domingo, 7 de dezembro de 2025

Bracara Augusta e a veneração do Sol sacramentado. O triunfo Eucarístico do SS.Sacramento celebrado em 1733 para fama eterna.

 Este artigo está ainda em laboração, mas para quem tiver curiosidade, ei-lo em parto...

Os folhetos antigos que tentaram descrever festividades religiosas são certamente dos mais interessantes no esforço que pedem hoje aos seus leitores para arrancarem da brumas da memória no éter tais cenas e vozes devotas que maravilharam então muita gente.

A maioria destas publicações era impressa depois de se terem realizado, pois só assim se poderia descrever bem o que se passara de carruagens e carros, danças e músicas, autos e teatros, proclamações e sermões. Algumas porém eram impressas antes da respectiva celebração e serviam no fundo de guião e de programa, pois quem recebesse ou comprasse tal notícia impressa poderia compreender bem melhor o que se passava na rua, na praça, no templo ou diante da sua janela, seja da casa seja da alma.

Este folheto que resolvemos transcrever em parte e brevemente comentar está nesse caso, conforme observamos na parte final da portada impressa, onde um espaço em branco, servia para se assinalar à mão o dia de Junho em que se realizaria a grande festa de veneração do SS. Sacramento fabricado por iniciativa de alguns ilustres bracarenses da confraria. nomeados na portada, onde consta:

 PROLOGÉTICA NOTÍCIA do Eucharistico triunfo. com que a Augusta Braga se desempenha, para mayor veneração do SS. SACRAMENTO, Fabricado a impulso dos generosos ânimos dos seus jJuizes o M. R. Francisco Pacheco Borges, Gabriel António Brandam Leite, ilustre cidadão desta cidade, e dos mais oficiais. Escrivão, o Doutor Manoel Tinoco de Magalhaens, Vedor, Joseph do Valle, Mordomos, Gabriel de Barros e António Ferreira, para o dia ... de Junho do presente anno de 1733. Coimbra, na Officina de António Simoens Ferreira, Anno1733.

Braga era no século XVIII uma cidade de grande poder eclesiástico, pois era a sede dum Arcebispado de profundas e fortes razies históricas e contando com cerca de 17.000 habitantes, 6 conventos e uns mil religiosos a viverem nela, o que garantia um fermento religioso constante na população e simultaneamente o sucesso nas celebrações e festas religiosas que se celebrassem, onde se destacavam as da Semana Santa.  Esta porém é única, pois celebra-se com grande júbilo uma criação de ourivesaria sagrada, que certamente gerava muita devoção nos que apreciavam ou veneravam mais profundamente os mistérios que se podem alcançar ou sentir com a Eucaristia, seja na ideia e fé de se receber uma partícula do corpo espiritual do Cristo, seja no facto de que a hóstia encerrada num santíssimo Sacramento e exposta se torna um mostruário poderoso, permitindo uma fixação mais prolongada no tempo face à fugacidade da contemplação e da comunhão duma hóstia durante a missa.

O Santíssimo Sacramento estabiliza a potencial presença divina para o crente, o sensitivo, o adorador. Dá-lhe tempo para acalmar os pensamentos e voltara a concentração contemplativa adorativa. É como um Sol parado e sempre a irradiar os seus raios inspiradores e benfazejos para quem os venerar e acolher. É uma imagem do Logos, do Verbo, da Palavra, do Cristo, do Amor Divino. Quantos estavam conscientes disso? Com que força o autor da  prologética notícia conseguiu escrever e transmitir aos leitores, sobretudo religiosos que o  leram antes ou depois? Em quantas casas religiosas ou particulares sobreviveu este folheto?

 Quando começamos a ler o belo texto, apesar de já escrito no ano de 1733, ainda bastante barroco, cheio de imagens, sons e cores, analogias, mitologias, esperanças e adorações, observamos bem que ele foi escrito e impresso com os verbos no futuro e logo para o futuro, tanto do dia da festa em Junho que se avizinhava, tanto para a perenidade dos leitores que o iriam de ressuscitar décadas ou séculos depois, tal como nós fazemos agora.

A possibilidade de certos momentos importantes não ficarem encerrados nas limitações da efemeridade dos momentos históricos e anímicos, sempre foi um dos objectivos dos escritores, das escrita, da imprensa, da notícia e  preservação de vestígios ou sinais, pois eles assim permitirão ao peregrino vindouro estabelecer o contacto de correspondência ou a anexação ou conexão com a corrente simbólica  então desencadeada e que sobrevive no papel, no tempo. E ainda na axialidade animico-espiritual, a qual nos permite vibrar de novo, seja com os espíritos participantes, seja com as ideias e símbolos, ou ligações que então se ergueram ou fundaram e que como arquétipos ou energias vivas nos planos subtis e causais nos podem influenciar. 

O autor desta prologética, ou introdutória notícia,  não podemos ter a certeza, mas provavelmente foi o cónego da Sé, Francisco Pacheco Marques, formado na Universidade de Coimbra, onde o folhetozinho fora impresso na Oficina de António Simões Ferreira, provavelmente seu conhecido e amigo. Como foi ele transportado para Braga? Pois cremos que provavelmente levado por animais de carga, embora as 16 páginas de cada um dos quinhentos ou mil exemplares não custassem muito a ser levados numa carruagem, a expensas  da Confraria do SS. Sacramento que mandara fabricar ou cinzelar um Santíssimo Sacramento certamente belo e valioso. Será ele bem descrito nas duas folhas iniciais folheto, ou serão nas outras páginas as festas e folias, representações, danças e procissões, que receberão a parte de leão? Entremos no átrio deste templo vivo perenemente...

