quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Diálogos com José V. de Pina Martins em Sintra, em 1996: Erasmo, Lefèvre d' Étaples, Bataillon, Asensio e Margolin.

Transcrição de partes de um diálogo com o prof. José V. de Pina Martins, registadas no livro que me ofereceu  então, com alguns acrescentos de agora entre colchetes:
             José de Pina Martins a ler,  numa das vezes que me visitou, na década de 90.
Às 11:35 do dia 6.X.1996, estava à porta da sua casa [na rua marquês de Fronteira, nº4, em Lisboa] para o trazer, com sua mulher Primula, para um passeio por Sintra. Fomos então até Monserrate, apreciando a bela natureza do Outono serrano no caminho ondulante nas tonalidades mágicas de luz e verde. [Entramos no parque, fomos até ao palacete, detivemo-nos na espécie de varanda sobre o pequeno monte onde se ergue o palacete e aí desfrutámos da paisagem e do arvoredo]. Com sua mulher Primula falou-se do espinho na carne, referido por S. Paulo nas suas Epístolas, apontando-lhe eu para o aspecto sexual, o que ela nunca pensara, admitindo antes referir-se a qualquer doença.
O professor Pina Martins referiu um belo poema sobre o plátano redigido por um humanista português, Estácio de Sá e, lembrando-se da tapada de Amares, de Sá de Miranda [onde estivera em peregrinação pelas terras de Basto uma semana no Verão de 1971 com Eugenio Asensio, e mais tarde outra], transmitiu a frase correcta deste «maior humanista português» sobre os escravos:«Espíritos vindos do céu lançados na praça publica», [citação que mais de uma vez proferia em defesa da dignidade e fraternidade humana].
             Francisco Sá de Miranda (1481-1548), o poeta filósofo das terras de Basto, numa gravura de Martins da Costa, e a sua assinatura autógrafa.
Durante esta viagem a Sintra frequentemente lembrou-se do seu grande companheiro Eugenio Asensio, «o único que tinha para falar destas coisas»  e que vezes sem conta foi seu acompanhante em palestras peripatéticas pelas paisagens que atravessávamos da serra e do mar, [pois ambos partilhavam o mesmo amor pela sabedoria, os humanistas e os livros]. Dizia-se Asensio um aristotélico, um homem que apreciava a boa comida e vida, enquanto que Pina Martins seria mais platónico [ou seja, menos materialista e realista e mais dado à ascese, à contemplação, ao idealismo dos mundos e ideias subtis e espirituais].
Entre as obras que Asensio publicou importantes [tais como relativas a Portugal, até então perdidas, Do Príncipe Claudiano de Baltasar Dias, o Desengano dos Perdidos, de D. Gaspar de Leão, e a Eufrosina, de Jorge Ferreira de Vasconcelos] uma foi a raríssima edição espanhola [Sevilha, 1519] do Sermão do Menino Jesus, de Erasmo, que era recitado na noite do Natal, depois de ter sido decorado, por uma criança, pois pensavam que assim poderia penetrar mais nos auditores [ou mesmo, atrair mais bênçãos ou graça eficaz do mundo angélico ou divino, direi eu.]
Das relações de Erasmo com Lefèvre d'Étaples [1455-1536, notável humanista, trilingue e pietista, pioneiro da pré-reforma francesa, pois estivera em 1492 em Itália com Pico della Mirandola, Marsilio Ficino e Ermolau Barbaro ] conta como houve confrontos fortes, sobretudo sobre certas passagens das epístolas de S. Paulo, nomeadamente a Ep. aos Hebreus, cujas interpretações não coincidiam. Já com Lutero ainda mais forte foi tanto a discussão como o triunfo de Erasmo. 
[Neste último caso focando-se na defesa do livre arbítrio humano, contra o determinismo fatalista de Lutero. Quanto a Jacques Lefèvre d'Étaples relembre-se que foi o 1º tradutor em francês do Novo Testamento, 1523 (condenada por uma comissão Inquisitorial em 22.VIII.1525; e que utilizara a versão de Erasmo), e do Antigo Testamento, 1528, e por isso foi muito atacado, nomeadamente pelo famoso "sicopante sorbónico", Nöel Béda, que durante anos  "rosnara" contra Erasmo (sobretudo por ridicularizar a escolástica, não respeitar a versão da Vulgata e querer que as Escrituras chegassem a todos e mesmo nas línguas vulgares), valendo a protecção que o Papa Leão X, um humanista, que fora condiscípulo do nosso Aires Barbosa, lhe deu].
       1ª pág. da edição de 1519 da versão grega e latina do Novo Testamento, de Erasmo.
Com efeito, Erasmo, nas anotações à sua versão do Novo Testamento, na versão inicial, de 1515, intitulado mesmo arrojadamente Novum Instrumentum, explicava as divergências em relação à versão comentada de S. Paulo, de Lefèvre d'Étaples, de 1513, nomeadamente no passo da Ep. aos Hebreus, II, 7º onde ele lia que "Cristo tinha sido feito menos que Deus", enquanto Erasmo preferia o "menos que Anjo", pois estes seriam impassíveis e Jesus sentira e sofrera; e que descera a uma posição ínfima, qual pequeno verme, havendo ainda alguns pontos melindrosos na assunção de Jesus ser plenamente Deus.
Lefèvre achava tal liberdade de linguagem e de busca interpretativa perigosa e contra-atacou com certa indignação tanto mais que Erasmo considerava que a Epístola aos Hebreus nem sequer seria de S. Paulo e não fora redigida em hebraico. Erasmo replicou-lhe com grande sabedoria e até ironia. Houve neste debate algo do confronto entre um ser mais independente na sua racionalidade e crente na existência da alma e do espírito humano contra a mera fé salvífica nas Escrituras (e sua leitura) e o menosprezo do valor ser humano, o que tanto caracterizará Lutero e os protestantes.
Da Hierarquia Celestial, do pseudo-Dionísio, comentada por Lefèvre d'Étaples
 Também houve  desacordo em relação à existência de Dionísio Areopagita, discípulo de S. Paulo, arcebispo em Paris, o fundador da divisão clássica da hierarquia angélica no Cristianismo, obra editada e comentada por Lefèvre D'Étaples e que Erasmo considerava um pseudo-discípulo, sendo a sua visão dos Anjos, podemos nós hoje dizer, meramente teórica e baseada no neoplatonismo de Proclus (412-485), com a sua teologia platónica, e os seu vários níveis da Realidade, emanados desde o Um inefável.] 
Almoçamos comida vegetariana depois de uma breve oração, proferida primeiro por Primula, de agradecimento a Deus e de lembrança dos pobres; e outra dele, de mãos dadas os quatro [Maria, estava também]. Curtos momentos para o que poderia erguer-se como coluna de Amor entre a Terra e o Céu, mas que, nos momentos de silêncio numa das faldas ocidentais da serra (onde nos encontrávamos, embora dentro de uma casa alugada onde vivíamos], se pode de certo modo mais facilmente realizar-se. E até já antes quando contemplávamos os glóbulos [ou partículas] de prana [do sânscrito, energia vital] junto ao convento dos Capuchos, [tal ligação se sentira.]
Falámos da teoria do androginato, contando ele algumas partes do Banquete, de Platão, [que especulam pioneiramente sobre tal primordial mistério] e Primula ouviu mais atenta às minhas explicações sobre o que significava "tornar-nos crianças", nas quais citei mesmo o Evangelho de S. Tomé, concordando na sua ideia de confiança de uns para com os outros, e realcei a ideia de intuição [ou seja, que se formos transparentes e puros, pouco carregados de má informação ou desinformação, e se meditarmos com regularidade, podemos captar mais a verdade dos factos ou o interior dos seres...]
Já no regresso, perto de Lisboa, acerca do livro de António Damásio, O Erro de Descartes, criticou tais fanfarronadas  improcedentes, embora reconhecesse que cientificamente até já Pascal provara alguns erros nas obras de Descartes, mas o princípio cogito, ergo sum (penso, logo existo ou sou) mantinha-se [válido.]
 
