sintonia com António Sérgio «um certo pensamento a que hoje poderia chamar-se democrático», na sua crítica aos mais poderosos, ricos e arrogantes.
Em 3º, o Universalismo, já que Camões soube unir os valores
medievais com os renascentistas, o que, graças à sua experiência e conhecimento da natureza humana, tornam-no “um homem universal, um desses seres extraordinário que se erguem à visão vasta dos problemas essenciais e dos caminhos que conduzem a evolução dum povo ou duma cultura», insistindo ainda que a gesta dos Descobrimentos «dá ao espírito europeu uma extensão ecuménica».
Todavia este universalismo, que Armando Martins Janeira reconhece naturalmente
nos Descobrimentos aos portugueses, tem contudo, nomeadamente na tal dimensão ecuménica, algumas limitações e máculas, sabidas e derivadas da mentalidade fanática ou inquisitorial e que Armando Martins Janeira não considerou necessário mencionar neste seu estudo literário.
Ora, perante o ódio ao Islão, ao ismaelita, que vemos expresso nos
Lusíadas, Armando Martins Janeira consegue compreender e aceitar tal ódio como real e justificado, se bem que eu considere isso em Camões, um fiel do Amor, até mais retórico e de sujeição à Igreja e à censura inquisitorial, e dá-nos as seguintes indicações nessa sua linha de raciocínio: «o amor e o ódio seriam os dois sentimentos mais fortes do ser humano, e é dessa oposição entre os dois polos contrários, o amor e ódio, em que a vibração do espírito camoniano é tão sincera e intensa, que se «alimenta o seu misticismo – porque todo o misticismo é a atingência do ponto máximo de amor, o qual mais sobressai e mais alto sobe quanto mais fundo for o ódio, quer seja o ódio do pecado, quer seja o ódio da fé inimiga.»

Parece-me contudo que o misticismo, enquanto sensibilidade, aspiração e amor a Deus, ao espírito, ao mundo espiritual, ao bem e ao Amor primordial, nutre-se bem mais de um desprendimento do mundo, de uma certa solidão, fome e desejo da Divindade, do que do ódio. O ódio conduz mais ao fanatismo do que ao misticismo, e embora haja misticismo fanático, e podemos observá-lo em alguns padres da igreja e até santos, ou que assim foram considerados, tal S. Domingos de Gusmão, ou ainda em membros da famigerada Inquisição, e nos extremismos islâmicos ou de certas seitas modernas, na verdade, a base do misticismo é a aspiração amorosa ao conhecimento ou à relação próxima e unitiva com Deus, ou com os seus intermediários, Jesus, Maria, e até Anjos e santos...
Pelo que a conclusão a que chega em seguida me parece menos curial: «Mas este ódio não estreita o seu humanismo, não diminui a sua larga simpatia humana, porque não é o ódio ao homem, é o ódio à fé alheia pela exaltação da irrompente força mística da própria fé.»
Ora parece-me que o ódio estreita o humanismo humano e diminui a sua larga simpatia humana, pois o ódio à fé alheia abrange os homens que a seguem, que a defendem ou que lutam mesmo por ela. Tanto mais que a «exaltação da irrompente força mística da própria fé» tanto acontece numa como noutra religião, e diga-se que essa força mística irrompente é algo primária e não matura ou elevada, já que misté, significa silencioso, ou seja os místicos eram os que conseguiam ver e sentir mais do espírito, do mundo espiritual e angélico e da Divindade, e calavam pela sua quase inefabilidade e para não deitarem pérolas aos que, não as compreendendo, as podiam menosprezar ou danificar.
Creio assim bem mais que Luís Camões não tinha ódio aos inimigos da fé, nem sequer teria ódio ao Islão em si, embora fosse obrigado a lutar feramente contra os inimigos de Portugal no Oriente, e desferisse alguns ataques, mais por palavras negativas, do que por argumentos, em relação ao Islâmicos, nos Lusíadas, já que eles eram os maiores inimigos dos portugueses, aos quais sucederam os Holandeses, protestantes.
                                        
O universalismo que Camões sentiu pelo seu contacto com povos e culturas e religiões diferentes só poderia nascer se o que o animava era curiosidade, abertura, simpatia, fraternidade e amor e, portanto, uma capacidade de diálogo em busca da verdade, tão patente por exemplo em Wenceslau de Moraes e em Armando Martins Janeira embaixador e amante do Japão, diálogo universalista que teve até na sua época quinhentista uma manifestação bem poderosa nos ditos inimigos islâmicos e exactamente na Índia: os encontros ecuménicos criados pelo clarividente imperador Akbar, em Fatehpur Sikri, na casa de Adoração, Ibadat khana, onde participaram desde 1575 padres católicos vindos de Goa (como vemos na miniatura), num ambiente ora fraterno ora acalorado, mas sem ódios, à parte um ou outro mais fanático, pois os verdadeiros místicos não deixam o sentimento de repulsão extrema e destrutiva, o ódio, instalar-se nas suas almas. Ou por exemplo, em 1893, no 1º Parlamento das Religiões, em Chicago, no qual tanto brilhou, no apelo da fraternidade e unidade da Religiões, Swami Vivekananda, o discípulo de Ramakrishna Parmahamsa...

                                    
Mas certamente cada um entenderá à sua maneira, o "santo ódio"  referido por escrituras, teólogos e santos e que o próprio Jesus teria dito, ou fizeram-no dizer, nomeadamente que "viera trazer a espada". Agora para de que modo a usarmos, e se ela é a do discernimento ou a de aço, fica a questão...
Concluamos com algo da bela e instrutiva interpretação de Armando Martins Janeira da nossa tão fundacional, arquétipa e imortalizadora realização amorosa e divina alcançada por Vasco Gama e os seus heroicos companheiro, na utópica Ilha do Amores, canto IX, dos Lusíadas: «A Ilha divina não é só a recompensa eterna dos navegadores, é a sua iniciação na nova categoria humana que alcançaram pelos trabalhos excessivos - é a sua heroificação.
Por isso a Ilha estará sempre neles, nunca mais perderão a atmosfera divina, o toque divino nem a companhia divina a que se ascenderam, porque ao deixarem a Ilha:

«Levam a companhia desejada
Das Ninfas, que hão-de ter eternamente
Por mais tempo que o Sol o mundo aquente.»

Saibamos "percorrer o caminho da virtude alto e fragoso", até no cimo do alto monte contemplarmos, com a Deusa, Vasco da Gama, Camões, Armando Martins Janeira e outros seres luminosos, a ordem do Universo, o campo unificado de energia consciência, a música das esferas, o Sol Divino, e intensifiquemo-nos ecumenicamente, espiritualmente, universalmente, cosmicamente...