«Transformada em pregoeiras línguas, clarins valerosos da eterna fama, com que costuma publicar as acções mais heróicas, celebradas maravilhas do Universo, perpetuando entre vivas glórias aqueles facanhosos projectos, que sendo do mundo assombros, são também aplausos admirados em os soberanos anais, que nunca esquecem, patenteia pelas quatro partes do Orbe com senhoria imortal de todas as idades,»   

Detenhamo-nos aqui: o autor vibrava realmente na Sabedoria e Fama, como "senhoria imortal de todas as idades".. Era um cavaleiro do Amor, do Cristo, do Logos...

 Retomemos:   «patenteia pelas quatro partes do Orbe com senhoria imortal de todas as idades, dominadoras do tempo. esse ligeiro correio, que, como vento, voa a dar notícia, não havendo acção, que não registe, e portento, que não publique: porém abatam-se já as asas dessa veloz percursora, e cessem as murmúreas vozes desse dourado clarim em aplaudir as heroicas façanhas dos generosos bracarenses, nos pomposos festejos, que com vantagem notória todos os anos saem a público, no dia, em que o Divino Sol Sacramentado, gira pela zona tórrida e via láctea  das majestosas ruas da Augusta Braga, a mais nobre , fiel, antiga, e Primaz das Hespanhas, títulos com que a enobreceram os Imperadores Romanos, e muito bem conhecida por Heliotrope do Sol Sacramentado, em cujo obséquio tomou por timbre uma mesa, que a antiguidade expôs no campo de S. Sebastião  em uma pedra, na circunferência da qual, não só se lê essa antiquissima inscrição de: Brachara Augusta, Nobilis, Fidelis, & Antiqua; mas também se deixa ver ser uma mesa o timbre de Braga, para mostrar que está sempre exposta para a veneração do Sacramento...»

Quem quiser ajudar e transcrever um pouco mais, agradecer-se-á em fama pública...

Após a página inicial (p.3,) bastante histórica, solar  e eucarística, tão barrocamente proclamada, na p.4 encontramos um belo elogio à beleza e fulgor da apresentação da custódia do Santíssimo Sacramento já na catedral: «Depois que o Divino Sol no dia da quinta-feira tiver dado o passeio pelas costumadas ruas, em a Solene Procissão que os senadores desta Augusta Cidade aniversariamente lhe dedicam, recolhido já a Basílica  da Metropolitana e Primacial Sé, começará  com seus dourados rayos a ilustrar outro polo, correndo já os obséquios por conta dos generosos juízes, e mais Oficiais que com luzes  o acompanharam até subir ao zenith de um majestoso trono, que com muito asseio lhe tinham preparado, aonde a sua devoção fará suspender  seu curso nos três seguintes dias, sendo as luzes com que brilha, línguas de fogo com que inflama os corações, vendo-se estes também alegres na Catedral com a suave harmonia  de vozes, de que se compõem  uma sonora Capela de boa música: corresponderam na torre  os sinos com a sua sensitiva  consonância . (Cuja capela se acha bem provida de boas, e novas vozes)... Seguem-se o nome dos oradores  ou pregadores Frei Cristóvão da Cruz, Frei João da Santa Rosa e Frei Manuel da Silveira, todos eles vindo de Coimbra, e por fim novas descrições dos aspectos cénicos seja das noites, seja já do dia Festa, com os sucessivos festins, separados por andores simbólicos ou alegóricos. 

Numa linha muito actual multi-étnica, as danças ou festins em número de dez serão sucessivamente realizados pelas ciganas («rompendo com as suas bravas voltas»), os escaramanados, galegos e galegas, mulatas da Bahia, africanas, peregrinas ou romeiras, turcos, saloias, negros, etc. O último é intitulado o  Baile do Triunfo que David alcançou de  Golias (Goliath), com dez carros, descritos minuciosamente nas personagens, roupas, letras ou legendas e simbolismo, havendo mesmo entre eles a declamação dum pequeno auto com dezasseis personagens que dialogam e cantam, sendo as personagens principais David e a que seria a sua primeira mulher Michol, ou Micol, filha do rei Saul.   

Será após esta peça ou baile que nos é confirmada a autoria deste microcomos bracarense sacro-festivo, o juiz e cónego Francisco Pacheco Borges, que é ainda o autor da tabela de correspondências entre as figuras dos carros, as legendas ou letreiros que levavam, e o lugar nas Escrituras tanto pagãs como cristãs, onde, numa linha de cultura clássica humanista e quem sabe de Filosofia Perene, de ligação entre as religiões antigas ou Paganismo e o Cristianismo, figuram seres como  Orfeu e Eurídice, as Graças, Saturno, Jano, Eneias, etc... Por exemplo «Orfeo vestido ao trágico, tocando em uma cítara, com esta letra, Orfeo; e com outra letra Eucharistia, id est, Cithara.» ... As três Graças, vestidas de branco, com asas nos pés, uma coroada de vides, e levará esta letra, Aglaia, idest, Letitia. E outra letra: Vinun laetificat cor hominis, frase e saudação muito usada (e até abusada) no mundo minhoto e bracarense. A 2ª das Graças, Thalia, coroada de flores, levava três letras ou letreiros «Thalia idest Virens, 2ª, Siquis manducaverix ex hoc pane, vivet in aeternum, Quem comer deste pão viverá eternamente.» Saibamos alimentar-nos e frutificar espiritualmente.

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