 Referi-lhe alguns dos platonistas ingleses [do séc. XVII, em especial de Cambridge, que li mais, tais como Henry More e Ralp Cudworth, grande conhecedores da sabedoria antiga e das dimensões subtis que subjazem a triplicidade corpo, alma e espírito, e logo anti-mecanicistas e espiritualistas] e defendi a primazia do ser e do ver espiritual sobre o pensar, julgo eu com concordância dele [mas certamente não de António Damásio que creio continuar a não reconhecer um eu espiritual, um centelha imortal no ser humano, considerando tal noção subjectiva do eu como uma mera manifestação de coerência inter-relativa de zonas cerebrais e sinapses, tal como me respondeu há já alguns anos numa conferência pública em Sintra nas duas perguntas que lhe fiz...].
Blaise Pascal (1623-1662) vivera só até aos 39 anos e a autópsia revelou que era quase milagre ter vivido tantos anos com um corpo tão doente. Daí a minha resistência ao pensamento tão angustiado, conflituoso e jansenista de Pascal (filósofo  cristão que Pina Martins gostou muito na sua juventude, publicando algumas obras sobre ele, sob o pseudónimo Duarte Montalegre, com que aliás assinou os seus livros de poesia...] 
[Relembro ainda que] aceitou a ideia de se editar Erasmo em português e referiu que  tinha já uma grande parte de uma obra [...] traduzida. Lembrou a defesa que Erasmo fez de Reuchlin e como conseguira que os dominicanos [mais extremistas] do Papado não fossem avante na destruição dos manuscritos pagãos [e hebraicos]. [Esta situação e defesa de Reuchlin teve o seu momento mais alto quando ele morreu em 1522, pois Erasmo consagrou-lhe logo um dos seus famosos Colóquios, A Visão, ou Entrada no Céu de Johann Reuchlin Capnion.]
Marcel Bataillon e Pina Marins. Com Eugenio Assensio, dialogaram muito, entre 1972 e 1977.
Contou ainda como conhecera pela primeira vez [um dos melhores conhecedores de Erasmo e do erasmismo] Marcel Bataillon [1895-1977, quando era estudante, em 1946, na Faculdade de Letras em Coimbra], puxado [no corredor para a sala da palestra] pelo [sábio professor] Joaquim de Carvalho [1892-1958, "uma espécie de Marcel Bataillon português"], que queria arranjar pelos menos uns vinte alunos que o ouvissem, e como Bataillon, vestido de cores escuras, lhe tinha parecido um eclesiástico a falar sobre as epístolas de S. Paulo [uma das obras  por Erasmo parafraseadas, ou seja, comentadas e partilhadas para muitos em toda a Europa, a par da sua versão anotada do Novo Testamento (200 edições no séc. XVI, desde a edição princeps em 1516), no seu afã de apresentar o que ele chamava a philosophia christi, o amor da sabedoria que unge, o amor de Deus e do próximo, em bom senso, não-violência e piedade, livre de superstições, ritos e observâncias, tal como o mestre Jesus vivera e exemplificara].
Já Jean-Claude Margolin [1923-2013, outro grande especialista de Erasmo, senão mesmo o maior, com vasta e valiosa obra publicada], quando veio a Portugal ficou muito satisfeito por ver imensos alunos com um ou outro dos seus livros nas mãos.»
                           
Aqui termina o registo muito abreviado de umas horas dialogantes com José V. de Pina Martins e sua mulher, e em que participei eu e a escritora Maria, com quem vivia então e que ficou escrito na página branca inicial do livro que Pina Martins me oferecera nesse mesmo dia, com a simpática dedicatória: «Ao Dr. Pedro Teixeira da Mota, espírito sensível às revelações (...) oferece "Eugenio Asensio Doutor honoris causa pela Universidade de Lisboa" - opúsculo em que se presta homenagem sincera a um outro grande espírito que já contempla directamente a presença divina. Com um abraço do seu muito amigo gratíssimo, José V. de Pina Martins, 6.X.96»

Última fotografia do notável humanista Sebastião Tavares de Pinho e sua mulher, numa homenagem em Lisboa, no centenário do nascimento de Pina Martins, no dia 23.I.2020. Luz e Amor para a sua alma!
 Possa esta comunidade ou corpo místico de sábios ou grandes almas, da qual invocamos  Erasmo, Lefèvre d'Étaples, Marcel Bataillon, Joaquim de Carvalho, Eugenio Asensio, Pina Martins, Jean-Claude Margolin e agora Sebastião Tavares de Pinho, inspirar-nos no ora et labora, no studium, acima de todas as correntes manipuladoras, conflituosas e desanimadoras que tanto destroem as melhores possibilidades dos seres e dos eco-sistemas, religando-nos mais à Divindade e à sua Unidade e fraternidade...
Hagia Sophia, ora in gloria pro nobis!

