segunda-feira, 11 de maio de 2020

O "imenso olhar" de Antero de Quental, nos sonetos de Carlos Eugénio Corrêa da Silva (Paço d'Arcos).

É na Visão imperfeita dum Parnaso cristão, dada à luz postumamente em 1932, prefaciada por Vieira de Almeida e dedicada a Ladislau Patrício (entre outros destinatários dos sonetos), que as primícias poéticas do malogrado Carlos Eugénio Corrêa da Silva (Paço d'Arcos) chegaram até nós, presenteando-nos com sonetos de profunda erudição e sensibilidade, embora talvez sem a fluidez musical que lhes poderia corresponder. 
 Era Carlos Eugénio um espiritual cristão, com algo de um místico medieval ou humanista mas com os anseios apropriados da modernidade, mormente na unidade entre o catolicismo e o paganismo, entre a civilização greco-romana e a ocidental cristã. 
Os 33 títulos dos sonetos dividem-se em 3 partes:
A I - Medalhas, subdividida em 3 capítulos, intitulados: De Delos ao Baixo Império (com 6 sonetos), Do Monte Cassino  a Versailles (com 4) e No Limiar do Mundo Moderno (com 11). Algumas grandes almas greco-romanas são invocadas e homenageadas, tais como Eneias, Cícero e Marco Aurélio, mas também locais, tais como Beja, onde uma jovem grega Nike recebeu versos exarados no seu epitáfio e que anunciam os de Camões a Inês de Castro.
A II - Impressões de Viagem contem sete sonetos, sobre S. Tomé e Príncipe, Barcelona, Lago de Lugano, Alentejo (2) e castelo de Marvão.
A parte III e última, Folhas da árvore da vida, tem quatro conjuntos sonetos, com títulos bem significativos, o último A uma rapariga linda e doente, composto no sanatório Sousa Martins na Guarda, contendo três sonetos, belíssimos, trágico, pois narra, já condenado pela tuberculose (o mal do século, sobretudo nos poetas) o enamoramento breve pelo seu "anjo de caridade",  e como a mão da Maria Celeste F. apoiou-o e com bálsamo precioso ungiu seu corpo e  alma, preparando-o para o Morrer é ser iniciado, que a Antologia Palatina dos gregos, Antero de Quental e Fernando Pessoa tinham afirmado e escrito. 
 Fotografemos a página intervencionada do terceiro e último soneto e transcrevamos os dois tercetos finais dessa dedicatória final, e com votos que no mundo espiritual se tenham reencontrado : 
«Deus há de coroar tua fronte formosa
Pois bálsamo trouxeste ao pobre Prometeu
Agrilhoado ao leito, à noite dolorosa.
 
 Onde vou? Ninguém sabe. À Morte? À vida? Ao céu?
Quiseste ser p'ra mim a aurora luminosa
De um dia mais feliz que nunca amanheceu.»

Depois desta contextualização, bem pequena para a imensa sensibilidade e erudição de Carlos Eugénio, depois de anotarmos que em 1931 a imprensa da Universidade de Coimbra dava à luz a antologia dos seu textos em prosa, de doutrina ou sensibilidade católicos, a Jornada de Um Crente, vindo a publicar-se depois ainda a Vita Brevis, com prefácio de Joaquim de Carvalho, transcrevamos, dessa II parte onde Antero ombreia com as outras referências de Carlos Eugénio, tais como Schiller, Bethoven, Chateubriand, Vigny, Psichari, Teresa de Brunswick,   o belo e sábio soneto dedicado a Antero de Quental:
«O Divino Platão disse a um filho errante:
Hoje reina a Matéria! O Espírito morreu!
Mas quem pode esquecer que eu transportei ao céu
A subsistente ideia em seu fulgor brilhante?

Na Grécia rica em luz em meu poema distante
Um pensamento eterno ao jovem mundo deu.
«Vai tu lampeão acesso em denso véu
Falar no Pensamento ao mundo agonizante!»

Assim falou Platão... E Antero do Quental
(Era ele o filho errante) ao mundo gasto trouxe
Um pensamento expresso em estilo de cristal.