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Sebastião Tavares de Pinho, Aires Barbosa e André de Resende. "Humanismo em Portugal". Homenagem na sua morte.

Sebastião Tavares de Pinho, com quem conversara há quatro dias, 23-I-2020, no intervalo da  sessão ordinária da Academia das Ciências que comemorou o centenário do nascimento de José Vitorino de Pina Martins, morreu no dia seguinte, 24,  quando regressava a Coimbra. Uma tragédia...
                 Sebastião Tavares de Pinho e a mulher na homenagem a Pina Martins
Abalado ainda por tão desgraçado acontecimento mais não posso que alinhavar um queixume, relembrar os nossos poucos encontros à volta de Pina Martins e do Humanismo, em Lisboa e Coimbra, e recensear algo dos seus dois volumes do Humanismo em Portugal, que me ofereceu há anos com generosa dedicatória («Ao Dr. Pedro Teixeira da Mota, com amizade e alta estima intelectual e humana, oferece, Sebastião T. Pinho») e que são profundos e detalhados estudos sobre pré-humanismo e o Humanismo em Portugal, já que dominava plenamente o latim e o grego, traduzindo constantemente textos que se tornavam assim mais facilmente legíveis ou acessíveis.  
Como se lê na sua biografia da Universidade de Coimbra, foi «Bacharel em Estudos Clássicos em 1971, licenciado em Línguas e Literaturas Clássicas e Portuguesa em 1972, doutorado em Literatura Latina do Renascimento em 1983, e professor catedrático desde 1992, (...), leccionando as cadeiras de Civilização Grega, Língua e Literatura Latina Clássicas, e Latim e Literatura Latina Renascentistas».
Chamado agora subitamente aos mundos espirituais, crente na imortalidade espiritual, como afirmamos nesse diálogo último em que contrapusemos ao envelhecimento e degradação corporal a força do espírito imortal em nós, usando mesmo ele dar coesão,  certamente que estará já a despertar ou mesmo a dialogar com alguns dos autores que mais amou, trabalhou e divulgou. E foram muitos, não só os citados neste livro em dois tomos, como em outros, desde os professores conimbricenses do séc. XVI a Luís António Verney. 
No 1º volume, o primeiro capítulo é consagrado à Corte de Aviz e o Pré-Humanismo, destacando as traduções de D. Pedro e da Escola da Corte, e o bom conhecimento de alguns autores greco-romanos que já então havia, patente nas obras que D. Pedro e seu irmão o rei D. Duarte escreveram ou encomendaram, com vários extractos significativos  transcritos.
O terceiro  capítulo trata de André de Resende (1500-1573),  formado em Espanha, França e Lovaina, e com amplas viagens na Europa, transcrevendo e traduzindo as cartas de improviso trocadas com o  cardeal-infante D. Afonso (1509-1540), ao qual o poeta Jorge Coelho  vaticinou o papado, bem com o sermão pregado por André de Resende no Sínodo de Évora de 1534.
                             Uma das valiosas obras de André de Resende
O quarto capítulo é consagrado a Lopo Serrão, médico e poeta, e ao seu tratado De Senectude, Da Velhice, Lisboa, 1579,  que mostra «como a poesia latina podia estar ao serviço da medicina gerontológica e da filosofia moral».
É o segundo capítulo que vamos comentar, consagrado a Aires Barbosa, nascido em 1470, em Esgueira, Aveiro, que fez parte da sua carreira estudantil em Salamanca e Florença, aqui chegando a mestre de Artes, conhecendo Hermolau Barbaro e Pico della Mirandola, aprendendo Arte Poética, Literatura Grega e Retórica com Angelo Policiano.
Em 1495 regressa à Península Ibérica e será professor em Salamanca até 1523, leccionando latim e grego e editando aí várias obras em prosa de teor didáctico e pedagógico, filológico, sobretudo. Quando regressa a Portugal é mestre na corte, dos irmãos de D. João III, até 1530, quando se recolhe a terra natal, Esgueira. Em 1536 publica nos prelos do mosteiro dos cónegos regrantes de Santa Cruz em Coimbra a sua obra mais famosa Antimoria, «o seu poema de maior fôlego, escrito contra a ironias de Erasmo expostas no «Elogio da Loucura» (o Encomium Moriae) - precisamente no ano da morte do humanista flamengo, em 1536.  
                                      Sancte Erasmus, ora pro nobis...
Marcel Bataillon, nos Études sur l' Humanisme au Portugal, 1974, também considera Antimoria "uma condenação deferente mas decidida da livre sátira de Erasmo", mas já  a José V. de Pina Martins, em Aspectos do Erasmismo de André de Resende, Lisboa, 1969, defende a hipótese de ter sido uma crítica não contra os fins prosseguidos por Erasmo, mas apenas quanto aos meios irónicos usados e que perturbavam a crença dos fiéis na Santa Igreja. E acrescenta: «trata-se de uma posição táctica, só formalmente anti-erasmiana, pois, de facto, defendem-se ideias e afirmam-se propósitos susceptíveis de serem entendidos e até integrados numa perspectiva teológica de cunho erasmista». 
  O Antimoria continha 50 epigramas em apêndice,  uns auto-biográficos mas a maior parte deles satíricos e didácticos, como nos explica Sebastião Tavares de Pinho:  
«Este combate humanístico registado na poesia de Barbosa abria-se em múltiplas frentes e revestia-se de vários aspectos: contra a preponderância dos juristas e canonistas, que depreciavam o estudo científico das línguas clássicas e cuja incultura e deturpação do próprio sentido das leis e da justiça Barbosa condenava (Epigramas 14, 15, 26, 27 e 48); contra os que desprezavam a função do «gramático» e contra a querela gramatical que por vezes se gerava em torno de matérias por vezes insignificantes (Epigramas 12, 28, 29 e 34), contra a ciência de lombada de certos pseudo-bibliófilos, contra a soberba dos autodidactas, a crendice dos astrólogos e os inimigos de Cícero (Epigramas 19, 24, 37 e 48)».
                            Antimoria eiusdem nonnnulla Epigramata, 1536.
A propósito de questão de  Aires Barbosa ter escrito  um livro de Retórica ou apenas alguns exórdios, Sebastião Tavares de Pinho oferece-nos explicações valiosas e práticas: «de todos os componentes de um estrutura oratória - exordium, narratio, probatio, refutatio e peroratio, para usarmos, por exemplo, a divisão adoptada por Quintiliano, - o exórdio (ou «princípio» ou «proémio», conforme as variações ou preferências de autores antigos) é aquele que nunca falta, dada a indispensável função que nela exerce de apontar e definir a finalidade do discurso, de criar no ouvinte as melhores condições de receptividade e, em última instância, quando tais funções pudessem ser supridas pelos outros segmentos oratórios, para, como diz Aristóteles (Retórica, 1416a), pelo menos servir de ornamento, pois, se um discurso não tem exórdio, dá ares de improvisado», e apresenta-se como um corpo sem cabeça, para usarmos a imagem do Fedro (264a) de Platão (...)
Dentro das suas principais funções, que o Estagirita [Aristóteles] compara às da proposição nos poemas homéricos e do prólogo na dramaturgia, o exórdio deve ser, segundo o mesmo autor, uma mostra, uma espécie de «exposição de mercado» de todo o tema da oração, de modo a fornecer ao ouvinte, desde o início, o seu fio condutor (1415a). Para Cícero, todo o proémio ou princípio está estreitamente conexo com o resto do discurso, não como um simples prelúdio musical que nada tenha a ver com o resto da peça, mas como um membro intimamente ligado ao seu corpo, e deverá conter como que em germe a causa inteira de que se vai tratar, facilitando o acesso ao seu desenvolvimento seguinte (Acerca do Orador, II,80,325). É sempre bom lembrar que a etimologia de exordium, da mesma raiz do verbo ordior - cujo sentido próprio é o de montar uma teia (donde, o português «urdir») -, tal como da palavra ordo, que significa «o arranjo dos fios ao começar da tecelagem» ou urdidura, assenta na mesma metáfora fabro-têxtil de textus. Ora, para que um tecido fabril saia perfeito, é necessário que ele parta de uma urdidura bem feita. Do exordium, do começo da composição de um texto oratório, depende, pois, o desenvolvimento acabado do discurso inteiro. É por isso que os princípios de retórica lhe deram particular importância. Como diz ainda o Arpinate [Cícero], (idem, II, 78, 315), é o exórdio que, por assim dizer, fornece a ideia do resto do discurso e lhe serve de recomendação; deve, pois, encantar e atrair imediatamente o auditório.
                                          Cícero: ora e labora...
É esta a segunda e especialíssima função do proémio: a de captar a benevolência, manter a atenção e gerar a docilidade do ouvinte. Todos os teóricos, desde os antigos aos modernos, insistem nesta ideia fundamental. Aristóteles, por exemplo, ensina como tal objectivo se pode conseguir: apresentar motivos de interesse de quem ouve, evocar matéria que lhe diga pessoalmente respeito, incluir factos que provoquem surpresa e agrado. (1415a-b). A Retórica a Herénio (I,4. e 6), que dedica várias páginas ao exórdio, começa por defini-lo como o princípio da oração por meio do qual o espírito do ouvinte ou do juiz se dispõe e prepara para ouvir» e mais adiante afirma: «O Exórdio consiste em tornarmos, desde o começo, o espírito do ouvinte apto a escutar-nos. Ele tem a finalidade de podermos manter os auditores atentos de dóceis e de captar a sua boa vontade». Cícero reitera as mesmas ideias no De Oratore, lembrando embora que a preocupação de prender o auditório deve manter-se também ao longo de todo o discurso.» 
Ficamos assim com uma boa visão da arte de começar bem um discurso....
 O 2º volume estuda no 1º capítulo a poesia, a epistolografia e o Humanismo do bispo D. Jerónimo Osório (na imagem), e do seu sobrinho Dr. Jerónimo Osório,  em cerca de 190 p. No 2º capítulo os padres José de Anchieta, Francisco Xavier, Manuel da Nóbrega e António Vieira, e no 3º capítulo leva o título de Humanismo e Helenismo no Colégio das Artes, onde inclui a literatura inédita dos séculos XVI e XVII existentes nos arquivos da Biblioteca de Coimbra respeitantes a oratória, teatro, poesia e filosofia. 
Sebastião Tavares de Pinho  era o coordenador científico do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, animando um grupo de cerca de 20 latinistas que têm vindo a  publicar muitos dos inéditos referidos.
Possam o seu exemplo e alma continuarem vivos e frutíferos em vários dos seus amigos ou discípulos....
Concluamos com um dos seus labores, um extracto do sermão de 1534 de André de Resende, acerca de união mística, pessoal ou comunitária: «Tal união não deve ser entendida como se fosse na essência ou por meio de uma similitude omnímoda, pois esta só é comum à santíssima Trindade; mas verifica-se uma determinada semelhança e participação na natureza divina, através da conformação da nossa mente com a vontade de Deus, do mesmo modo que Lucas afirma no primeiro capítulo dos Actos, que «A multidão dos crentes tinha um só coração e uma só alma».
Consigamos nós, a sós, a dois ou em grupo chegar a tal unificação das nossas forças psíquicas em abertura ou sintonia com a vontade ou amor ou bênção do Ser Divino. 
Possa Sebastião Pinho estar na luz e na comunhão dos santos humanistas...
                               Te Deum Laudamus, pintura de Bô Yin Râ