Ébrio de soluções, no Oceano embrenhou-se...
A dúvida afogou-o. Em parte o mal.
Ergueu o imenso olhar. Faltou-lhe a fé. Matou-se.»
 Muito belo esta ligação, muito evidente, entre Antero de Quental e Platão, e implicitamente com Sócrates, com quem aliás Antero até se comparou no sentido de ser mais um dialogante que um escritor e, quanto a mim, por terem sido dois mártires do conhecimento e do amor, Logos. Na Grécia eles tinham elevado o pensamento até ao mundo arquétipo ou das Ideias, mas como agora a matéria triunfava cada vez mais sobre o espírito, era preciso um novo cavaleiro andante (ou "filho errante") e por isso Antero de Quental enviado à Terra com missão elevada.
Todavia, com mil hipóteses diante de si, ébrio do vinho do conhecimento das grandes questões e soluções, as dúvidas, o mal e a falta de fé acabariam por o fazer sucumbir e mata-se.
Este diagnóstico é correcto, em parte ou na totalidade?
Parte de um observador imparcial e conhecedor dos problemas em causa, ou há algum tingimento da sua religiosidade católica.
Que se inebriou, sobretudo em Coimbra, das mil soluções filosóficas sociais e religiosas que se agitavam nos ares europeus, certamente. Que tenha perdido algum tempo nisso, mais do que seria desejável, bem possível. Que tenha enfraquecido e adoecido, em parte também por isso, certamente possível também, pois desgatara-se ao não estar a cumprir a sua vocação mais alta, que no caso seria a de que o mestre Platão lhe destinara...
As dúvidas e a falta de fé, enfraquecem-no? Em parte, certamente, embora elas possam ser estímulo a trabalho mais intenso, como Antero exprime na sua evolução de cosmovisão nos Sonetos e como compreensão filosófica espiritualizante que se confirma nas Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, dada à luz uns meses antes de morrer.
Quanto ao mal, eis uma acusação quase, complexa, pois como um dos sucessores de Antero de Quental, Fernando Pessoa, se afirmava no último poema da Mensagem na mesma época de Carlos Eugénio Paço d'Arcos, ninguém sabe o que é o bem e o mal. Mas admitamos que Antero tenha namorado ou cultivado demasiado tempo o pessimismo, o niilismo, a morte e por isso se tenha deixado enfraquecer na sua solaridade espiritual, contribuindo para uma diminuição de forças psico-somáticas e até de fé e vontade de prosseguir a sua demanda.
Mal por oposição ao Bem, não. Antero foi nesse aspecto um santo, sempre lutando pelo bem do próximo, pelo bem da humanidade, crente nas forças positivas e de uma humanidade melhor. A sua ampla correspondência é um testemunho notável disso e constante ao longo de toda a sua vida.
Mal físico? Esse, provavelmente sim. O desarranjo psico-somático enfraqueceu-o demasiado e sentiu-se sem forças ou já sem missão para continuar na terra. E logo, "samuraicamente", matou-se.  
Ficaram a sua poesia amorosa e revolucionária inicial, e, como Carlos Eugénio realça os seus sonetos cristalinos, numa sua dura e sentida pesada travessia do das correntes do pensamento da época, que culminam em cinco ou seis sonetos, tais como o Mor-Amor, Com os Mortos, Comunhão, Solemnia Verba e Na Mão de Deus, pois, como diz bem Carlos Eugénio Corrêa da Silva, Antero de Quental era um "lampeão acesso",  dotado de um "imenso olhar"
Todavia, talvez, apesar de tudo, Platão e Sócrates estivessem ao seu lado quando acabando de se matar se viu num além diferente do que pensara. E a própria mão de Deus, na sua luz dourada, recebesse o seu puro e atribulado coração-alma em sangue, quem sabe se até pouco depois com as suas crianças adoptivas, tragicamente atingidas, chorando e rezando por ele com capacidades intercessoras. 
E depois, a sua legenda dourada, com tantos anterianos tecendo considerações valiosas sobre a sua vida, obra e morte, com o decorrer do tempo no além, ele próprio já não apenas como coração cansado descansando nas mãos de Deus, se tornasse o espírito, filho de Deus, mais consciente desta verdade e das realidades correspondentes, lá no céu das Ideias, onde certamente sorrirá, lampeão de olhar imenso, a estes pensamentos e sentimentos tanto do Carlos Eugénio Correia Marques como meus e  seus, leitora ou leitor.
Foram dois seres unidos  numa comum aspiração amorosa e gnóstica, em ambos mais ou menos meteórica e um pouco infausta, mas certamente ao nível de alma de grande luz e perenidade.
Muita luz e amor em Antero de Quental, e em Carlos Eugénio Corrêa da Silva e sua Maria Celeste, e para nós, nesta comunhão no corpo místico da Humanidade.

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