domingo, 26 de janeiro de 2020

A "Utopia" de Thomas More e o prefácio de Guillaume Budé, vistos por Pina Martins e Aires do Nascimento.

O valor eterno das realizações do Humanismo, que desabrocharam na época Renascimento com  o acesso, estudo e revalorização da língua e cultura greco-latina e a exaltação da dignidade humana, assenta muito em alguns seres e suas vidas e obras, que irradiarão através dos séculos incólumes às transformações e desagregações de referências e valores, numa sociedade global  cada vez mais confrontada com problemas graves decorrentes de alguns países nada humanistas, e instituições ditas transhumanistas,  que desrespeitam a vida humana, a livre mentalidade bem como pela Natureza e seus seres e ecosistemas que culminam na negação de Deus...
Dante guiado pela sua alma-gémea, beata Beatrix, contempla o Sol do Amor Divino
Apesar das situações conflituosas sociais virem já da antiguidade clássica, e já Platão ter escrito a sua República, e na Idade Média um cristianismo renovado e utópico se ensaiar, seja com os franciscanos espirituais, as viagens de S. Brandão, os ensinamentos da escola de Chartres e a cosmovisão da Divina Comédia de Dante, foi com o Renascimento, a invenção da imprensa, o desenvolvimento da escolaridade e a progressiva ascensão de uma classe média culta e dinâmica que se tornou possível uma revolução social que permitiu mentes mais despertas e lúcidas e maior igualdade, justiça e harmonia nas sociedades.
John Colet, pioneiro do humanismo em Inglaterra, amigo grande de Erasmo.
Sem esquecermos as fundações críticas, corajosas e irenistas de John Colet e de Erasmo (este desde 1499, quando conhece Thomas More, e que esteve algumas vezes em Inglaterra), nomeadamente o primeiro no sermão pregado diante do belicoso Henrique VIII, resumido por Erasmo na sua Vida de John Colet, e o segundo no Elogio da Loucura (escrito em 1509 mas publicado em 1515) e nos vários textos irenaicos ou pacifistas, é em 1516 que surge  a Utopia do Thomas More, a qual funda a utilização da palavra para sempre, a que seguirão outras utopias que se tornarão também verdadeiramente imortais,   tais como os Cinco livros de Rabelais, publicados entre entre 1532 e 1562 (com Pantagruel a ser filho de uma princesa da ilha da Utopia), a  Reipublicae Christianopolitanae Descriptio, 1619, de Johan Valentin Andreae, a  Atlantida Nova1622, de Francis Bacon e a   Civitas Solis, 1623, de Tomaso Campanella.
A garrafa alquímica e sagrada com as palavras que a sacerdotisa de Baco dá a beber a Pantagruel e Panurgo no fim das peregrinações iniciáticas que os levaram para além do reino da quinta-essência. Rabelais. Quinto Livro.
 Thomas More é portanto um desses autores perenizados, não só pelas leituras da Utopia (do grego, sem lugar) e ensaios que se continuam a dedicar-lhe como sobretudo pela recreação constante de utopias, que tanto significam "em parte alguma", nusquama, como More traduziu para latim, como também, e transmitido por Thomas More (num poema de um sobrinho do narrador português Rafael Hitlodeu, inserto antes do começo da narrativa), Eutopia, "bom lugar",  cada vez mais necessárias, mesmo que pequenas e locais, nos nossos pardos dias de opressão mundial da comunicação livre e de sociedades fraternas, fora do domínio do capitalismo oligárquico ou neoliberalismo selvagem.
 Entre nós, embora cedo a Utopia tenha sido assinalada pelos nossos maiores humanistas, nomeadamente João de Barros, e embora no séc. XX tenham surgido traduções de versões francesas ou inglesas, da pena de Berta Mendes, com prefácio de Manuel Mendes, e depois de José Marinho, será só no século XXI que surgirá em impressão bilingue, já que havia algumas em manuscritos (como Pina Martins me passou), em 2006, na Fundação Calouste Gulbenkian, a primeira tradução directamente do latim realizada laboriosa e magistralmente por Aires de Nascimento sob a sugestão e a orientação de Pina Martins, em 2015 estando já em 2ª edição revista.
                                             
José V. de Pina Martins foi entre nós quem mais amou e partilhou Thomas More, com Fernando de Mello Moser (na imagem em cima), seu amigo, prematuramente partido (1927-1984) e que deixou também numerosos textos e obras a ele dedicados, destacando-se Tomás More e os caminhos da perfeição humana, 1982, e Dilecta Britannia, Estudos de Cultura Inglesa, 2004, obra já póstuma, onde se coligem nove valiosos ensaios moreanos, impressa pela Fundação Calouste Gulbenkian.
Pina Martins, doutor pela Sorbonne, junto a Pico della Mirandola
José V. de Pina Martins (1920-2010), dedicando-lhe ao longo do seu vasto percurso humanista, científico e bibliófilo, várias publicações e exposições, coleccionando as suas obras, antigas e modernas, e tendo as suas salas  abençoadas por três grandes pinturas de Thomas More, Erasmo e Pico della Mirandola, era movido pela atracção derivada de considerar Thomas More,  um notável pai de família, polígrafo, chanceler do reino, teológo, jurista, historiador, poeta, cristão,   sobretudo como um grande humanista tanto pela sua paixão pela cultura humana como pela sua aplicação na defesa dos direitos naturais e sobrenaturais do Homem...
 Sob as bênçãos de Erasmo, José V. de Pina Martins, com Pedro Teixeira da Mota, na sua biblioteca, nos seus últimos tempos na Terra.
 E, tal como Pina Martins, Thomas More fora também admirador de Giovanni Pico della Mirandola, de quem traduzira  textos religiosos e uma biografia realizada pelo sobrinho.
Todavia, desabrochara como um super-homem ou santo quando, face à pressão do rei para o reconhecer como chefe da Igreja e não o Papa,  conseguira manter íntegra a sua consciência moral e religiosa pondo-a acima da obediência humana e política, pagando com a prisão e depois a morte, e assim entrando  como mártir religioso e de consciência desassombrada no além e na eternidade, com a igreja Católica a reconhecê-lo, com o cardeal John Fischer e os outros mártires da época, como susceptível de culto em 1886 e santo em 1935.
 A Utopia é transmitida por um navegador português, Rafael Hytlodeu,  em duas partes, a 1ª parte, descrevendo os males da sociedade inglesa, e na 2ª (escrita porém antes) a vida perfeita duma ilha bem povoada e organizada, em especial da capital Amauroto,  tendo saído à luz na 1ª edição em 1516, em Lovaina, graças a  Pierre Gilles e gerando logo uma 2ª impressão, em 1517, em França, esta contendo um  prefácio do sábio francês Guillaume Budé e que sairá na 3ª edição, de Basileia, depois da breve mas elogiosa recomendação da obra por Erasmo ao impressor Froben, 3ª edição considerada a melhor e a utilizada por  Pina Martins e Aires do Nascimento para a notável edição que publicaram em 2006. 
 Guillaume Budé, o prefaciador francês, nascera em 26-I-1468, de uma família de funcionários da corte e, depois de ter estudado na Universidade de Orleans Direito Civil, aprendeu grego com Georges Hermonymo e Janus Lascaris, fazendo a sua 1ª viagem a Itália em 1501, desde 1503 dando à luz as suas pioneiras traduções do grego, do qual se torna o maior conhecedor francês, a par de Lefèvre d'Étaples, o outro grande humanista de então. Em 1505 participa na embaixada a Roma ao belicoso papa Júlio II (o visado por Erasmo, anonimamente, no Papa expulso do céu), a quem oferece uma das traduções dos tratados de sabedoria de Plutarco. Em 1516 Budé escreve a 1ª carta a Erasmo e também a que dirige Tomas de Lupset, que lhe fizera conhecer a Utopia, tornando-se esta carta elogiadora da obra de Thomas More prefácio das sucessivas edições posteriores. Em 1522 é o mestre da Livraria do rei, dá origem ao Colégio de França e vai publicando obras, tal em 1535 o  De Transitu hellenismi ad christianismum, bem paradigmático hoje para a passagem a uma religião universal do espírito e do amor, até libertar-se do corpo terreno a 28-VIII-1540.
 José V. de Pina Martins, de quem comemoramos em 2020 o centenário do nascimento, num dos seus textos, L'Utopie de Thomas More et l'Humanisme, onde considera Budé um dos melhores helenistas da Europa, resume tal prefácio assim: «Budé não se coíbe de afirmar que as leis que regem a vida em sociedade são injustas, que elas são um desafio à equidade, e traem o espírito cristão. Ele constata, e declara, que o que se chama direito natural está na origem de regras que, no mundo civilizado, só favorecem os ricos e os poderosos. A legalidade é um alibi para os meios de pressão empregados pelos que estão no poder poderem espoliar os outros.»
Acrescenta ainda Pina Martins, depois de transcrever em latim alguns excertos da visão de Budé,  tais como «Jesus Cristo recomendara uma comunhão e caridade pitagórica entre os seus seguidores», que «Budé sonhava aplicar o exemplo dos utopianos, vivendo segundo a natureza e a razão, a uma sociedade que se dizia cristã, mas que traía a cada momento a mensagem do Cristo.» E em nota de rodapé, afirma, : «A carta de Guillaume Budé, apercebemo-nos, é de uma actualidade ardente. A sua crítica das injustiças sociais esclarece e reforça a de Rafael Hitlodeu, na 1ª parte». Com tal sensibilidade e aspiração, Pina Martins, dialogando com a Utopia de Thomas More,  escreveu a sua valiosa e enorme Utopia III, dada à luz em 1998.
Primeira página do relato da Utopia, na impressão de Froben, em Basileia, 1518
 Já Aires do Nascimento, na sua nota de rodapé ao início da transcrição da sua pioneira e tão meritória tradução da carta de Guillaume Budé na edição de 2006 da Utopia, escreve: «Esta carta de Budé é considerada como o melhor prefácio ao texto de Moro e com razão ela foi colocada aqui: algumas ideias fundamentais sobressaem da leitura que o humanista francês consagrou ao texto: construção da vida em comunidade baseada na equidade que deriva da solidariedade nascida da natureza humana; a função do Estado numa sociedade de iguais que se devem reger pela virtude e não por lei manipuladoras; os princípios enunciados para a Utopia são susceptíveis de inspirar a renovação da comunidade humana.»
                                                     
Se lermos na íntegra a carta do notável jurista, diplomata, linguísta, historiador, bibliotecário, que realçar mais nela? Transcrevamos, usando a tão trabalhosa quão valiosa tradução de Aires do Nascimento, a visão de Budé, nomeadamente de "Moro, personalidade singularmente percuciente, espírito sereno e experimentado na apreciação dos acontecimentos humanos", estimulando-nos a sermos assim mais observadores, mais identificados e ligados à nossa essência espiritual divina e justa, vendo com claridade e sem preconceitos e emocionalismos. 
Também a crítica da ciência das leis civis é forte: «têm apenas uma finalidade, a de treinarem, para uma destreza, tão travessa quão acerada, de uns contra os outros» de modo a que «em parte com a conivência das leis e em parte o apoio das autoridades do direito, rouba e sonega»
Valiosa é também a consideração que Budé nos dá de já na época predominarem pensamentos «a juízo de um pensar comum alienante» e «sendo a maior parte da gente falha de visão pela remela de uma ignorância crassa», julgando assim mal do que é justo, tanto mais que os preceitos justos e verdadeiros de sempre «distam muito das determinações e decretos daqueles.... 
Este aspecto é muito actual, pois a lavagem ao cérebro que os meios de informação fazem, em geral muito vendidos aos sistema norte-americano e a outros grupos de pressão fortes, enche a mente das pessoas de falsas verdades e estas perdem a sua bússola interior da verdade.
Guillaume Budé lembra-nos do essencial, numa linha semelhante ao conceito oriental de Dharma, Ordem ou Dever, ao definir a Justiça como «virtude que atribui a cada um o que lhe pertence», e que o direito nos Estados «procede de uma justiça equilibrada e gémea do mundo, a que chamam Direito Natural» e que é bem o contrário da cupidez generalizada, que se encontra em legisladores, governantes e políticos, muitos deles ineptos ou corruptos, estabelecendo "amarras" sobre o povo e os intelectuais, "arrecadando receitas" e obtendo altos cargos. Ora contra tal tendência já se erguera Cristo, criador e dispensador dos bens da propriedade, ao estabelecer uma comunidade pitagórica e ao estatuir a caridade entre os seus discípulos. 
Três eram as instituições divinas, resumia Budé que sustentavam a Utopia: igualdade entre os cidadãos ricos e pobre, ou, para quem preferir cidadania completa em toda a sua escala; amor, constante e firme de paz e harmonia; menosprezo de ouro e prata. Por elas foi afastada a avareza e a cupidez, e assim a justiça e o pudor ou pureza mantiveram-se nos utopianos.
                                                     
                                       Thomas More, num desenho de Hans Holbein...
Guillaume Budé terminará esta carta imortalizante da sua sábia alma espiritual elogiando a fraternidade dos amigos de Deus:«Embora Moro fosse de si mesmo homem grave e gozasse de grande autoridade, o testemunho de Pedro Gilles de Antuérpia serviu para eu lhe dar pleno assentimento. Muito embora eu nunca tenha conhecido pessoalmente este último personagem (deixo de lado recomendação de ciência e de vida), aprecio-o pelo facto de ser amigo mais que jurado de Erasmo, homem preclaríssimo e do maior prestígio ganho em todos os domínios nas letras sagradas e profanas, e com ele, de há muito, formei um pacto de amizade, através de correspondência particular de um para outro». 

 E conclui esta carta-prefácio, escrita em Paris, em 31 de Julho de 1517, assim, numa tradução minha:«Quereria também que por mandado meu levasses a Moro uma saudação redobrada, seja que envies, como disse, seja que digas, que o nome de tal varão consta do mais sagrado livro de Minerva já há muito, segundo a minha opinião e palavra, e pelo relato da ilha do Novo Mundo, a Utopia, lhe dês o meu máximo amor e veneração. A nossa geração e as gerações vindouras terão o seu relato por alfobre de instituições belas e úteis donde cada um pode  enxertar comportamentos introduzíveis e adaptáveis à sua cidade. Vale


 Post scriptum: dedico e ofereço este trabalho, ao finalizá-lo, a Sebastião Tavares de Pinho, da Universidade de Coimbra, notável latinista e humanista, com vasta obra meritória, que soube agora mesmo pelo P. Aires do Nascimento ter morrido de um acidente rodoviário no dia 23, após a sessão ordinária (fraca ideia) da Academia da Ciências que homenageou o centenário do nascimento de José V. de Pina Martins, na qual, vindo de Coimbra, ele prestara o seu testemunho (e que eu gravei, últimas palavras públicas, estando no Youtube). Com Sebastião Tavares de Pinho e sua mulher, a quem apresento os meus sentimentos, dialogara eu, no intervalo da sessão, animadamente  sobre o seu trabalho de coordenação de de vários latinistas tradutores das obras dos jesuítas e conimbricenses e, além disso, na crença ou certeza da imortalidade da alma, que tanto eu como ele sentíamos interiormente... Lux... Brevemente escreverei um texto sobre aspectos da sua valiosa obra.
Muita luz e amor nas suas almas... 
Avance para Deus... 
Que Deus brilhe mais no seu íntimo...

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

"O que está vivo na tradição do Humanismo", de Pina Martins. (2ª p.). Tradução e gravação de Pedro Teixeira da Mota...

Na 3º e última parte do seu escrito O que está vivo na tradição do Humanismo, intitulada "O Humanismo como retorno às Fontes e ao pensamento Irenista", o prof. Pina Martins explica que as fontes dos humanistas foram as cristãs e a patrística (dos primeiros padres da Igreja, tal como Clemente de Alexandria e Orígenes) para a gnose teológica; o pensamento grego para a demanda filosófica; e os textos gregos e latinos para os filólogos e escritores, estes impulsionando métodos mais críticos ou científicos de investigação e fixação dos textos, iniciados por Lorenzo Valla, Erasmo e os grandes impressores, como  Aldus, Froben e Estienne.
Desidério Erasmo, defensor da verdade, no seu scriptorium, por Quentin Metsys
                        
Desta abrangência de fontes resultou também uma certa aceitação da diversidade, por vezes conflituosa, da hermenêutica dos textos, abrindo caminho para um irenismo filosófico e religioso, ou seja, para aceitação tolerante de perspectivações diferentes. Algo hoje fundamental, em tempo de narrativas oficiais e extremar de posições ideológicas, e que teve então sua raiz.
Pina Martins escreve mesmo, talvez para manter viva tal tradição Humanista e despertar-nos de uma subjugação medíocre: «O respeito pelo outro não é mais do que um aspecto do respeito pelo ser humano. Nos nossos dias dá-se prioridade à melhoria da sorte do indivíduo nas suas relações com o trabalho e os meios de produção: este problema está intimamente ligado ao dos direitos do homem na comunidade, pois o Estado existe para a felicidade dos cidadãos, não são eles que têm de se sacrificar para assegurar um enriquecimento hipotético do Estado.» 
E, não sabemos se a sério se com ironia, pois escrevia em 1987, já que nos nossos dias passa-se o contrário, da prisão de Julian Assange à manipulação e opressão crescente das vozes discordantes do capitalismo oligárquico e imperialista que tenta reger o planeta, Pina Martins acrescentava logo em seguida: «Estas ideias, admitidas hoje em toda a parte, encontram-se já em alguns dos textos fundamentais do Humanismo...», citando a Utopia de Thomas More, com as suas seis horas de trabalho e Juan Luis Vives com as propostas de medidas para evitar a pobreza...
                              
  Marsilio Ficino, Picco della Mirandola e Angelo Poliziano, em 1485, em  Florença, num fresco de Cosimo Rosseli.
Transcrevendo a famosa frase de Pico della Mirandola, e que Pina Martins relembrava de quando em quando "philosophia veritatem quaerit, theologia invenit, religio possidet", "o amor da sabedoria (filosofia ou ciência) procura a verdade,  a teologia encontra-a mas só a religião a detém ou possui»", considera tal como aproximação à unidade ou ecumenismo das religiões, já que Pico della Mirandola, tal como Marsislio Ficino, reconheciam uma religião ou filosofia perene, a prisca teologia, que sempre se transmitira, estudando-a nas diferentes religiões e tradições, algo que é hoje uma mentalidade ou visão bem mais corrente, embora com retrocessos nas seitas e mentes fundamentalistas. Certamente que podemos sentir e postular ainda a  religião, que possui a verdade, no seu nível mais elevado e íntimo  como a religação espiritual e divina.
Um dos mais belos e enigmáticos livros com imagens do Renascimento, O  Sonho de Polifilo, de Francesco Colonna.
      Depois de ter equacionado levemente a união da imagem e do texto ao longo dos séculos, sem ainda observar a actual predominância crescente dela, nomeadamente digital, Pina Martins questiona-se quanto à capacidade de ele ou outros fazerem sínteses completas, pois nem sobre o Renascimento nem sobre o saber contemporâneo os melhores seres as poderão fazer, cabendo-nos apenas participar com as nossas contribuições, estudos e investigações, nomeadamente sobre os temas e textos maiores do Humanismo, dos quais enumera no fim treze, da Theologia Platonica de Marsilio Ficino ao Quod nihil scitur de Francisco Sanches, de modo a que possamos revificá-los e frutificá-los nos nossos dias, tal como Pina Martins tão bem realizou, culminando mesmo com a sua Utopia III.
 
 Segue-se então a leitura e simultaneamente tradução do texto francês, com alguns comentários meus, em prol da Tradição Humanista em Portugal e, nestes dias do centenário do seu nascimento, como homenagem de coração e de espírito  ao ilustre investigador, bibliófilo, bibliotecário, professor e amigo José V. de Pina Martins.                                                                                

"O que está vivo na tradição do Humanismo", de Pina Martins. (1ª p.). Tradução e gravação de Pedro Teixeira da Mota

                           
O que permanece vivo da luminosa aspiração e tradição do Humanismo dos séculos XV e XVI é uma questão debatida por muitos seres debatido e sem dúvida cabe a cada um de nós tanto investigá-la como mantê-la viva no que podermos e soubermos nestes tempos mentais cada vez mais manipulados, opressivos e desumanos...
José Vitorino de Pina Martins foi inegavelmente um humanista e um dos melhores conhecedores de vários aspectos do Renascimento europeu e português, ao nível de Marcel Bataillon, Eugenio Asensio, Jean Claude Margolin, André Chastel, etc., dedicando-se em especial a algumas das grandes almas da época, como Giovanni Pico della Mirandola, Erasmo, Thomas More, Sá de Miranda, Damião de Goes, para destacar apenas alguns de vários outros também estudados e partilhados, como Dante, Petrarca, Marsilio Ficino, Reuchlin, João de Barros, Camões, ao longo dos anos exercendo ainda um magistério e até mecenato em relação às investigações e publicações humanísticas em Portugal ou sobre Portugal, nomeadamente ao exercer funções na Fundação Calouste Gulbenkian desde 1972 quando foi convidado a dirigir o Centro Cultural Português em Paris, que cumpriu admirável e frutuosamente até 1983, ano em que passou a director dos Serviços de Educação, da mesma fundação, já em Lisboa.
É deste período da sua vida que nasceu este texto Ce qui est vivant dans la tradition de l'Humanisme, e que resolvemos traduzir lendo-o, com alguns comentários, nestes dias que rodeiam a data do seu centenário do nascimento, ocorrida em Penalva de Alva, em 18 de Janeiro de 1920, e como forma de lhe prestar homenagem e manter viva a sua irradiação humanista, tão necessária nos nossos dias em que a qualidade ética e cultural, que não a científica e tecnológica, parece baixar, diminuir, toldar-se, submergida pela luta sobrevivência, as modas tecnológicas, a manipulação dos meios de informação  e  tantos espectáculos, desportos, canais e terrorismos e imperialismos, etc, etc.
I Trionfi de Petrarca: Que carro ou fama triunfa na nossa alma, vida e mundo?
Dividimo a leitura em duas partes, e nesta 1ª ele explica como a palavra Renascimento indica que o Humanismo dessa época é um tipo de ressurreição das Letras clássicas, ou da literatura e filosofia greco-romana, que estava perdida em algumas bibliotecas monásticas e é trazida à luz graças a sucessivos investigadores e escritores, e multiplicada nos seus efeitos graças à descoberta da tipografia.
Dividindo o texto em três alíneas ou partes, na 1ª Humanismo e Ciência, José Pina Martins discerne lucidamente os aspectos positivos e inovadores, bem como os aspectos negativos e bloqueadores, no aspecto das Humanidades, ou seja, na retórica, dialéctica e gramática, e mesmo na didáctica filosófica, já que se exagerou ou se acantonaram demasiado no microcosmos humano.
Será o Renascentismo tardio ou segundo Renascimento que desenvolverá fortemente as metodologias científicas capazes de apreender a realidade do Macrocosmos, e dá vários nomes dos pioneiros, mostrando o que devemos a Galileu, a Giordanno Bruno ou a Descartes...
Giordanno Bruno, um dos grandes espíritos do Renascimento, queimado vivo pela Inquisição, ao fim de 8 anos de prisão, por defender um conhecimento mais espiritual, uma religião mais livre e  um cosmos infinito, com pluralidade de seres...
Na 2ª parte, Humanismo e Sociedade, Pina Martins valoriza sobretudo a reflexão crítica sobre os diversos ramos da ciência, da linguística à sociologia, que receberam impulsões e contributos de metodologias, aproximações e criações dos Humanistas, destacando ainda como algumas facetas então trabalhadas, mas sendo discutíveis ou demasiado subjectivas, como a Astrologia, a Cabala e o Hermetismo, têm tido sucesso público modernamente, sobretudo devido a pessoas mais susceptíveis de "soluções míticas". 
Valoriza já mais as propostas de irenismo,  ou pacifismo, então apresentadas por Thomas More, na sua Utopia, e sobretudo por Erasmo, um homem de grande cultura e bom senso, apelando sempre ao diálogo e ao entendimento, com respeito e amando os outros, pois "a guerra só é boa para quem a desconhece"...
Conclui esta 2ª parte, considerando muito valiosa e actual a proposta dos humanistas, como  Thomas More, F. T. Bacon, Campanella e sobretudo  Erasmo, com a de «uma religião do puro espírito, a philosophia Christi, até a uma ordem do Estado, axializada sobre a paz e assegurando a felicidade dos membros da comunidade». Na 3ª e última parte, não incluída nesta gravação,  O Humanismo como retorno às fontes e o pensamento irenista, Pina Martins afirmará com força a necessidade de o Estado deixar de ser opressor e explorador dos cidadãos, como vemos hoje tanto no mundo. 
S quiser oiça a gravação desta última parte, no próximo artigo do blogue, da exposição bem lúcida e valiosa do ilustre e querido amigo e professor José V. de Pina Martins.  
                                   Muita luz e amor na sua alma e caminho ascensional!